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Franklin de Matos - 68 - Fevereiro de 2000
A cadeia secreta
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A cadeia secreta

 


O pensamento materialista e a arte do diálogo do filósofo francês Denis Diderot são comentados por Franklin de Matos



Obras 1 - Filosofia e Política
398 págs., R$ 35,00
Obras 2 - Estética, Poética
e Contos

376 págs., R$ 33,00
Denis Diderot
Tradução, organização, notas e introdução:
J. Guinsburg
Prefácio: Roberto Romano
Perspectiva (Tel. 0/xx/11/3885-8388)

FRANKLIN DE MATOS


Nos idos de 1957, numa aula no Collège de France, Herbert Dieckmann advertia seus ouvintes sobre a singularidade da história da recepção de Denis Diderot (1712-1784). O Diderot que hoje apreciamos, dizia, não é o mesmo que conheceu o leitor do século 18, e tal disparidade não se deve às diferentes preferências de leitura das duas épocas (como no caso de Voltaire, por exemplo), mas a uma simples razão: os contemporâneos de Diderot não leram suas obras de que nós mais gostamos, pois nem todas foram então publicadas em livro e algumas só o foram postumamente.
Para o leitor culto do tempo, quem era esse autor que hoje desfrutamos em toda sua versatilidade -como filósofo, dramaturgo, romancista, contista, crítico de arte etc.? Era o principal diretor da "Enciclopédia", que dirigira com obstinação de 1750 a 1772; o autor de vários livros sobre filosofia do conhecimento, que a princípio tinha posições deístas e logo se tornara materialista: "Pensamentos Filosóficos", "Carta sobre os Cegos" (pelo qual merecera três meses de prisão), "Carta sobre os Surdos-Mudos", "Da Interpretação da Natureza" etc.; o dramaturgo que compusera peças de teatro e textos de poética, pretendendo renovar a cena francesa do tempo; e ainda o moralista que no fim da vida escrevera um livro sobre as relações entre Sêneca e Nero, certamente para explicar-se sobre as suas próprias com Catarina 2ª da Rússia. Se tivesse boa memória, talvez esse leitor ainda se lembrasse que, anos antes, bem no começo de sua carreira, Diderot cometera o que se podia julgar um pecadilho de mocidade, escrevendo um daqueles romances licenciosos então em moda, "Les Bijoux Indiscrets" ("Jóias Indiscretas").
Salvo o "Ensaio sobre Sêneca", todos os livros acima foram publicados antes de 1760, quando Diderot apostava principalmente em ganhar a opinião pública do tempo. No final dos anos 50, porém, sofrera dois grandes reveses: o Conselho do Rei cassara o privilégio de impressão da "Enciclopédia" e o público recebera com frieza sua peça "O Pai de Família" (enquanto obtinha êxito a comédia "Os Filósofos", de Palissot, que ridicularizava Diderot e seus amigos).
Essas adversidades devem ter contribuído para a retração do filósofo, que começou então a cultivar outro público, seleto e externo à França: um punhado de príncipes e aristocratas estrangeiros, assinantes de uma revista chamada "Correspondência Literária, Filosófica e Crítica", que os mantinha a par da vida cultural parisiense. Dirigindo-se a esse auditório reduzido, foi aí que Diderot publicou diversas obras fundamentais e que, em livro, só saíram depois de sua morte: os romances "A Religiosa" e "Jacques, o Fatalista" (então lido por Goethe), vários contos morais, todos os "Salões", que contêm sua crítica de arte, o famoso "Suplemento à Viagem de Bougainville" etc.
Se tivesse o privilégio de ler a "Correspondência", o leitor do tempo conheceria um Diderot ignorado pelo grande público, mas continuaria em desvantagem em relação a nós, pois, hoje, ele é isso tudo e ainda o autor de muitas obras decisivas, publicadas apenas no século 19, como "O Sonho de d'Alembert", o "Paradoxo sobre o Comediante" e "O Sobrinho de Rameau". Conforme observava Dieckmann, Diderot legou-nos cópias limpas de todos esses manuscritos e, por isso, não se pode dizer que tenham permanecido na gaveta porque os julgasse inacabados para a publicação. Na verdade, destinou-os a um terceiro tipo de público: a posteridade.
O essencial dessa obra múltipla e cheia de meandros, especial até em sua recepção, tem estado ao alcance do leitor brasileiro por meio de várias traduções. Os principais escritos póstumos acham-se disponíveis há uns bons anos. Quanto aos do primeiro bloco, talvez seja de se lamentar que ainda não haja versão dos "Pensamentos Filosóficos" e, com certeza, dos "Diálogos sobre o Filho Natural", indispensável para se entender o teatro do século 18 (mas, como o diálogo é inseparável da comédia "O Filho Natural", e como a peça é uma alegoria datada e meio insípida, é compreensível a resistência dos editores). Dos textos da "Correspondência", a lacuna mais óbvia é a dos "Salões", obra talvez especializada em demasia para uma tradução completa, mas que bem merecia uma boa antologia -até o momento, dispomos, em versão de Enid Abreu Dobránszky, do excerto "Ensaios sobre a Pintura" (Papirus, 1993), que Diderot entremeou aos "Salões" e no qual pretende explicitar seus critérios como crítico.

