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Nelson Aguilar - 22 - Janeiro de 1997
A clareza do olhar
Foto da capa do livro Arte e cultura
Arte e cultura
Autor: Clement Greenberg
Tradução: Otacílio Nunes
Editora: Ática - 280 páginas
Foto do(a) autor(a) Nelson Aguilar

Nenhum autor defendeu a arte com tanta clareza quanto Clement Greenberg (1904-1994), no momento em que ocorreu a transição da escola de Paris à de Nova York, de Matisse a Pollock. A crítica francesa, imersa num fenômeno de altíssima qualidade artística que se renovava sob seus olhos com a naturalidade das estações desde os meados do século 18, engalfinhava-se numa briga de família e não se aventurava a exercer a autocrítica. Coube a Greenberg dar nome aos bois, explicar o cubismo como o estilo inultrapassável de sua época.

"Arte e Cultura" reúne ensaios críticos, publicados em revistas essenciais da vida cultural norte-americana e revistos pelo autor a fim de imprimir um cunho menos apaixonado a suas posições. Torna-se assim necessário confrontá-los aos textos originais da edição ainda incompleta dos escritos de Greenberg organizados em quatro volumes por John O'Brian (1939-1969, editados por The University of Chicago Press, os primeiros em 1986 e os últimos em 1993).
A maneira como o autor transforma a história da arte a partir da produção artística de seu tempo deveria se constituir em lição aos estudiosos que se acantonam em época recuada ignorando o fazer artístico contemporâneo. "O último Monet" descortina-se à luz de "Pintura 'de tipo americano' ". O impressionista é redescoberto pelo impacto que a pintura de Clifford Still desperta. Still implanta em suas telas uma área monocromática grande em elevação, limitada nas bordas por outras cores que parecem recortar o espaço, como papel rasgado que atravessasse verticalmente o campo pictural de ponta a ponta. Resulta algo como a respiração da extensão. Surge o intervalo de um "canyon", de planície interrompida por montanhas abruptas, enfim, imagens que evocam o sentimento do sublime. Em seus últimos anos Monet transmite a mesma sensação, ao eliminar a linha de horizonte e transcrever as alusões aquáticas e florestais que lhe inspirava a paisagem de Giverny. Quanto mais próximo do real, mais próximo da abstração, enunciara Kandinsky em "Sobre a Questão da Forma" (1912). O visitante do Museu Metropolitano de Nova York que busca Monet é afim do que contempla Still no Museu de Arte Americana Whitney, já nos anos 50.
As análises de obras cubistas feitas por Greenberg se situam entre as mais pertinentes. Em "Colagem", o ensaísta reconstitui a lógica inexorável do estilo como se tivesse frequentado os ateliês de Braque e Picasso no calor da hora. Ambos artistas almejam fundar a especificidade da pintura, o que a distingue de todas outras artes, a saber sua planaridade. A perspectiva tem de ser banida do quadro por se tratar de resíduo cenográfico, de técnica teatral, avessa à bidimensionalidade da tela. O tecido pictural começa a abrigar formas facetadas, minerais, as saliências do corpo humano se convertem em cristal para ecoar a referência magna, o plano. Está formulado o cubismo analítico, a figura se decompõe em arestas a fim de apresentar todos os pontos de vista.
O projeto cubista, à primeira vista reducionista, fornece o invisível da pintura renascentista, pois recapitula os aspectos ocultos pela frontalidade da visão monocular, daí o entusiasmo com que a missão era desempenhada. "Mulher em verde" de Picasso (1909, Stedelijk Van Abbemuseum de Eindhoven, Alemanha), recentemente exposto na 23ª Bienal de São Paulo, atesta esse estado. Braque chega a pintar numa tela de 1910 um prego com a sombra projetada temendo que o conjunto flutuasse sem gradações no mesmo plano. Um ano depois, reproduz um anel constituído pelo cordão de uma cortina e seu pingente. Os artifícios participam de um estratagema para salvar a pintura do perigo decorativo, distanciá-la do padrão de uma gravata ou um tapete. Em seguida, a dupla descobre que produzir profundidade ou planaridade tem o mesmo valor. Voltam-se ao emprego de letras em caixa alta, que garante ao quadro um índice zero de superfície com as outras intervenções ocorrendo aquém. A aplicação de areia à tinta visa pela diferença de texturas promover a variação de planos. Num certo momento, Braque tem a idéia de fixar pedaços de papel de parede na tela. O "bricolage" toma conta do suporte, sob forma de colagens, consumando o cubismo sintético. A última transformação adviria da tradução dos materiais colados em óleo. O cubismo alcança um grau de inteligibilidade que estudiosos como John Golding ou Jean Leymarie não desconfiavam.
