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Alberto Luiz da Rocha Barros - 29 - Agosto de 1997
A bomba do juízo final
Foto do(a) autor(a) Alberto Luiz da Rocha Barros

A bomba do juízo final

 

A.L.DA ROCHA BARROS

A. L. DA ROCHA BARROS
em agosto de 1953, em Semipalatinsk, na União Soviética, explode a primeira bomba de hidrogênio -a superbomba-, seis meses antes do teste da bomba H americana. O diretor do projeto atômico soviético, o físico Kurchatov, ficou muito abalado: "Foi uma visão terrível e monstruosa. Esta arma não deve ser usada jamais". O premier Khruschov descreveu suas reações: "Quando fui nomeado secretário-geral do Partido Comunista da URSS, tomei conhecimento de todos os fatos sobre o poder nuclear e não consegui dormir durante vários dias. Então fiquei convencido de que jamais poderíamos usar estas armas e, quando compreendi isto, consegui dormir de novo". Devido ao poder destrutivo quase ilimitado da bomba, Khruschov a chamava de "bomba do juízo final". Ele rejeitou a posição de Stálin sobre a inevitabilidade da guerra entre os países capitalistas, declarando: "A coexistência pacífica ou a guerra mais destrutiva da história. Não há terceira via".
As pesquisas referentes à bomba de hidrogênio nos EUA seguiam devagar. A idéia básica era usar uma bomba atômica de fissão para provocar a "ignição" de uma massa muito grande de combustível termonuclear, ou seja, a energia liberada na reação de fissão provocaria a reação de fusão ("queima" termonuclear). Na fissão, o núcleo de urânio 235, por exemplo, divide-se em dois núcleos menores, bário e criptônio; no processo de fusão, ao contrário, os núcleos leves de hidrogênio combinam-se para formar um núcleo de hélio. Em ambos os casos, a diferença entre as massas inicial e final equivale a uma grande energia, segundo Einstein.
Já em 1942, Fermi sugeriu a Teller que uma bomba de fissão poderia ser usada como estopim para uma bomba de fusão de hidrogênio. Neste mesmo ano, Roosevelt autorizou o início do esforço para a obtenção da bomba atômica americana de urânio 235. Logo que os EUA conseguiram obter a bomba atômica, Teller tornou-se um ardoroso defensor da "guerra preventiva", propugnando que os soviéticos fossem bombardeados atomicamente enquanto houvesse supremacia americana.
Quanto à bomba de hidrogênio, pensava-se que a alta temperatura gerada pela bomba de fissão provocaria a reação de uma mistura de deutério e trítio (isótopos de hidrogênio). No entanto, o matemático Ulam demonstrou que o cálculo de Teller estava errado e que seria necessária uma quantidade muito maior de trítio para uma reação auto-sustentada. A obtenção de uma bomba de hidrogênio parecia então quase impraticável. Mas Teller e Ulam conseguiram uma configuração na qual a espoleta de fissão (bomba de urânio 235 ou plutônio) estava fisicamente separada do combustível termonuclear, que deveria ser comprimido e aquecido (donde o nome "bomba de dois estágios"). O primeiro teste dessa configuração foi realizado num atol do Pacífico, em novembro de 1952, mas não se tratava propriamente de uma bomba. Era uma engenhoca grande, desajeitada, que não podia ser adequadamente transportada.
O projeto soviético foi muito mais satisfatório. Sakharov teve a idéia de colocar camadas alternadas de combustível termonuclear e urânio 238, pois os nêutrons de alta energia liberados na reação deutério-trítio fissionavam o urânio 238. Esse conceito, que deu origem à superbomba soviética, foi chamado de "bolo em camadas".
Contudo, para ter significado no contexto diplomático, as armas atômicas deveriam ser transportáveis. Em 1953, o Politburo do partido aprovou a idéia de desenvolver mísseis balísticos intercontinentais.
As duas superpotências esforçavam-se para manter o "equilíbrio do terror". Esta "guerra fria" teve início no fim da Segunda Guerra Mundial, logo após o estabelecimento do projeto Manhattan para a construção da bomba atômica americana, autorizado por Roosevelt em meados de 1942. Em Los Alamos foram projetadas e fabricadas as bombas de urânio 235 e de plutônio. Bohr, o grande físico dinamarquês que aí trabalhava, preocupado com uma possível corrida armamentista atômica que romperia a unidade dos Aliados, tentou persuadir Churchill e Roosevelt a informar Stálin sobre a bomba. Devido à receptividade da idéia por Roosevelt, Bohr escreveu para Kapitsa descrevendo o projeto Manhattan em linhas gerais e propondo um controle internacional sobre as armas atômicas.