Novas traduções

A variedade de editoras e versões disponíveis torna muito bem-vindos esses dois volumes da Perspectiva, que nos oferecem uma coletânea aos cuidados de J. Guinsburg, não por acaso nosso mais assíduo tradutor de Diderot. A Cultrix e, em seguida, a Abril (Coleção "Os Pensadores") já haviam publicado trabalhos seus nos anos 60 e 70: a "Carta sobre os Cegos", a trilogia do "Sonho", o "Suplemento à Viagem", o "Paradoxo" e o "Diálogo de um Filósofo com a Marechala de...".
Às traduções antigas a nova edição junta uma porção de novas: "Autoridade Política" e "Belo" (dois verbetes enciclopédicos), a "Carta sobre os Surdos", o "Elogio de Richardson" (publicado num periódico do tempo); os "Princípios Filosóficos sobre a Matéria e o Movimento" e o "Plano de uma Universidade" (textos póstumos, o último enviado em 1775 a Catarina da Rússia); os contos "Isto não é um Conto", "Madame de la Carlière", "Colóquio de um Pai com seus Filhos", dois saborosos escritos de circunstância ("Sobre as Mulheres" e "Lamentações sobre meu Velho Robe") e ainda os "Ensaios sobre a Pintura" e um fragmento do "Salão de 1765", sobre Fragonard (todos publicados na "Correspondência").
Difícil escrever sobre uma obra tão múltipla. A seleção acima permite que a gente se demore um pouco sobre duas grandes vocações de Diderot: o materialismo e a conversação.
Deísta a princípio, Diderot não tarda em rumar para o materialismo, primeiro de modo hesitante, logo resolutamente. Na "Carta sobre os Cegos" (1749) e em seus primeiros escritos, a matéria "infinita" é constituída de átomos, cujas propriedades ainda não são determinadas. É com a "Interpretação da Natureza" (1753) -elo ausente na cadeia materialista da coletânea de Guinsburg...- que ela deixa de ser mera hipótese para tornar-se objeto de experiência. Nos "Princípios Filosóficos da Matéria" (1771), a hipótese da matéria em repouso é recusada em nome da molécula como "força ativa". Ao associar "molécula" e "energia", Diderot torna possível a grande audácia do "Sonho" (1769), ironicamente atribuída ao bem-comportado d'Alembert: a sensibilidade é uma qualidade geral e essencial da matéria.
Assim como os físicos distinguem força viva e morta, pode-se falar em sensibilidade ativa e "inerte", como o prova o fenômeno da assimilação, que é uma espécie de animalização da matéria inerte. Posto isto, não é difícil chegar ao elo seguinte da cadeia, aquele que passa do ser sensível ao pensante e garante afinal o que vinha anunciado no "Diálogo entre Diderot e d'Alembert", preâmbulo do "Sonho": a unidade da substância, a unidade da natureza humana e a continuidade do homem e da natureza.

