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Evaldo Cabral de Mello - 76 - Julho de 2001
A civilização planetária
Foto da capa do livro Um estudo crítico da história
Um estudo crítico da história
Autor: Hélio Jaguaribe
Editora: Paz e Terra - 1472 páginas
Foto do(a) autor(a) Evaldo Cabral de Mello

A civilização planetária

O historiador Evaldo Cabral de Mello critica o último livro de Helio Jaguaribe 


Em vista das dimensões do livro de Helio Jaguaribe e da variedade dos temas abordados, esta recensão limitar-se-á ao atacado, vale dizer, à concepção geral da obra.
"Um Estudo Crítico da História" propõe-se a ser uma sociologia da história das civilizações. O vocábulo "história", sabemos todos, não é unívoco, de vez que designa, por um lado, o passado e, por outro, sua escrita, isto é, o gênero historiográfico. Devido a essa duplicidade de acepções, a expressão "filosofia da história" pode denotar seja a formulação das regularidades da história ou a procura de um sentido último, transcendente ou imanente, para a experiência coletiva do homem, como em Vico, Hegel e companhia; seja a reflexão epistemológica sobre as condições do conhecimento histórico, vale dizer, a filosofia crítica da história, como em Dilthey ou Rickert.
O projeto de Helio Jaguaribe tem a ver exclusivamente com os dois primeiros significados de ambos os pares de conceitos, ou seja, com o processo real do que efetivamente se passou e, subsidiariamente, com a filosofia da história que já foi chamada de especulativa, maneira de distingui-la da filosofia da história crítica.
Ao longo desta recensão, "filosofia da história" será empregada exclusivamente na primeira acepção. Disse subsidiariamente de vez que, partindo da filosofia da história, o autor procura criar seu espaço próprio, alargando a trilha aberta por Alfred Weber em sua "História da Cultura como Sociologia da Cultura", obra hoje esquecida a ponto de livro recente de Gordon Graham, "The Shape of the Past - A Philosophical Approach to History" (A Forma do Passado - Uma Abordagem Filosófica da História, ed. Oxford, 1997), repetir, sem saber que o fazia, pois não o cita, algumas das idéias do irmão mais moço do grande Max.
Por exemplo, a distinção relativa ao caráter cumulativo e progressivo do desenvolvimento tecnológico e à natureza cíclica do desenvolvimento cultural, fórmula hábil que permitiu a Alfred Weber superar, nos anos 30, a dicotomia entre a filosofia da história linear (que vinha do século 19 e da fé européia no progresso) e a filosofia da história cíclica, que reemergiu com a publicação do livro de Spengler, escrito sob o impacto do pessimismo gerado pela Primeira Guerra Mundial, pessimismo que Valéry destilou numa frase de sucesso: "Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais".
Do mesmo modo que "Um Estudo Crítico da História" não pretende ser filosofia da história especulativa, ele tampouco se reputa história da civilização de estilo convencional. O problema que se coloca é saber se logrou realizar tal propósito e mesmo se semelhante objetivo é factível.
É indispensável não esquecer que inexiste abordagem objetiva do passado que não passe por intermédio do discurso histórico e que, pelo menos até nossos dias, o gênero historiográfico possui apenas três opções para quem tenciona versar a totalidade do passado: a filosofia da história especulativa, a escolha da história da civilização (alternativas descartadas pelo autor) e a abordagem comparativa do tipo iniciado por Max Weber, que Jaguaribe não levou em consideração.
Malgrado sua imensa variedade, todos os demais tipos de discurso historiográfico são cronologicamente parciais, isto é, cortam no passado fatias bem mais modestas, que podem ir desde a história de uma civilização específica (a grega, por exemplo) ou de um período específico da história de uma civilização (o Renascimento) até as biografias e as micro-histórias postas em moda recentemente pela história das mentalidades.
O que não exclui as penetrações, os pontos de contato, as áreas comuns entre a história geral da civilização e a filosofia da história, pois nada impede que o autor daquela confira um sentido qualquer à narrativa que escreve nem que o autor desta incursione por áreas concretas no objetivo de escorar sua visão global.
"Um Estudo Crítico da História" não quer ser uma convencional história da civilização nem uma filosofia da história que busque compreender o passado segundo critérios apriorísticos, que podem ir desde a Providência divina até a luta de classes, embora o autor reconheça sua dívida para com a obra de Toynbee. O livro de Jaguaribe pretende-se alternativa empírica à filosofia da história. Neste propósito, o que ele faz é expurgá-la daquelas feições que comprometeram sua utilidade explicativa e que a tornaram no século 20 o alvo de críticas que proclamaram sua morte ou tiveram o efeito cumulativo de marginalizá-la nos quadros do conhecimento histórico.

