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Paulo Herkenhoff - 20 - Novembro de 1996
A arte na solidão brasileira
Foto do(a) autor(a) Paulo Herkenhoff

A arte na solidão brasileira

 

PAULO HERKENHOFF

Esta é uma coletânea de ensaios sobre Debret, Guignard, Volpi, Segall e Amílcar de Castro. A introdução já vale o livro: é um diagnóstico da historiografia e da circulação social da arte. Para Naves, "o que faz nossa particularidade tem traços absolutamente esquisitos". Em sua explicação do Brasil, remonta à falta de lastro social da arte, ao "atraso lusitano", à morosidade perceptiva e à timidez formal -temas controvertidos que dariam teses. A dificuldade é fazer arte nessa solidão. O autor problematiza e liberta nossa história da iconografia e do anedotário de 1816 e 1922. Naves é tão claro que a forma difícil ganha uma vida de fácil compreensão. Conceitualmente densa, sua crítica envolve história, dimensão social da arte, filosofia e delicados devaneios fenomenológicos. Resenhamos os textos sobre Debret e Amílcar, os extremos do arco histórico.
Rodrigo Naves interpreta a presença do ideário neoclássico na forma e sobretudo no "ethos" da obra de Debret, numa situação em que "a cidade e a cultura do Rio de Janeiro (não) poderiam fornecer um ambiente propício à elaboração de um cenário restaurador das virtudes da cidade antiga". Em sua arte, o francês teria vivido no Brasil a frustração de não estar na Paris revolucionária. No entanto, a readaptação moral de seu projeto foi uma constante da vida de Debret(1768-1848). O artista da França revolucionária e republicana serviu tanto ao bonapartismo quanto ao Príncipe português, que se exila no Brasil, acossado pelas tropas napoleônicas. Foi perseguido lá e cá pela Restauração. Criou símbolos para um Império na América. Passou de pintor histórico a artista viajante. E no Brasil o seu projeto neoclássico encontrou limites concretos. A obra possível seria então a crítica do real mais do que a proposição de formas idealizadas e edificantes.
Entre dois Cláudios, o impasse de Debret é um drama antes moral do que estético, envolvendo a exequibilidade do projeto de arte europeu na América. O inconfidente Cláudio Manuel da Costa já havia denunciado a inadequação dos trópicos à natureza arcádica, antecipando-se ao mal-estar de Debret. Era impossível encontrar a vida pastoral ou o bosque de Virgílio na região de Vila Rica. "Não são estas as venturosas praias da Arcádia", reconhecia Cláudio Manuel da Costa ao anunciar sua "Fábula do Ribeirão do Carmo". Ainda assim, o poeta neoclássico escreveu sua poesia no cenário barroco... Também o lugar molda o olhar, como ocorreu em Pernambuco com dois pintores: Post(162-1680) e Nicolas Antoine Taunay(1755-1830). Assim, Taunay, no Rio, quase esquece da pintura de Claude Gelée(dito também C. Lorrain, 1600-1682) -o segundo Cláudio-, mas não abandona a sua teoria predominante da paisagem. Existe algo do estilo de Poussin(1594-1665) no carmim das roupas dos escravos de sua floresta tropical. O "capriccio" e as festas italianas, com sabor de quermesse flamenga e dança ao som de canções revolucionárias, cedem espaço a um encantamento. Taunay, o melhor pintor de 1816, realiza no Brasil paisagens e retratos dignos de nota.
Debret não era um bom artista, lembra Naves, mas foi fundamental para o país. Criou dois Brasis. Deixou o mais analítico corpus iconográfico de seu tempo e instituiu um lugar moderno da arte. Sua missão oficial básica não era produzir pintura neoclássica (afinal, como diz Naves, "no Brasil, simbólica é a dinastia real, e não os feitos do povo"). A Missão Francesa, no Rio de Janeiro, de 1816, foi o amplo processo de aparelhamento da cidade como capital, com artes e ofícios necessários à sua função de Corte. Portanto, não se deveria tanto pensar que "Debret parecia querer ocupar todos os espaços", quando dirigia a Academia, organizava exposições de arte, desenhava panos de boca e arquitetura temporária comemorativa, ou recebia pedidos de projetos de bandeiras e brasões. Afinal, ele veio para isso mesmo.