A energia universal

A energia é uma força universal, mais ou menos liberada ou travada, comum a todos os seres e, portanto, também às linguagens. Apesar de não sistemática, a reflexão de Diderot possui uma unidade secreta, que pode ser atestada pela teoria da poesia surgida antes da "cosmologia" do "Sonho". Na "Carta sobre os Surdos" (1751), Diderot procura resolver em termos materialistas o problema da unidade do espírito. O cartesianismo tratara a questão postulando a existência de duas substâncias: a extensa, múltipla e divisível, e a pensante, una e indivisível. Os materialistas contestam esse dualismo: dizem que nossas idéias mais abstratas dependem da sensação, que a matéria pensa etc. Mas não podem deixar de responder de que modo, a partir da multiplicidade dos dados da percepção, pode-se explicar a unidade do espírito.
A "Carta" resolve o paradoxo ao afirmar uma teoria da relação entre o espírito e a língua: por meio da sensação, nossa alma percebe várias idéias simultaneamente, depois representadas de maneira sucessiva pelo discurso. Se a sensação pudesse comandar 20 bocas ao mesmo tempo, as múltiplas idéias percebidas instantaneamente também seriam expressas do mesmo modo. Na falta dessas bocas, juntaram-se várias idéias a uma só expressão.
Quando isso se dá, entramos no domínio da poesia. O que define seu "espírito" é justamente esse poder de transformar o discurso sucessivo em linguagem simultânea (em hieróglifo ou emblema). Quanto mais próxima dessa unidade original, mais poética e enérgica a expressão. Conforme observou Jacques Chouillet, dessa concepção decorrem várias consequências, algumas paradoxais. A primeira diz respeito à relação de proporção inversa entre a energia da linguagem e a quantidade de discurso: menos discurso, mais energia. Se assim é, pode-se supor ainda que o discurso mais enérgico e poético seria aquele que se reduzisse a uma palavra, a um gesto ou mesmo ao silêncio. A última consequência é que a beleza da linguagem depende do seu grau de energia, de onde resultam a poética e a dramaturgia que o filósofo explicitará anos depois.
Com essa dramaturgia, o teatro é restituído à sua materialidade, passando a ser tratado principalmente como espetáculo. Contra a tradição que o pensa como "poesia dramática", Diderot enfatiza -segundo Jean Starobinski- as dimensões "pré" e "extra-verbal" do teatro, entendendo-o como uma arte das inflexões e da pantomima, única linguagem capaz de resgatar a energia da natureza. É isso o que explica a enorme importância que seus escritos concedem à reflexão sobre um dos dados "materiais" mais decisivos do espetáculo: o desempenho do ator (ou, como se dizia, do comediante).