Tal esforço de depuração, que, diga-se de passagem, só se tornou possível mercê da vitória do ceticismo pedestre dos historiadores sobre a megalomania intelectual dos filósofos da história, começa pela recusa do transcendentalismo (a história dos homens só depende deles mesmos e não de uma entidade que lhes é exterior) como também do totalismo que tende a vê-la como um processo predeterminado ou algo teleológico. Caberia, aliás, indagar se vale a pena, como se faz sistematicamente hoje em dia, rejeitar a filosofia da história em nome do seu pecado original.
A realidade é que, como a história geral da civilização, ela é um gênero historiográfico para o qual sempre haverá leitores, da mesma maneira que sempre os haverá para as seções de astrologia dos jornais, pois busca atender a um tipo de exigência mental que os outros gêneros não satisfazem, como indica o fato de que, malgrado a rejeição que sofreu na segunda metade do século 20, ela aflora, vez por outra, em ensaios como o que celebrou há alguns anos "o fim da história", com o sucesso de livraria que sabemos.

Mercado potencial
O problema com a filosofia da história reside em que, ao invés do que ocorre com sua homônima, a filosofia crítica da história, pela qual nem mesmo os historiadores demonstram maior interesse, ela dispõe, devido inclusive à discriminação a que foi relegada pelo alto clero universitário, de um mercado potencial que pode eventualmente transformar-se em reserva do baixo clero historiográfico, com todos os riscos consequentes.
Voltando dessa digressão, que não tem a ver com o livro, segundo Jaguaribe "o processo histórico é a sequência, no tempo e no espaço, das ações humanas que afetam as condições que influenciam de qualquer forma outras ações humanas"; "é o resultado, ao longo do tempo, das inter-relações de uma infinidade de ações humanas, cada uma com seu objetivo próprio", de modo que "o processo como um todo não tem um propósito definido, mas é consequencial".
Outro aspecto do modernizante expurgo metodológico a que Jaguaribe submete a filosofia da história é o do "regime de causalidade" que ele pretende ser "quádruplo" (fatores reais, ideais, o acaso e a liberdade humana), combinados em diferentes dosagens consoante o espaço e o tempo, embora Dilthey já se tivesse contentado com o esquema tríplice de "acaso, destino e caráter" ou, dito de outra maneira, de indeterminação, de necessidade e de intenção.
Por fim, terceiro aspecto, a idéia linear de civilização, da Mesopotâmia ao século 20, é substituída pela concepção pluralista de civilizações, internacionalismo obriga, se bem que, como veremos, forjam-se novos conceitos que permitam retomar, no final das contas e como por um passe de mágica, o princípio unitário da experiência histórica que o pluralismo das civilizações pusera, por um momento, de lado.
Uma vez descartadas essas e outras características idealistas e apriorísticas da filosofia da história, Jaguaribe propõe uma abordagem estritamente empírica que isole, no passado de cada uma das 16 civilizações que examina, os elementos decisivos, isto é, "críticos", que atuaram sobre seu desenvolvimento. Com esse propósito, ele aborda cada uma dessas civilizações sob seis critérios distintos: 1) "sua localização no espaço e no tempo"; 2) seus "principais eventos sociopolíticos"; 3) suas transformações institucionais e culturais, bem como 4) as circunstâncias do seu aparecimento; 5) do seu desenvolvimento e 6) do seu declínio, quando for o caso.
Ora, em se tratando de sequências necessariamente datáveis, o que o autor define como elemento ou fator decisivo pode ser também descrito pelo historiador convencional dessa ou daquela civilização como momento decisivo, mediante inclusive o recurso à periodização. Isso significa que os critérios decisivos sobre os quais Jaguaribe assenta sua análise não passam, na realidade, dos temas de que trataria qualquer história geral da civilização em tela, cujo tratamento vai depender tão-somente do conhecimento e da competência de quem os aborda.
Eles não constituem, portanto, critérios de explicação causal ou de interpretação compreensiva, tão-somente os tópicos consagrados do discurso desse gênero de historiografia, os quais, como tal, podem ou não desaguar numa teoria, de vez que, em história, e não nos iludamos acerca da sua capacidade de teorização, ilusão atualmente comum, "uma teoria é apenas o resumo de uma intriga" (Paul Veyne) ou, para dizer ao modo brasileiro, uma estória. "Um Estudo Crítico da História" resulta, por conseguinte, num livro que, ao realizar o propósito de não ser nem história da civilização nem filosofia da história, torna-se apenas o somatório, a justaposição da história de 16 civilizações contadas separadamente, cuja experiência é sintetizada no fim sob a forma de conclusões.
O autor não escapou assim aos dilemas que acreditou divisar na abordagem da história universal (história da civilização ou filosofia da história), somente procurou contorná-los. Existe, contudo, uma terceira via para aceder à história universal, a qual tem resultado ser mais produtiva do que as opções que Jaguaribe procurou ultrapassar. Refiro-me às análises de história comparadas, encetadas por Marx Weber com seus trabalhos, aliás inconclusos, sobre as formas de dominação política e as religiões universais.
Embora pressupondo o conhecimento exaustivo da história universal, ela abandona a aspiração da filosofia da história em favor de uma abordagem que, se é menos ambiciosa, tem se mostrado bem mais fecunda, como indicam o livro de Wittfogel sobre o despotismo oriental e o de Eisenstadt sobre o sistema político dos impérios. Em lugar de narrar o passado do homem ou de descobrir-lhes leis ou sentido, o comparatista prefere isolar a variável que lhe parece a priori mais promissora, no intento de explicar e compreender (em Max Weber, trata-se de duas "demarches" distintas que se rechecam mutuamente) seu funcionamento no âmbito de cada civilização concreta e, posteriormente, em termos globais, mediante a comparação de pares, como na análise weberiana do confucionismo e do puritanismo.

