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Pedro Paulo de Abreu Funari - 21 - Dezembro de 1996
A abolição comparada
Foto da capa do livro Abolitionism in the United States and Brazil.
Abolitionism in the United States and Brazil.
Autor: Célia Marinho Azevedo
Editora: Garland Publishing - 200 páginas
Foto do(a) autor(a) Pedro Paulo de Abreu Funari

Raras são as obras de brasileiros publicadas no exterior e, ainda mais excepcionais, as que não se referem apenas ao Brasil, como é o caso deste estudo comparativo do abolicionismo. A abolição tem sido considerada muito mais do ponto de vista econômico e político do que de uma perspectiva social e cultural, e o trabalho de Célia Marinho Azevedo cobre também essa lacuna na historiografia sobre o tema (1).

A comparação entre o abolicionista William Lloyd Garrison -nascido no norte dos EUA e alheio à prática da escravidão- e Joaquim Nabuco, antigo senhor que se tornou opositor do sistema, permite observar a precisão estética da autora: "Falando com este senhor, Garrison sentiu-se, provavelmente, um verdadeiro 'outsider', incapaz de compreender a consciência e o mundo do dono de escravos. Pelo contrário, para o futuro líder abolicionista brasileiro, Joaquim Nabuco, a escravidão tinha sempre sido uma realidade tão natural como o ar que respirava.
A escravidão não era uma instituição esquisita da qual, às vezes, ouve-se falar ou encontra-se, face a face, apenas em circunstâncias excepcionais. A escravidão era o seu mundo e moldava sua consciência tão profundamente quanto o fazia para o dono de escravos que Garrison havia encontrado na prisão de Baltimore". Azevedo utiliza-se do conceito de "imaginário" para descrever a criação de figuras, formas e imagens, que permite aos agentes históricos, neste caso abolicionistas, produzirem sua "realidade" e sua "racionalidade". O livro pode ser lido como uma oposição constante entre duas culturas irredutíveis, cujas escravidões e abolicionismos guardam semelhanças externas, em parte derivadas da sua inserção em um contexto internacional comum, e profundas diferenças ideológicas.
Os diferentes caminhos dos dois países na sua emancipação política explicam, em grande parte, os divergentes abolicionismos. A Revolução Americana e a vitória do republicanismo construíram idéias sobre a identidade nacional, a igualdade política e social e a cidadania completamente diversas do compromisso pacífico entre a coroa portuguesa e a nova nação brasileira. Seguindo as idéias desenvolvidas por David Brion Davis, sobre a liberdade interior e a virtude, Azevedo considera que o abolicionismo norte-americano foi o resultado de um pensamento inovador, derivado de uma nova ética de benevolência, cujo ideal de responsabilidade individual substituiu os antigos padrões, em desintegração, da caridade e da responsabilidade social de cunho medieval. Esta filosofia, surgida no Reino Unido, no século 17, confiava na capacidade humana de aprimoramento moral e opunha-se tanto à predestinação calvinista como ao apego ritualístico do catolicismo tradicional.
A este "ethos" americano, opõe-se o caráter patriarcal da sociedade brasileira. Baseada na hierarquia e na proteção derivada das relações de compadrio, a sociedade católica brasileira, fundada no respeito à ordem vigente, que incluía a escravidão, só podia conceber o abolicionismo como... movimento dentro da lei! "Os abolicionistas brasileiros permaneceram, normalmente, determinados a combinar a abolição com o respeito das leis, o que, em um país escravista, equivalia a respeitar os interesses dos donos de escravos." A Guerra Civil Americana e seus mortos representam uma quebra com o Antigo Regime que, no Brasil, nunca houve. A passagem pacífica à emancipação, no Brasil, foi acompanhada pela reforma eleitoral de 1879, que reduziu os votantes de 1.114.066, em 1874, para apenas 145.296, em 1879 (2).
O abolicionismo norte-americano fundava-se na igualdade entre os homens, entre os quais estavam os negros, o que opunha a escravidão, a um só tempo, ao cristianismo e à República. Os senhores, pecadores e infratores da constituição "ipso facto", eram não apenas combatidos, como a própria escravidão nos EUA era considerada a mais detestável, a menos mitigada. É nesse contexto que, naquele país, se cria a noção de uma escravidão mais humana, porque fundada no direito romano, imperante alhures.
O Brasil passa a ser, na verdade, o paradigma dos benefícios de uma escravidão regrada: "No Brasil, no momento (i.e. 1833) a nação com maior população escrava, é ainda melhor. Ali o senhor é obrigado, sob ameaça de pena severa, a dar a seu escravo uma licença escrita para procurar outro dono sempre que o escravo assim o pedir; encontrada a pessoa interessada na compra, o magistrado fixa o preço" (David Child). Com o passar do tempo, o racismo norte-americano, denunciado por diversos abolicionistas, foi contrastado ao paraíso racial brasileiro, cuja fama internacional já era reconhecida em meados do século 19. Como lembra a autora, muitas dessas idéias abolicionistas sobre o inferno racial norte-americano e o paraíso racial brasileiro foram incorporadas pelos grandes estudiosos do nosso século, Gilberto Freyre e Frank Tannenbaum.
Célia Marinho Azevedo toca, "en passant", num ponto que talvez mereça alguma reflexão: André Rebouças, de origem africana, teve carreira notável graças ao esforço, trabalho, disciplina e estudo. As disciplinas estudadas incluíam latim, francês, inglês e a tradução dos filósofos gregos e romanos. Ora, também nos EUA, escravos, fugitivos e forros privilegiavam, da mesma forma, o estudo do latim e do grego, como demonstrou Shelley P. Haley (3). No contexto norte-americano, o domínio dos clássicos era sinal de igualdade, e quanto ao Brasil? Se aceitarmos a interpretação proposta pela autora, parece razoável supor que, ao contrário, o conhecimento erudito afastasse o indivíduo de ascendência africana dos escravos e libertos pobres e o identificasse como integrante da elite branca. Nesta direção caminha a constatação de Célia Marinho Azevedo a respeito da imagem positiva da África, nos círculos abolicionistas americanos, por oposição à terra de ignorantes, na concepção brasileira predominante. Cleópatra era negra nos EUA, enquanto Rebouças era branco, no Brasil.
Espera-se que a obra seja, o mais breve possível, traduzida e publicada entre nós. Desta forma, o público brasileiro poderá ter acesso a um trabalho cuja repercussão acadêmica já começou nos principais centros internacionais de pesquisa.

NOTAS:
1. Lacuna bem lembrada por Hebe Maria Mattos de Castro em "Estudos Afro-Asiáticos", nº 28, 1995, pág. 102.
2. De maneira independente, era o que também ressaltava Magnus Mõrner em "Ibero-Americana, Nordic Journal of Latin American Studies", nº 22, 1992, pág. 20.
3. Em "Feminist Theory and the Classics", organizado por N. S. Rabinowitz e A. Richlin, 1993, págs. 23-43. 

Pedro Paulo de Abreu Funari é professor do departamento de história da Unicamp.
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