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Célia Pedrosa - 81 - Janeiro de 2002
A casa do poeta
Foto do(a) autor(a) Célia Pedrosa

A casa do poeta

Henriqueta Lisboa. Poesia Traduzida
Organização, introdução e notas: Reinaldo Marques e Maria Eneida Victor Farias
Editora UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4650)
487 págs., R$ 37,00

CELIA PEDROSA

Deste recente lançamento, uma coletânea de poemas traduzidos pela poeta mineira Henriqueta Lisboa (1901-1985) -alguns inéditos, a maioria publicada em antologias e suplementos literários entre 1961 e 1970-, pode-se dizer sem exagero que é primoroso. Nele, o delicado requinte gráfico faz eco ao também delicado gesto de busca e recolha de traduções dispersas de autores vários, bem como de seus respectivos originais, de modo a contribuir para lançar luz sobre aspectos pouco conhecidos da atividade literária de uma dedicada amante da poesia, que escolheu fazer "do silêncio e da sombra sua morada", conforme declarou um dia.
Além disso, a publicação concilia as tarefas de divulgar a produção da instituição universitária a que se vincula e de dar a conhecer trabalhos que contribuam para o adensamento da discussão intelectual -nesse caso específico, a produção poética e suas relações com outras práticas discursivas, como a da tradução. Assim, essa coletânea torna pública uma etapa da pesquisa desenvolvida por professores da Universidade Federal de Minas Gerais em torno do tema "Acervo de Escritores Mineiros", cuja finalidade principal é a organização e preservação do acervo bibliográfico e documental dos escritores Murilo Rubião, Oswaldo França Júnior, Abgar Renault e Cyro dos Anjos, além do de Henriqueta, e das coleções Alexandre Eulálio, Octavio Dias Leite, Aníbal Machado e José Oswaldo de Araújo.
"Poesia Traduzida" põe o leitor em contato com escritores pouco conhecidos pelo público leigo -Dante Alighieri, Luís de Góngora, Friedrich Schiller, Giacomo Leopardi, José Martí, Giuseppe Ungaretti, Gabriela Mistral, Jorge Guillén, Cesare Pavese, Archibald MacLeish-, tão diversos e distantes, mas dotados agora de uma proximidade instigante, propiciada pela amorosa seleção da poeta-tradutora. Tal proximidade eletiva propicia um novo ângulo de leitura da personalidade lírica da poeta, que pode ser então compreendida como efeito de uma construção intertextual de leituras que faz interagirem fatores especificamente biográficos e contextuais, de um lado, e formas e valores mobilizados a partir do diálogo tradutório com a tradição da literatura ocidental, de outro.
Pensando essa interação, vamos ao encontro de um tópico fundamental à crítica literária contemporânea, que tem se dedicado à discussão do significado solipsista dos conceitos de obra e de autoria individual -discussão que encontra eco nos estudos de base linguística e psicanalítica também sobre a própria prática da tradução. E, principalmente, mobilizamos dados que permitem redimensionar a compreensão do caráter universalista e sublime da poesia de Henriqueta Lisboa. Em razão desse caráter, ela, com outros poetas da chamada "geração 45" (entre os quais ressalta a voz também feminina de Cecília Meirelles, cuja obra em boa hora começa a ser relida), teve sua significação minimizada, por contraposição à dicção modernista hegemônica, fundada numa poética da ruptura e da paródia direcionada para a figuração do cotidiano em suas marcas locais e nacionais.
Nos últimos anos, uma outra produtiva demanda de nossa crítica literária tem sido justamente a releitura da tradição moderna e do discurso historiográfico que a constituiu, visando tanto a uma compreensão mais ampla e matizada de autores e obras canônicos quanto à identificação de procedimentos de exclusão e/ou minimização que relegaram à insignificância inúmeros aspectos de nossa vida literária e cultural. O distanciamento temporal, bem como a saudável fragilização de dogmas utópicos e vanguardistas, não só permite como obriga a repensar antinomias e unanimidades. E, em tempos como os nossos, em que a experiência do cotidiano se confunde com a adesão ao imaginário massificado e em que a ideologia da globalização econômica e cultural se afirma como única forma de convivência e comunhão, talvez seja importante repensar o valor estético e político da demanda poética pelo sublime e por um universal outro, ainda não institucionalizado, em que se integrem diferenças assim então liberadas de sua fragmentação fundamentalista.
A esse propósito, não custa nada lembrar aqui que Antonio Candido, com a acuidade que lhe é própria, já nos alertou para a necessidade de relativizar antinomias, propondo, por exemplo, uma reavaliação positiva da vontade simbolista do sublime, não só metafísico como propriamente religioso, em tempos de anemia parnasiana e realista. Nessa sua postulação ecoa o dramático apelo feito por Mário de Andrade, em sua avaliação crítica do movimento modernista, em prol da fé no mito da verdade universal, como antídoto à elasticidade informe e oportunista de verdades transitórias e à escravidão às aparências fugazes. Na poesia de Henriqueta Lisboa, encontramos uma manifestação dessa fé -fé na poesia como experiência de busca, figurada no único poema de Schiller que ela escolhe traduzir: "Não é uma ilusão fugaz/ com que se ofusca o néscio. Mas/ o alto prenúncio, em nosso peito, de que o destino humano é mais perfeito".
Não por acaso, a poesia que abre a coletânea é a de Dante Alighieri, de quem Henriqueta escolhe, além de sonetos da "Vita Nuova", a "Divina Comédia". Não a dos cantos do "Inferno" ou do "Paraíso", mas a do "Purgatório", que para ela é a casa do poeta. Pois, inserindo a própria idéia de temporalidade e de diferença na eternidade imóvel da dicotomia Céu/ Inferno que antes fundava o imaginário religioso, o Purgatório representa a existência humana, e nela a poesia, como reino do fazer, em que se carregam as pedras da construção, em que se alertam os sentidos para os mais tênues matizes, em que a imaginação transporta rios e montanhas do cotidiano para uma geografia mais alta, em nome da liberdade de criar e da vontade de comunhão. Essa liberdade e vontade fazem da poesia e da tradução práticas afins e complementares, diálogo de diferenças em busca da utopia de uma língua universal, como queria Walter Benjamin, como Henriqueta Lisboa ensaia e os organizadores desse livro nos sugerem, nesses tempos de barbárie e apatia.


Celia Pedrosa é professora de teoria da literatura e literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense.

Célia Pedrosa é professora de teoria da literatura e literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense.
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