Ar do tempo
Como "Um Estudo Crítico da História" se colocou no corredor que separa a história da civilização e a filosofia da história, sua abordagem não diferiria de uma narrativa historiográfica convencional se não houvesse, segundo o ar do tempo, se beneficiado do notável desenvolvimento da história econômica e social no decurso dos últimos 80 anos, o que permitiu ao autor inserir no discurso narrativo e factual esboços de descrição estrutural baseados na pesquisa de ponta relativa a determinados períodos. Graças exclusivamente ao que o livro pôde incorporar uma massa de conhecimentos bem mais atuais do que o faria uma epítome da história universal que tivesse sido escrita nos meados do século 20 e que se veria constrangida a um relato fatual, carente de perspectiva sociológica e econômica.
Portanto, Jaguaribe não realizou algo de qualitativamente diferente do que faria, por exemplo, um especialista da história do feudalismo que fosse encarregado pela Cambridge University Press de redigir o capítulo relativo à Idade Média de uma história da civilização européia. Ao redigir a síntese da história de 16 diferentes civilizações, sua proeza é apenas quantitativa e enciclopedística. Indício da impossibilidade de se desprender do discurso de síntese historiográfica é o recurso, inescapável nesse gênero de trabalho, aos lugares-comuns. Do tipo, para só citar dois, "a longa ocupação muçulmana deixou uma marca profunda na emergente cultura ibérica" e "a Reforma foi a revolução mais ampla e mais profunda já ocorrida na história do Cristianismo".
É certo que alguém que cultivasse inclinações literárias estaria melhor preparado para evitar ou atenuar tais escolhos, reformulando-os de maneira imaginativa, mas o autor é visivelmente dos que não se dispõem a concessões ao que considera veleidades estilísticas, preferindo vazar seu texto num estilo pragmático de relatório das Nações Unidas.
Devido à opção metodológica de Jaguaribe e às proporções que, em decorrência, tomou sua obra, o leitor ficou impedido de acompanhar a linha mestra de um argumento que travejasse o conjunto, para além das conclusões de generalidade, por vezes anódina, reunidas no capitulo 19. Os historiadores acadêmicos não levam a sério "Um Estudo da História", de Toynbee, ou "A Decadência do Ocidente", de Spengler, no que cometem uma injustiça, pois ambos são o produto de uma visão que pode ser falsa, mas a que não falta garra.
Ademais, ambos contêm análises pontuais, de aspectos específicos de uma civilização, que constituem textos antológicos, capazes de fazer inveja a qualquer livro especializado do mais alto quilate. Mesmo se o leitor de Toynbee é cético quanto à teoria segundo a qual o esquema de "retirada e retorno" permite aos indivíduos e aos grupos sociais contribuírem criadoramente para o crescimento das civilizações, ele encontra motivos legítimos de admirar o resumo da biografia de Maquiavel que se esconde sob tal fórmula. Por fim, o argumento de Spengler ou o de Toynbee latejam, quando não estão presentes, ao longo de suas páginas, não tomam a forma de conclusões gerais, desvinculadas do texto.

