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Luiz Felipe de Alencastro - 17 - Agosto de 1996
500 anos de história
Foto da capa do livro Livro dos posfácios
Livro dos posfácios
Autor: Sérgio Buarque de Holanda
Editora: 7 letras - 430 páginas
Foto do(a) autor(a) Luiz Felipe de Alencastro

Os 32 textos reunidos neste "Livro dos Prefácios" de Sérgio Buarque de Holanda cobrem quatro décadas de atividade do historiador que conhecia o pitoresco, o necessário, o essencial e o decisivo de cada um dos cinco séculos de crônica colonial e nacional brasileira. Iniciativa editorial rara, o livro pode ser lido por etapas, aos poucos, ao sabor dos variados temas postos em escrutínio pela pena organizada e esfuziante de Sérgio. Ainda assim, quem decidir ler o livro de uma assentada terá uma visão de conjunto sobre uma das obras mais fecundas da historiografia brasileira.

Na medida em que têm diferentes objetivos, os textos não se revestem da mesma importância. Ao lado de alguns ensaios seminais ("Memórias de um Colono no Brasil", "Obras de Azeredo Coutinho", "Vale do Paraíba-Velhas Fazendas", "A Escravidão Negra em São Paulo"), apresentam-se breves informações sobre alguns livros e revistas. Contudo, nada é truncado nestes escritos de circunstância. Mesmo quando curto, o texto é redondo, destilando alguma boa sugestão intelectual.
O longo ensaio sobre a obra dos historiador alemão Leopold Ranke é surpreendente. Publicado na "Revista de História" da USP (1974) e na introdução de uma coletânea de textos de Ranke (Ática, 1979), o ensaio não tem nada de ocasional. Trata-se de um dos mais alentados estudos sobre a escola historiográfica alemã escritos em língua portuguesa. Sérgio seguia de perto os debates e as publicações germânicas sobre a matéria. Quem seriam seus interlocutores? Em todo o caso, a imprevisível reunificação alemã e o dilema em que se encontra a União Européia -haverá uma Alemanha européia ou uma Europa alemã?- dá ao texto uma atualidade que o autor jamais suspeitaria.
Ao lado desse ensaio de pura reflexão, aparecem outros escritos vincados na vivência das tradições e dos documentos brasileiros. Nesse sentido, o comentário à obra econômica do bispo Azeredo Coutinho (1742-1818), é exemplar. Depois de discorrer sobre a formação do economista fluminense, Sérgio dá o toque decisivo à explicação do homem e da obra: "No fundo nunca se desprendeu inteiramente da velha tradição familiar, tradição de grandes proprietários e lavradores, e assim, nem a experiência universitária, nem o estado clerical, nem a viva curiosidade de espírito, que o levara a absorver uma ou outra doutrina progressista da época, chegariam a apagar nele o vinco do senhor rural". E é exatamente porque tinha o pé no barro dos canaviais e persuadia-se da legitimidade da truculência social brasileira, que Azeredo Coutinho virou mais realista que o rei, mais colonialista que os colonizadores. Defensor do sistema colonial declinante e do tráfico negreiro condenado, Azeredo Coutinho morre em 1818 como o último titular da mais grotesca função criada pelas monarquias ibéricas: Grande Inquisidor do Santo Ofício.
Generoso com os seus orientandos e com os livros que apresentava, Sérgio dava também seus recados. No texto relativo ao barão de Iguape, ele insiste, mais uma vez, sobre o papel dos comerciantes e do capital mercantil na história portuguesa e brasileira. E vitupera contra autores obcecados pelos cacoetes então dominantes na direita -a "sociedade patriarcal"-, e na esquerda -o "feudalismo"-, e marcados pela "obstinada cegueira diante da marca do capitalismo internacional que esteve presente na formação brasileira desde os inícios".
Mais adiante, a propósito da escravidão, Sérgio investe contra as interpretações que "turvam nossa visão histórica" quando generalizam para toda a sociedade a eventual temperança que arbitra os conflitos entre as elites. Escrevendo em meados dos anos 70, quando os estadistas do AI-5 associavam-se aos torturadores na co-gestão do "milagre econômico", Sérgio lembra que "o espírito de conciliação" funciona, sobretudo, entre os donos do poder. Nos conflitos verticalizados, aguçados pela clivagem social, a violência corre solta: "Deixam de existir os mesmos estorvos ao exercício da crueldade pela simples razão de que não há interesses comuns que possam irmanar um (antagonista) ao outro".
