Logotipo do Jornal de Resenhas
Heloisa Starling - 84 - Abril de 2002
1968: o culto do impossível
Foto da capa do livro Para uma crítica do presente
Para uma crítica do presente
Autor: Irene de Arruda Ribeiro Cardoso
Editora: Editora 34 - 286 páginas
Foto do(a) autor(a) Heloisa Starling

"Para uma Crítica do Presente" procura narrar a história de uma rua, em São Paulo, a Maria Antonia, e de um ano, 1968, em torno dos quais o discurso pretensamente objetivo de uma certa forma de conhecimento histórico tentou lançar o silêncio, a dispersão do passado. Por conta desse silêncio, no Brasil, argumenta Irene Cardoso, 1968 não conduz o historiador ao manejo do tempo nem aos riscos provocados por movimentos de continuidade, descontinuidade, correspondência, analogia ou semelhanças no interior dos eventos. Ao contrário, esse ano apresenta-lhe uma outra face da memória: o esquecimento.

Talvez não por acaso a forma adotada pelo livro seja o ensaio. A rigor, ensaios desconfiam do sentido único das coisas, na ciência e na história, perseguem as condições de acesso ao que nelas foi preterido como inútil e reconhecem o heterogêneo, o dissonante ou fragmentário como um método para pensar de maneira crítica o presente.
Visto pelo ângulo do ensaio, recordar 1968 significa, de pronto, construir um conjunto de interpelações sobre o passado recente do país a partir das relações entre memória e esquecimento, memória e lembrança, memória e história.
Entretanto, para realizar o movimento de recordação é necessário ir devagar, quase cautelosamente. De fato, na tentativa de estabelecer a diferença entre o momento de evocação espontânea de um fragmento do passado e o trabalho de memória que o historiador procura sustentar, o livro de Irene Cardoso, de uma forma muito própria, caminha para trás no tempo e no esforço de chamar o ano de 1968 de volta ao coração, vale dizer, no esforço de tentar flagrar, num ponto vazado do tempo, a fragrância fugidia das coisas distantes.
Nesse sentido, ao recordar 68, o livro abre ao historiador a possibilidade de interpretá-lo como um signo histórico, caracterizado pela condensação de sentidos plurais. Em boa medida, argumenta Irene Cardoso, esse é um ano único, marcado por um fenômeno singular, por uma particular faculdade de exceder os limites de sua época -um fenômeno que condensa numa única unidade de tempo uma rede de significações por vezes inesperadas; a tentativa de golpe contra Kubitschek, em 54, a renúncia de Jânio, o golpe de 64, a explosão da guerrilha urbana, o movimento pela anistia, o movimento pelas diretas, a eleição de Collor e a derrota do PT, os ecos da morte de Guevara, os assassinatos de Luther King e Bob Kennedy nos EUA, a Primavera de Praga, a revolução húngara, a bossa nova, o cinema novo, o teatro Oficina, a tropicália.
A nomeação dessa série de significações, na aparência quase absurda, transforma 1968 num acontecimento histórico, no "lugar temporal da emergência brutal de um conjunto de fenômenos sociais surgidos das profundezas e que sem ele continuariam enterrados". Faz dele o lugar de uma contestação sobre a sociedade moderna, em que se precipitou toda uma carga utópica difícil de ser extinta, uma crença no poder inesgotável da imaginação humana para revolucionar e reformar o mundo -crença análoga a um forte desejo de evasão no imaginário que já sustentava a intencionalidade positiva e utópica dos revolucionários franceses dos século 18 e 19, e que Alexis Tocqueville definiu como produzindo uma espécie de culto do impossível gerado no começo do processo revolucionário e em seu interior.
Mas, nesse percurso, ou a partir dele, o livro de Irene Cardoso nos permite ir além. A originalidade histórica de 1968 talvez esteja precisamente no caráter evanescente e até mesmo passível de perplexidade que caracteriza esse tipo de evento na modernidade. Como indica a autora, a rigor os acontecimentos de 68 jamais ultrapassaram a duração fugaz de um clarão de luz, são descontínuos, rápida -e tragicamente- abafados e jamais testados na longa duração.
Apesar disso, eles também funcionaram como um dos momentos raros e singulares da modernidade, em que a política é novamente apropriada pelo cidadão em gestos e palavras, e as ruas de uma cidade voltam a pertencer ao seus habitantes. O ano de 68 teimou em reproduzir uma série de eventos mais ou menos violentos, organizados e reprimidos, mais ou menos libertários em diferentes partes do mundo simultaneamente, sem nenhum centro coordenador. E, em todos esses eventos, o espaço público foi retomado com o exercício quase cotidiano da ação, da palavra, dos direitos políticos, da percepção de que existe uma dimensão da felicidade em abandonar certa opacidade triste que recobre nossas vidas privadas.
Em certa medida, "Para uma Crítica do Presente" persegue essa intuição, sobretudo quando oferece uma fisionomia concreta ao excesso de significados que configuram a originalidade do acontecimento histórico produzido por 68: a rua Maria Antonia.
A rua, nesse caso, diz respeito à composição estratégica de lugares onde a memória estabelece seus pontos de inflexão, constituindo a imagem de um microcosmo político, social e existencial que acolhe a incoerência da história, o descompasso das experiências, a contingência dos afetos no mundo privado dos indivíduos.
Na rua Maria Antonia, em 68, aconteceram encontros amorosos, gestos de amizade, confrontos políticos, cenas de violência, discursos militantes em profusão.
Num pequeno trecho dessa rua ocorreu uma guerra -o conflito armado entre os estudantes da Universidade Mackenzie e os da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP- e, num de seus prédios públicos, um projeto da área de humanidades para a universidade brasileira começou a ser institucional e lentamente dissolvido.
Talvez seja nesse momento, na passagem para a reflexão sobre os processos de modernização da universidade brasileira e as relações entre universidade e poder, que o livro de Irene Cardoso perca um pouco de sua força. No momento dessa passagem, as intuições apenas afloram e as hesitações da autora em recuperar as condições necessárias para o retorno (ou para a permanência) de uma concepção humanista da educação, sustentada no diálogo dos modernos com a tradição, terminam por empanar o gume crítico da análise.
Contudo o livro é coerente com seu projeto de aventurar-se no manejo dos tempos, de lançar um olhar na direção do tempo, em permanente deslocamento, do presente para o passado, da fugacidade do evento para sua transformação em memória, do anonimato de muitas vidas privadas condenadas ao esquecimento para a redescoberta do brilho antigo que vem do mundo dos homens, quando eles se dedicam à atividade política. Nesse sentido, esse é, também, um livro generoso, como generosos são os caminhos da imaginação histórica que ensina aos aventureiros do tempo a necessidade de inscrever certo índice de compreensão poética no processo de resgate das experiências deixadas à margem no passado.


Heloisa Starling é professora de história das idéias na UFMG e autora de "Lembranças do Brasil" (Revan).

Heloisa Starling é professora do departamento de história da UFMG.
Top