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Flávio dos Santos Gomes - 107 - Junho de 2016
A cidadania negra
Dimensões do cotidiano nas últimas décadas do século XIX
Foto do(a) autor(a) Flávio dos Santos Gomes

FLÁVIO DOS SANTOS GOMES

A cidadania negra

Dimensões do cotidiano nas últimas décadas do século XIX

 

 

O JOGO DA DISSIMULAÇÃO: ABOLIÇÃO E CIDADANIA NEGRA NO BRASIL

Wlamyra R. de Albuquerque

Companhia das Letras

320 p., R$ 52,00

 

Um livro excepcional. Não apenas mais uma tese acadêmica a ser publicada. Trata-se de estudo com uma original abordagem sobre os caminhos da cidadania no Brasil entre as últimas décadas do século 19 e o alvorecer republicano.

Wlamyra Albuquerque, professora da Universidade Federal da Bahia, da geração de historiadores que tem apostado na história social, combina pesquisa empírica, imaginação histórica e escrita envolvente. Em livro anterior (Algazarra nas Ruas – Comemorações da independência na Bahia, Cecult/Unicamp, 1999) a autora já nos tinha levado às ruas. Agora vasculha as dimensões do cotidiano de milhares de homens e mulheres, vidas, atitudes, significados, personagens, intenções, gestos, palavras, imagens e idéias.

O que estava (ou ainda está) em jogo? Contornos, alargamentos, limites e expectativas da cidadania para a população negra. Políticas higienistas e territórios ideológicos são confrontados num quadro de racialização crescente.

 

Carta a Ruy Barbosa

 

A abolição não é vista como uma data-evento simplesmente, mas um processo em que hierarquias sociais organizam e são organizadas – num jogo – por personagens inúmeros. O cenário principal, a Bahia, não faz da obra ”história regional”. O leitor vai encontrar-se com Rui Barbosa no Rio de Janeiro a ler uma carta a ele enviada por libertos que pediam educação para seus filhos; vai surpreender os conselheiros do Imperador a recomendarem a expulsão de africanos que atravessaram o Atlântico munidos de passaporte inglês e aportaram na Bahia para fazer negócio; ou acompanhará Silva Jardim, agitador republicano de estatura nacional, a enfrentar populares monarquistas nas ruas de Salvador.

O livro evoca questões que novos estudos podem e devem seguir. Espaços sociais recriados entre conflitos, idéias, interesses e o papel da cidadania negra nisso tudo, insisto seguindo a autora. Para além da ideologia senhorial, da fábrica social das elites e das condições de vida e trabalho, como pensavam e agiam homens e mulheres negros candidatos a cidadãos?

A organização do livro ajuda. Não é um calhamaço à espera de sonolentas leituras. A autora – em eixos – persegue histórias, eventos, vivências e pessoas. As evidências da pesquisa não são apresentadas como fim moral de uma história. Antes, convida o leitor a acompanhar, participar do jogo. São resenhados conflitos de ruas, comícios de republicanos, carnavais e candomblés de negros.

Se a questão racial já se colocava (nas ruas, no parlamento e nos gabinetes) nos anos 1820 a 1830 no Brasil – como vários estudos sobre a independência têm demonstrado –, a historiadora aponta para as décadas de 1870 e 1880, esclarecendo como o “processo emancipacionista foi marcado pela profunda racialização das relações sociais”. 

 

Abolição nas ruas

 

A Abolição é revisitada com menos Joaquim Nabuco, juristas, letrados, jornalistas e abolicionistas ilustres. O leitor é retirado do conforto dos gabinetes e da rotina das sessões parlamentares e jogado (com todo cuidado e “ferramentas delicadas”, lembrem-se!) nas ruas. Ali vê – juntos e misturados – desde feiticeiros a lideranças republicanas. Também encontramos cidadãos negros ou negros cidadãos. Todos quase. E para pensar a idéia de cidadania negra, a autora nos poupa da falsa eloqüência, supostamente bem intencionada, de interpretações das elites e do vocabulário cientificista da época.  Cidadania aí não vira uma simples coisa, categoria, abstração. Nas suas reinvenções dialógicas ela é experimentada.  Para Albuquerque, numa sociedade racializada pela escravidão chegava a hora – no pós-emancipação – de transformar em negros os ex-escravos, na verdade os descendentes de africanos em geral. Uma transformação nunca de mão única e com a ação ativa de vários setores sociais.

Num capítulo que destaco, o terceiro, a pesquisadora analisa as ações da Guarda Negra na Bahia, uma onda de conflitos – que igualmente surgem em cidades como Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Luís e Santos – entre libertos e republicanos nos anos de 1888 e 1890. Houve batalhas urbanas que no livro ganham cor e novos significados em torno dos debates sobre emancipação, propaganda republicana e mobilização política da população negra.

Embora cercadas pelas imagens jornalísticas – entre ataques e defesas de abolicionistas, republicanos, monarquistas –, as ações da Guarda Negra e a mobilização política em torno dela articulavam percepções e expectativas da população negra (não apenas os libertos de 13 de maio) sobre raça, limites da cidadania e autonomia para suas vidas. Ainda sabemos pouco sobre esses eventos e seus significados. O que temos é uma memória histórica apagada que sucumbiu diante das idéias de “gratidão” negra pela Abolição.

O emaranhado de lutas, de disputas, de projetos e de expectativas foi com o tempo varrido da história. Tensões diversas marcavam os temas raciais enredados com o da cidadania. A problemática racial e seus desdobramentos não eram inexistentes e nem estavam ausentes. Talvez silenciados pela sociedade, que sobre eles construiu uma outra memória. E mais ainda, silenciados pela historiografia.

Nas últimas décadas da escravidão e primeiros anos da pós-emancipação a questão racial permeou decisões de governo, debates parlamentares, conflitos de ruas, tratados de higienistas, crônicas e noticiários jornalísticos, mas também o cotidiano de homens e mulheres nas cidades e áreas rurais.

 

Estilo próprio

 

Wlamyra Albuquerque, com estilo próprio e pesquisa excepcional, revela, cuidadosamente, “os jogos da dissimulação” que envolveu esse penoso processo histórico. Cuidadosamente, pois não caiu em armadilhas conceituais ou buscou um salvo conduto para heróis, vítimas ou algozes. Sua análise (e narrativa) contempla o que o próprio título do livro evoca. Dissimulação não como fingimento ou hipocrisia banal, mas sim intenções, desejos e disfarces. Numa arena política de expectativas, memórias do passado e horizontes (avaliados como sombrios para muitos), atuam letrados, autoridades, estadistas, fazendeiros, africanos e a população negra nativa. Um jogo. Apostar nesse livro é ganho certo!

Flávio dos Santos Gomes é professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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