Às vezes a introdução sergiana envereda por outras histórias. A respeito da Guarda Nacional, Sérgio engrena uma discussão altamente interessante e atual sobre o direito de voto no Brasil. Noutra altura, a partir da apresentação do "Livro do Tombo" do mosteiro paulista de São Bento, ele arma uma quase-monografia sobre o bandeirantismo.
Herdeiro e cultor da tradição historiográfica extra-universitária, Sérgio foi um dos únicos a destacar a importância de "A Escravidão Africana no Brasil" (1949), do advogado e político Maurício Goulart, hoje reconhecida no mundo inteiro. No prefácio à 3ª edição do livro (1975), Sérgio lamenta "a escassa receptividade alcançada de início" por esta obra. Infelizmente, creio que Sérgio não teve aqui razão. "A Escravidão Africana no Brasil" continua tendo pouca receptividade, hoje ainda, entre nossos historiadores. Aliás, parte dos mal-entendidos sobre a escravismo e o mercado de trabalho brasileiro não estariam tendo curso se o livro pioneiro e exemplar que Goulart escreveu há meio século tivesse sido convenientemente meditado.
No final dá para perceber as muitas qualidades e as poucas lacunas presentes na obra sergiana. Ao lado da escrita apurada e cativante, característica de seu estilo, aparecem os textos sobre a literatura, marca de seu interesse pela especificidade da obra literária. Algo que o distinguia do outro grande historiador de sua geração, Caio Prado Júnior, como o próprio Sérgio assinala fraternalmente no prefácio do romance "Clara dos Anjos", de Lima Barreto.
As lacunas decorrem do horizonte necessariamente limitado que o enfoque regional paulista impõe a boa parte destes escritos. Em alguns casos não tinha por onde: as teses que Sérgio inspirou ou orientou na USP eram redigidas a partir da documentação disponível em São Paulo. Mesmo assim, surpreende a pouca ou nenhuma discussão com a fecunda historiografia nordestina contemporânea do autor ou a inexistência de observações sobre o Estado do Grão-Pará e Maranhão.
Enfim, mas aqui penso que o problema ainda continua inteirinho de pé, Sérgio, como os historiadores da sua e da nossa geração, parece não ter tirado nenhum ensinamento da derrocada da atividade missionária e do colonialismo português na África. Diante desse fracasso multissecular, esboçado desde os anos 1950 e completado em 1974, o "caráter nacional" e a formação colonial brasileira deveriam ser repensados à luz de sua singularidade e de sua especificidade histórica. Não há o menor traço disso neste livro.
Noutro registro, existem coisas deliciosas nesta coletânea. Assim, a introdução quase onírica ao livro de sua amiga de infância, Yolanda Penteado ("Tudo em Cor-de-rosa", 1976). No comentário ao livro "O Operário em Construção e Outros Poemas" (1979), de Vinicius de Moraes, seu companheiro de estripulias na juventude, Sérgio alude à camaradagem então nascente entre seus filhos e Vinicius. Trata-se, sobretudo, de Chico, cantor e fiel comparsa de Vinicius. Chico Buarque disse um dia que virou cantor, e não escritor, porque a imagem do pai mergulhado nos livros haviam-no intimidado. Chico gostaria de ter entrado mais na biblioteca, mas não ousava perturbar o pai. Neste prefácio vislumbra-se o recado inverso. Sérgio sugere que gostaria muito de entrar nos bares onde Chico e Vinicius batucavam canções. Não o fez para não intimidar o filho bem-amado. Mas invejou muito Vinicius que, através de Chico, reencontrava a longínqua juventude dos dois.

Luiz Felipe de Alencastro é historiador e professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). 

Luiz Felipe de Alencastro é historiador e professor do Instituto de Economia da Unicamp.
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