O sistema colonial português construíra um Brasil cego: sem aulas de pintura e arte civil. Desestimulara a retratística e o paisagismo para impedir a produção de ícones e propaganda das riquezas do país, como no caso do livro apreendido de Antonil. Inútil pensar que a Missão Francesa tivesse interrompido nosso barroco, cuja sustentação já falhava, como indicam os movimentos liberais de 1792 e 1794 (as Conjurações Mineira e Carioca), a literatura arcádica, as missões científicas baseadas em Lineu e a presença neoclássica na arquitetura de Belém e Vila Rica.
A aguda análise de Naves talvez pudesse dispensar atribuições de significação aos procedimentos técnicos triviais próprios da época de Debret. Assim, o uso de madeira e papel na arquitetura temporária das festas da realeza não assinalava necessariamente a precariedade do edifício social. A litografia, inventada no século 18, logo se tornou a mais importante forma de reprodução de imagens impressas. Produziam-se aquarelas já tendo em conta sua futura transformação em gravura. Naves compreendeu que Debret precisava transpor certos efeitos da aquarela para a gravura. Por isso, a comparação do estilo entre imagens de Debret e Rugendas(1802-1858) deve mencionar sobretudo o gravador Zwinger. Não se poderia falar de um retorno ao linearismo quando Debret litografava desenhos de David. O caráter "sujo" e as cores espaçadas e soltas em aquarelas não teriam outra conotação senão corresponder à etapa preparatória de imagens a litografar.
O olhar de Debret se desloca dos temas neoclássicos para o registro do viajante, com a vontade iluminista de dominar o mundo pelo conhecimento e classificação. Sua "Viagem Pitoresca" se constitui em esforço enciclopédico. Atende ao interesse pelo exótico. A função etnológica aparece na taxonomia, como a dos penteados das escravas, e na descrição de sua origem. Nas pranchas botânicas, a forma de apresentar as plantas é distante do desenho científico neoclássico e barroco. O livro de Naves analisa exaustivamente a ligação de Debret com o neoclassicismo no contexto brasileiro. Aponta-lhe dois sentidos: a interrogação sobre a relação entre arte e processo social e o rebaixamento do teor estético, epistemológico e ético da obra. Essa é a contribuição ímpar do livro de Naves, essencial ao olhar sobre o Brasil.
Rodrigo Naves trata a escultura de Amílcar de Castro sob o prisma de uma "ética do risco", originada nas lições de Guignard. Ressalta a presença de Oteiza na Bienal de 1957, mas que ainda mantinha a noção de sólido/vazio ("Teorema da Desocupação do Cubo") no recorte das formas. Seu peso não deve escamotear a precedência do método mais sintético (corte, dobra e solda) de Weissmann e suas noções de tempo. Oteiza cultivava conceitos de física, função e metafísica da escultura (como "Caixa Metafísica"), certamente menos adequados às discussões concretistas do ambiente brasileiro. Naves ressalta o enfrentamento da matéria na escultura de Amílcar para produzir clareza estrutural.
Ao discutir a ferrugem das esculturas de Amílcar de Castro como índice de "pictorialidade", Naves difere das posições de Michael Fried sobre o pictorial na escultura que, condenada a viver no mundo de objetos, deveria ser a mais bidimensional possível para escapar desta condição de existência. Naves discute a condição de "sociabilidade" (o passado colonial, a mineração e metalurgia) da oxidação. Na economia da forma, Amílcar define sua escultura como ordenamento de espaço através de duas ações exaustivas: "cortar" e "dobrar" o plano de aço (depois será cortar e deslocar). O sujeito se reintroduz no excesso de objetividade da arte concretista. Amílcar pode aqui ser comparado a Richard Serra e sua lista de dezenas de verbos para definir a escultura. Contrariamente, nos desdobramentos minimalistas, a redução objetivara o lema: "less is more" ("menos é mais") . Numa arte brasileira, sustenta Naves, temos a impossibilidade de sobras. A redução é, pois, ao essencial. 

Paulo Herkenhoff é crítico de arte.
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