Truman, sucessor de Roosevelt, não acatou tal opinião e a 6 de agosto de 1945, uma bomba de urânio 235 foi lançada sobre a cidade japonesa de Hiroshima, provocando a morte de 145 mil pessoas. Para alguns, o Japão já estava praticamente derrotado e não era necessário lançar a bomba atômica. Mas o que Truman visava era que o Japão se rendesse aos EUA, evitando assim a presença de tropas soviéticas de ocupação. Os soviéticos perceberam isso e, em 9 de agosto de 1945, Stálin ordenou que o Exército Vermelho atacasse os japoneses na Manchúria. Neste mesmo dia, os EUA lançaram uma segunda bomba atômica, desta vez de plutônio, na cidade de Nagasaki. O Japão finalmente rendeu-se aos EUA. Stálin então teria dito a Kurchatov que o equilíbrio entre os aliados tinha sido rompido e que deveria obter a bomba soviética o mais rápido possível. O primeiro teste com a bomba soviética foi realizado nas estepes do Casaquistão em 29 de agosto de 1949, quatro anos depois da bomba americana.
Holloway conta em seu livro, com grande riqueza de pormenores, a história da obtenção da bomba soviética, que envolve lances de espionagem e a presença do Comissariado do Povo para Assuntos Internos (NKVD). Porém, ressalta que o êxito deveu-se sobretudo à grande competência dos físicos soviéticos, que se situavam entre os melhores do mundo.
A história começa com o Instituto de Ioffe, oficialmente conhecido como Instituto Físico-Técnico de Raios X do Estado. Ioffe, que foi discípulo de Rõntgen, o descobridor dos raios X, dizia que o instituto tinha sido criado com o objetivo de tornar a física a base da tecnologia socialista: a URSS tornou-se um dos principais centros de física do mundo, com profundos reflexos sobre sua industrialização. Muitos de seus membros adquiriram fama internacional, como Fok, Ivanenko, Landau, Frenkel, Kapitsa, Semenov, Artsimovich e Kurchatov. Também o físico teórico Gamow pertenceu a esse instituto e depois morou nos EUA. O físico brasileiro Mario Schenberg, da USP, trabalhou com Gamow nos EUA, na explicação do mecanismo explosivo das estrelas supernovas.
Os anos 20, com forte influência leninista, foram os anos dourados do Instituto de Ioffe, considerado o "berço da física soviética". Lênin afirmava que, tal como os bolcheviques, os cientistas lutavam em outra frente do progresso humano, merecendo assim, apesar das dificuldades da época, todo o apoio dos sovietes. Nos anos 30, começaram as pressões do stalinismo sobre os cientistas e, segundo Holloway, as escaramuças entre físicos e filósofos (melhor dizer, ideólogos). O uso que estes faziam dos escritos de Engels e particularmente do livro "Materialismo e Empiriocriticismo", de Lênin, irritou muito o físico Frenkel, que dirigia o departamento teórico do instituto.
Na realidade, era um abuso, um patrulhamento que atrapalhava o progresso científico, mas que tinha importância nas intrigas do carreirismo. A atitude desses ideólogos não lembrava Engels nem Lênin, mas antes o idealismo de Hegel, que na sua dissertação de 1801, "As Órbitas dos Planetas", demonstrava que não podia existir mais do que sete planetas; e, se isso contrariasse os fatos, pior para os fatos. Neste mesmo ano foi descoberto o oitavo planeta.
O assassinato de Kirov, secretário do Partido em Leningrado, em 1934, levou a um período de forte repressão, culminando com os processos de Moscou e o grande expurgo de 1937-38. Vários cientistas foram pegos pela máquina infernal da NKVD, inclusive Landau. Em 1938, Kapitsa escreveu a Stálin pedindo que Landau fosse solto, pois este era um dos maiores físicos teóricos do mundo, que tinha feito inimigos devido a sua irreverência e ao gosto de procurar erros nos outros, principalmente nos velhos acadêmicos. Foi solto um ano depois de ter sido preso e Kapitsa teve que se responsabilizar pela boa conduta de Landau junto ao temível chefe Beria da NKVD. Com a prisão de alguns de seus mais importantes cientistas, acusados de fantásticas conspirações contra o Estado, o stalinismo atrasou o esforço atômico soviético às vésperas da descoberta da fissão nuclear.
Quando Kurchatov deu início ao projeto da bomba atômica, pediu a Khariton que chefiasse um grupo de físicos e escolhesse o local onde seria construído o laboratório de pesquisa conhecido como Arzamas 16, logo apelidado de Los Arzamas, lembrando seu equivalente americano Los Alamos. Sakharov, que começou a trabalhar na superbomba termonuclear, mudou-se para Arzamas 16 em 1950 e dizia na ocasião acreditar que seu trabalho era absolutamente necessário para se atingir o equilíbrio no mundo.

Alberto Luiz da Rocha Barros é físico teórico e professor do Instituto de Física da USP. 

Alberto Luiz da Rocha Barros é físico teórico e professor na USP.
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