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Antônio A. P. Videira - 28 - Julho de 1997
A ciência entre nós
Foto do(a) autor(a) Antônio A. P. Videira

A ciência entre nós

 

ANTONIO VIDEIRA

Uma das mais famosas teses sobre o processo de desenvolvimento científico no Brasil afirma que o surgimento e a profissionalização da ciência entre nós é fenômeno recente. Em geral, acredita-se que durante o período colonial não teria ocorrido uma atividade técnico-científica regular, realizada dentro de instituições específicas, capaz de gerar produtos tecnológicos ou científicos e formar recursos humanos. Como complemento à tese, afirma-se também que, quando houve alguma tentativa no sentido de implementar a ciência e a técnica em nosso país, essa ação foi exógena. Em outros termos, havendo alguma tentativa de se fazer ciência, esta última seria explicada por razões determinadas pela metrópole.
"Inexistência" ou "passividade", nada mais restaria para os que aqui trabalhavam. O período histórico que pode ser apresentado como exceção bem conhecida para essa tese é o último quartel do século 18, quando foram criadas, principalmente no Rio de Janeiro, diversas instituições e publicações destinadas à ciência e sua divulgação. Mas, mesmo tais exceções deveriam ser compreendidas como tentativas isoladas, levadas a cabo por brasileiros que haviam estudado, em sua maioria, na Europa, ou por estrangeiros aqui radicados, constituindo-se assim uma situação que os desconectaria do espaço e do tempo em que procuravam inserir as novas idéias e atitudes científicas. A situação só começaria a modificar-se com a chegada de d. João 6º para aqui estabelecer a sede do império português, o que o levou a criar muitas instituições de ensino e pesquisa.
Até bem pouco tempo, muitos acreditavam no que acabamos de descrever. Chegavam mesmo a dizer que a ciência somente começou a existir e a ser praticada entre nós, ao menos segundo critérios "profissionais", em nosso século, após a criação da Universidade de São Paulo (1934) e da Universidade do Distrito Federal (1935). No entanto, a partir dos anos 80, essa imagem do surgimento e da institucionalização da ciência no Brasil começou a ser revista.
Nos últimos 20 anos vem sendo produzida uma literatura que afirma o contrário. É dentro dessa linha que se acha o livro que reúne as conclusões a que Silvia Figueirôa chegou em seu mestrado e doutorado. Ela mostra que não apenas a ciência era aqui praticada desde o tempo da colônia, mas também que as razões e os objetivos dessa prática originavam-se nos próprios lugares em que ocorria. Analisa, como exemplo dessa nova postura, o caso da introdução e institucionalização das ciências geológicas em nosso país, entre 1875 e 1934.
Para realizar tal objetivo, Figueirôa defende a necessidade de se rediscutir a concepção de ciência subjacente à tese da inexistência-passividade. Essa concepção é eurocêntrica, fundamentalmente preocupada em analisar a história das grandes descobertas e teorias científicas. Em outras palavras, é uma história que enfatiza os vencedores e heróis.
A partir de estudos feitos por autores como Kuhn, Barnes e Latour, alguns historiadores da ciência (dentre os quais os latino-americanos Lafuente e Vessuri) passaram a defender uma concepção mais complexa da ciência. Nela, o cientista ou intelectual latino-americano, ou ainda o estrangeiro que aqui trabalhou, não podem ser compreendidos segundo critérios que existiam e eram adotados na Europa e nos EUA já no século 19. É preciso qualificá-los de outro modo; caso contrário, muito dificilmente deixarão de ser vistos como diletantes ou semiprofissionais. Figueirôa dedica-se, assim, a apresentar a concepção de ciência que adota, usualmente conhecida como história social da ciência.
Demarcando o território conceitual em que vai se movimentar, Figueirôa passa a examinar de que forma se deu a introdução e a profissionalização da geologia no Brasil. Um dos seus fios condutores é constituído pelo papel do Estado como incentivador da prática científica. Como é fácil ver, a presença do Estado nesse processo enfatizou uma concepção utilitarista da ciência: uma ciência que fosse capaz de propor soluções, ajudando a concretizá-las, para os vários problemas que assolavam o país.
No entanto, como a autora salienta, não foram apenas os problemas colocados pela agricultura e mineração que determinaram os modos de institucionalização da geologia. As ações realizadas pelo Estado deixaram espaço suficiente para que os cientistas pudessem tentar fazer valer as suas concepções de ciência, dando origem, em alguns casos, a conflitos com as elites políticas. Dentre os muitos casos que apresenta e analisa em seu livro, Figueirôa concede espaço significativo a Orville Derby, geólogo americano, que trabalhou por várias décadas em São Paulo, sendo um dos principais responsáveis pela criação e primeira estrutura profissional da famosa Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, e que se demitiu em 1905 quando o governo de São Paulo redirecionou as atividades da Comissão.
O livro de Figueirôa é resultado de um sério trabalho profissional, bastando para isso observar as numerosas fontes arquivísticas que consultou para fundamentar suas conclusões. Mesmo em se tratando de um estudo dentro do domínio da história da ciência, seu livro merece ser lido por todo aquele que se interessa por assuntos ligados ao Brasil.

Antonio Augusto Passos Videira é professor do departamento de filosofia da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e pesquisador do Observatório Nacional/CNPq. 

Antônio A. P. Videira é professor de filosofia da UERJ.
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