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Rubens Rodrigues Torres Filho - 2 - Maio de 1995
A caneta do Sr. Krug
Foto do(a) autor(a) Rubens Rodrigues Torres Filho

A caneta do sr. Krug

 

RUBENS RODRIGUES TORRES FILHO

Como o Senso Comum Compreende a Filosofia
G. F. Hegel
seguido de A Contingência em Hegel"
Jean-Marie Lardic
Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro
Paz e Terra, 128 págs.
R$ 11,00

O Sr. Krug acredita ter feito um achado maravilhoso ao exigir (do idealista) a dedução de alguma coisa tão determinada (sua pena de escrever). Considera-se com isso completamente ao abrigo do idealismo e pensa que o recentíssimo sistema idealista poderia, se resolvesse o problema, ficar fora do alcance de todas as objeções ulteriores. Ele ao menos não hesitaria em assinar imediatamente, com sua pena de escrever, embaixo do sistema inteiro que a tivesse deduzido". No estilo dessa boutade" (pág. 54), a resenha inteira que Hegel faz dos escritos filosóficos de um certo Wilhelm Traugott Krug (pois nisso consiste o artigo Como o Senso Comum Toma a Filosofia", datado de 1802) é um texto delicioso em seu sarcasmo brilhante e feroz -nele encontramos um Hegel ainda embrionário, da época em que trabalhava ombro a ombro" com Schelling (expressão de Horst Fuhrmans, Schelling Briefe", I, 477) na redação da revista Kritisches Journal der Philosophie", emprestando toda a sua verve" à filosofia para que esta interpele o senso comum e lhe pergunte: Por quem me tomas? Desde essa época (de Iena) senso comum", entendimento" e dogmatismo" são para ele expressões praticamente sinônimas e o ponto de vista é aquele, já clássico, lapidarmente formulado na introdução do livro de 1801 sobre a diferença de Fichte e Schelling: A especulação entende o bom senso perfeitamente, mas o bom senso não entende o fazer da especulação" (Ed. Suhrkamp, II, 31).
Como, porém, não se trata de escrever a resenha de uma resenha, coisa que logicamente poderia conduzir ao infinito ou ao paradoxo, convém observar logo que o livro publicado por Jean-Marie Lardic não é constituído unicamente pela tradução desse texto e que essas 15 páginas de Hegel, de acordo com o uso francês de edição de clássicos, vêm antecedidas por um extenso prefácio historiográfico e seguidas de um ensaio teórico no qual, não sem certa artificialidade, irão servir de ilustração ou pretexto para o estudo da relação entre o pensamento dialético e o problema filosófico da contingência.
Também Lardic, cujo propósito neste pequeno livro parece ter sido essencialmente didático, inicia sua apresentação no nível, se não do senso comum, pelo menos do lugar comum: O ser contingente em sua individualidade sempre constituiu um desafio para a filosofia. E assim como Platão perguntou-se se devia chegar até a conceder à lama proceder de uma idéia, também Hegel encontrou com a pena de escrever de Krug o exemplo sobre o qual exercer sua sagacidade especulativa" (pág. 13). O comentador francês pretende mostrar, através da leitura correta dos textos, que, de fato, a resenha de 1802 enfrenta com brio o repto impertinente do vaidoso Krug, tomando a defesa de genuíno caráter especulativo -impermeável para o senso comum- do idealismo transcendental (Fichte e Schelling) e da filosofia-da-natureza (Schelling), mas que somente a descoberta do poder do negativo, anunciada cinco anos depois, na Fenomenologia do Espírito", dará efetivamente a Hegel os instrumentos para resolver de maneira satisfatória e exaustiva a questão (aí implicada) do estatuto ontológico do contingente.
A descoberta por Kant de uma dimensão transcendental da consciência, condição a priori de possibilidade da experiência, despertou em seus sucessores imediatos a esperança e a convicção de que se tornara enfim realizável o projeto, que atribuíam a Espinosa, de um sistema filosófico capaz de, a partir do absoluto, dar conta da totalidade do real. A intuição intelectual, núcleo da egoidade", identidade em ato de sujeito e objeto acessível até para nós homens (Kant limitara esse privilégio unicamente ao intelecto arquétipo), garantiria à filosofia o direito de proceder por construção, more geometrico", à maneira das matemáticas (pretensão ilegítima para Kant, dado o caráter meramente discursivo, e não intuitivo, do saber filosófico).