Diálogos e cartas

O ator é gesto e voz -é corpo. Há em Diderot um motivo que permanece subterrâneo o tempo todo e, às vezes, aflora à superfície. Certamente tomado de Platão, é o tema segundo o qual a energia do verbo depende da presença física de quem fala, enfraquecendo-se na obra escrita. Entre outras coisas, isso explica o gosto do filósofo pela arte da conversação, cultivada nos cafés e salões do século 18, forma refinada de sociabilidade, na qual ele sempre brilhava. Conforme H. Dieckmann, se Voltaire seduz, arrebata ou irrita, se Rousseau se apodera do leitor e desperta sua fúria, com Diderot, "entramos irresistivelmente no diálogo". Não é de espantar, pois, que na presente coletânea predominem gêneros como o diálogo, a carta (real ou fictícia, sempre uma conversação à distância) ou o conto dialogado (no qual um narrador se dirige a um ouvinte que o escuta e interrompe, por exemplo: "Isto não é um Conto", "Madame de la Carlière").
Alguém observou que o século 17 aposta principalmente na expressão "justa", a única que pode dizer aquilo que pensamos e, em geral, é a mais simples e natural, pois a verdade é simples e clara. A esse estilo corresponde um ideal de conhecimento que valoriza a estrutura sólida, o encadeamento lógico de idéias. O século 18 não nega as construções lógicas, mas deseja que elas permaneçam secretas. A exemplo do que se passa numa conversação, o que se valoriza aqui não é a clareza, mas a delicadeza, a "finesse" de expressão, que consiste em evitar os termos cortantes e fazer adivinhar muitas coisas sem dizê-las.
Vários exemplos atestam essa proximidade entre literatura e conversação. David Hume deixou a forma do "tratado" para se dedicar ao "ensaio", gênero "misto" que o credenciava a se tornar uma espécie de "embaixador" do saber junto ao mundo do salão. Voltaire mirava-se no exemplo de Horácio e reproduzia em suas obras a conversa mundana, com suas rupturas, digressões, alusões à atualidade e especialmente ao círculo do escritor, em cuja familiaridade o leitor é introduzido (a Sociedade do Templo, as cortes do Castelo de Sceaux, de Luís 15 e de Frederico 2º, os salões das madames du Châtelet e du Deffand etc.). Aliás, este traço distinguiria a obra voltairiana da produção literária comum, que se apoia na escola ou na originalidade pessoal de um autor.
Poucos como Diderot conseguiram imitar tão bem o desalinho da conversa e criar uma ordem secreta para a qual ela aponta. Certa vez, Paul Vernière escreveu que Diderot não é um improvisador genial -genial é a impressão de improvisação que ele dá. De certo modo, a idéia já estava em Goethe, para quem "O Sobrinho de Rameau" é uma rigorosa cadeia, que uma guirlanda de flores nos impede de enxergar (o mesmo pode ser dito do romance "Jacques, o Fatalista"). Quanto aos círculos ao quais pertence Diderot, eles são completamente diferentes dos de Voltaire. É bem verdade que, no delicioso "Diálogo com a Marechala", o filósofo surpreende sua interlocutora - "bela e devota como um anjo"- em plena "toilette", transportando o leitor, maliciosamente, para a intimidade dos duques de Broglie. Mas, em geral, existe uma espécie de aburguesamento dos meios aos quais a conversação remete: por analogia à comparação de Peter Szondi entre a tragédia francesa e o drama doméstico, eu diria que, com Diderot, a conversação deixa o espaço da corte e ganha os interiores burgueses. Se Voltaire evoca as diversas rodas aristocráticas às quais pertenceu, Diderot familiariza o leitor com grupos cuja importância se funda apenas no mérito intelectual ou moral.
Esse traço já se esboçara na "Carta sobre os Cegos", mas só se explicitará melhor com o passar do tempo. Já se disse que essa "Carta" é uma curiosa mistura de tratado filosófico e comunicação pessoal, endereçada a madame de Puisieux, então amante de seu autor, cujas ambições literárias eram conhecidas. Por meio dela, portanto, o leitor é familiarizado com "um mundo heteróclito de jovens escritores ou filósofos de origens diversas", ainda desconhecido, mas que pretende se definir pela superioridade intelectual.
Em breve esse mundo será substituído pela fina flor do enciclopedismo: a roda que se junta à volta de madame d'Epinay, evocada no prefácio da "Religiosa" e formada por Grimm, d'Holbach, o marquês de Croismare etc; ou o grupo que se vê no salão de mademoiselle de Lespinasse, retratado no "Sonho", e do qual fazem parte d'Alembert e o médico Bordeu. No "Sobrinho de Rameau", o clima é outro: caímos na balbúrdia do Café da Regência, onde o submundo das letras se mistura aos enxadristas tolos ou espirituosos. É bem verdade que Jean-François Rameau, interlocutor do "Eu", é apenas um talento fracassado, o cínico parasita que frequenta o clã dos antifilósofos; mas, de todo modo, não é qualquer um: é o sobrinho do mais festejado músico do tempo. Um caso à parte é o "Diálogo de um Pai com seus Filhos", que evoca um serão de família, em torno do pai de Diderot: não é de admirar que, desta vez, o círculo íntimo se notabilize por outro tipo de superioridade, a moral.
A estética da conversação, que mobiliza um anedotário de atualidade, e a aposta no leitor futuro são termos até certo ponto excludentes, mas Diderot os tratava com a desenvoltura dos grandes gênios. Segundo Ernest Robert Curtius, o que explica sua superioridade sobre seus contemporâneos é justamente esse talento de fazer a universalidade aparecer nas coisas singulares. O melhor exemplo é "O Sobrinho de Rameau": nunca o universal brilhou tanto em algo tão trivial quanto um bate-papo de boteco.


Franklin de Matos é professor de estética no departamento de filosofia da USP, tradutor de "Discurso sobre a Poesia Dramática", de Diderot (Brasiliense) e autor de "O Filósofo e o Comediante - Ensaios sobre Literatura e Filosofia na Ilustração" (Editora da UFMG, no prelo).

Franklin de Matos é professor do departamento de filosofia da USP.
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