História e empirismo
Coerente com seu empirismo, "Um Estudo Crítico da História" desvincula a história da civilização de um princípio, transcendente ou imanente, que o norteie, mesmo falsamente. Mas, ao fazê-lo, só oferece ao leitor comum um somatório destituído da maleabilidade de uma história da civilização; e, ao leitor versado em alguma parte desse latifúndio, afirmações que pelo grau de generalidade a que se vêem acuadas roçam pela banalidade e obviedade.
Alguns exemplos de sentenças sublinhadas pelo autor: "As mudanças sociais ocorrem mediante eventos que produzem uma alteração importante e duradoura em um dos sub-sistemas da sociedade"; "a religião tem sido um dos fatores mais importantes da história"; "a alternância da fragmentação e da centralização política é um fenômeno histórico recorrente, desde a civilização mesopotâmica até os nossos dias".
Outras destas afirmações são contestáveis. A despeito do seu "coup de chapeau" à "Nouvelle Histoire", o autor assevera, o que lhe teria arrancado aplausos da velha historiografia factual, que "o poder, particularmente sob a forma de poder militar, emerge dessa análise como o principal acontecimento e a causa mais importante de eventos na história". Anteriormente, ele afirmara que "os atos biológicos do homem adquirem significado histórico quando se relacionam de forma significativa com agentes históricos: o nascimento ou a morte dos governantes ou de grandes personalidades". E as grandes flutuações demográficas não constituem também resultados de atos biológicos do homem que se revestem de significado histórico?
O livro não foge tampouco ao destino das teorias cíclicas da história, destino que consiste, no final das contas, em retomar certa linearidade sob a forma da "espiralidade" a que alude o autor, de vez que somente Spengler teve o atrevimento intelectual de manter-se fiel à pureza da concepção cíclica do eterno retorno nietzschiano, sustentando que as civilizações são um universo desesperante de repetições sem sentido e que cada uma delas se legitima por si mesma, sem necessidade de inserção numa sequência que a justifique, idéia formulada por Herder relativamente às nações.
O Toynbee da última fase reviu o postulado dos primeiros volumes de "Um Estudo da História" para adotar a hipótese de um processo linear que abrangeria a experiência civilizacional sob a forma de uma "aproximação a Deus". Alfred Weber fez apelo ao "processo civilizatório". O fio de Ariadne de Jaguaribe é o conceito de "civilização planetária", a ser "provavelmente a última criada pela humanidade", a qual, na sua atual fase "tardia", ocidentaliza implacavelmente as civilizações não-ocidentais ao mesmo tempo em que assimila valores importados destas civilizações. Como ocorre na filosofia da história, também em "Um Estudo Crítico da História" o linear, expulso pela porta, dá sempre de regressar pela janela.


Evaldo Cabral de Mello é historiador e autor de "Olinda Restaurada" (Topbooks).


Evaldo Cabral de Mello é escritor, ensaísta e diplomata.
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