Muitas foram as diferenças", especialmente quanto a saber qual seria o autêntico sujeito-objeto, princípio original e final de todas as coisas, elo último do ser e do saber. Certo é que Hegel, na ocasião, compartilhou desse querer de seus contemporâneos, confiou na legitimidade desta busca, e aquele fazer" da especulação que ele contrapunha ao bom senso" era, também para ele, basicamente um construir" -até perceber que a adoção do paradigma da construção, longe de ser uma conquista, traz para dentro da filosofia aquela exterioridade abstrata que é própria do saber matemático e acaba por estabelecer e fixar uma separação, tão ou mais grave quanto aquela teimosamente mantida pelo senso comum com pretensões a erigir-se em filosofia, entre o real e o racional.
Neste ponto entrariam em cena, na exposição dramatizada de Lardic, a dupla negação e a mediação dialética, como único remédio eficaz contra a irredutibilidade da existência (interpretada por Hegel como resíduo dogmático" em Kant, mas que, na verdade, nunca incomodou os outros dois membros" daquele trio desigual de grandes pensadores que o senso comum de hoje está habituado a reunir sob o rótulo de idealismo alemão"). Torna-se enfim verdade que todo racional é real e todo real é racional": pois esse real agora é o efetivo" (das Wirkliche"), resultado do jogo das modalidades" (como diz Gerhard Schmidt, em artigo de 1963, principal referência de nosso autor), esse jogo pelo qual o necessário e o contingente, meramente possível, deixam de hostilizar-se, como na mera aparência, para se completar num movimento ternário e unitário de negação e superação. Nessa efetividade desaparece a heterogeneidade entre o finito e o infinito, para dar lugar a uma gradação quanto ao êxito da mediação, em que o Espírito" se manifesta cada vez melhor.
O idealismo anterior, do mesmo modo, foi devidamente sobressumido". Sem a identidade da identidade e da diferença, sem reconhecer a negação inscrita no próprio âmago do finito, que por si só se anula e nesse movimento se funde" com o infinito, a coincidência do a priori" e do a posteriori" afirmada pelos pós-kantianos históricos acaba se revelando... mera coincidência.
Ao contrário -reproduzindo o próprio texto de Jean-Marie Lardic, que para dar conta de seu problema exibe também, para benefício do leitor iniciante, todas as virtudes do bom professor, esclarecendo passo a passo os principais elementos e articulações disso que Lebrun (em La Patience du Concept", 1972) escolheu chamar de discurso hegeliano"- eis como as coisas se passam agora (cf. pág. 95): O contingente (zufãllig') é o que está fadado a cair (zu fallen'), não cansa de nos lembrar Hegel. Essa existência carregada de negatividade constitui, portanto, uma das ocasiões privilegiadas para o exercício da dialética. O que sucumbe (zugrunde gehen') indica, mais que qualquer outra coisa, a relação negativa ao outro, ao próprio fundamento do real (zum Grunde gehen')."
Assim, se para a dialética -ou em boa dialética", como repete volta e meia nosso convicto autor- parece mais natural deduzir a priori" o livro futuro de um escritor notável que a caneta de um escritor insignificante, não é pela futilidade desta última tarefa, mas por uma questão de grau ou (expressão de Lardic) de densidade de ser". O sistema que tem como mola interna a negatividade dialética seria portanto o único digno de ser legitimamente assinado pela caneta deduzida do Sr. Krug -só que esta assinatura seria ao mesmo tempo, para ela, a confissão da própria nulidade.
A tradução clara e agradável oferecida ao leitor brasileiro parece, mesmo sem o cotejo do original, digna de aprovação (contou inclusive com o luxo de um revisor técnico), exceto por algumas ressalvas, das quais destaco as mais interessantes. O feio galicismo o conteúdo o mais empírico" poderia ser substituído pela fórmula o mais empírico dos conteúdos", que traduz exatamente aquela locução francesa. Muitas vezes a palavra important" significa em francês simplesmente grande": é o caso da enigmática expressão uma substancialização sempre mais importante" (pág. 114), na verdade cada vez maior". Na pág. 50, aparece a palavra inconcebilidade", que é literalmente inconcebível. O original devia trazer inconcevabilité", já que o alemão (texto de Hegel) é Unbegreiflichkeit": neste caso, a única palavra viável em português seria inconceptibilidade". Enfim, numa nota na pág. 123, lemos: ver para além da carta, no espírito do kantismo, o convite a superá-lo". O francês tem uma palavra única (lettre") para traduzir duas do alemão: Brief" (carta", que não é o caso) e Buchstabe" (letra"). Aqui se trata da clássica oposição entre o espírito e a letra, de fecunda função na época do pós-kantismo e de remota inspiração teológica -que é possível conferir ainda hoje naquela inscrição que se lê ao lado do teatro Colón: Litteram Spiritvs Vivificat. 

Rubens Rodrigues Torres Filho é professor aposentado do departamento de filosofia da USP.
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