Greenberg deve a notoriedade mais à crítica que à história da arte. Reconheceu o talento ímpar de Jackson Pollock desde a primeira exposição individual e acompanhou o percurso do pintor, proclamando sua magnitude no panorama artístico internacional. "Arte e Cultura" só traz pálida amostra disso: "±'Crônica de arte' da 'Partisan Review': 1952" aborda a volta à figuração de Pollock, na exposição da galeria de Betty Parsons, em 1951, e "Pintura 'de tipo americano' ", escrito um ano antes da morte do pintor, detém-se nos primeiros anos de sua trajetória. Compulsando os textos coligidos por O'Brian ou o dossiê Pollock organizado por Yve-Alain Bois para a revista "Macula", nº 2 (1977), o introdutor do crítico norte-americano na França e indiretamente no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, o tirocínio de Greenberg transparece. Em 1943, na galeria de Peggy Guggenheim, diante dos "Guardiães do segredo" (Museu de Arte Moderna de San Francisco), escreve sobre o caráter mural da pintura pela ampla paginação azul repleta de figuras, grafismos e planos de cores mais claras e mais escuras. Observa a fusão de Miró, Siqueiros e Picasso na nova maneira. Em 1947, avalia que o "Mural" (1943, Museu de Arte Moderna da Universidade de Iowa) inaugura os grandes quadros de cavalete transportáveis que possuem o valor de pintura com o potencial de se desenvolver em todos os sentidos, "all over". O trânsito processional das entidades do muralismo mexicano está traduzido no painel de Pollock sem a desvantagem do vocabulário figurativo que dificulta a mobilidade formal. Os "drippings" de tinta criam uma coreografia linear estimulada por fulgurações de alumínio. A malha de linhas debate-se com a profundidade rasa dos grãos da tela.
A receptividade de Greenberg no Brasil obsta o avanço de crítica sociologista da arte. Por vezes, alguns praticantes cultivam o hábito de falar de obras dando-lhes as costas. Resultam depoimentos acerca do funcionamento do circuito artístico, da influência do partido comunista na orientação dos participantes, do isolacionismo da América Latina diante do Primeiro Mundo, de monografias meramente fatuais. A história de arte deixa de ter objeto próprio. Ocorreu a mesma situação no estudo de literatura na Rússia antes do advento dos formalistas. Roman Jakobson relata que a técnica usada pelos antecessores era a da batida policial: prendiam-se todos os suspeitos que por acaso se encontrassem no local do crime, assim como as pessoas que passavam pela rua. Da mesma maneira procediam os conservadores da ciência da literatura, requisitando a história da filosofia, da cultura, a psicologia, tudo, salvo a obra literária. Sem análise formal, não há sociologia de arte possível. Os melhores analistas entre nós como Gilda Rocha de Mello e Souza e Flavio Motta sempre souberam reconhecer a riqueza do fato artístico.
Greenberg peca no entanto por dogmatismo ao erigir a pintura como o modelo definitivo para a arte. Isso o levou a considerar um certo comportamento da arte ocidental como padrão absoluto. A exclusão a partir da qual seu sistema toma impulso gira em torno de Marcel Duchamp. Como se fosse apenas para desmentir o crítico, a melhor arte que sucede ao expressionismo abstrato -arte pop, "conceptual art", "arte povera"- inspira-se no artista francês.
O paradigma que emulou o ensaísta americano veio dos conceitos fundamentais de história da arte de Heinrich Wõlfflin. O historiador suíço arma seu arcabouço epistemológico para dar conta da arte renascentista e barroca. No desenrolar do século 20, o gênero pintura enquanto tela entra em crise, inicialmente pela introdução do "ready made", que eleva o mero objeto ao estatuto de obra de arte, em seguida pela "combine painting", termo cunhado por Robert Rauschenberg para abranger pintura e objeto numa só obra, e, finalmente, pelas instalações.
A instalação designa não um amálgama de escultura e pintura, mas um novo gênero de arte, onde o que está em questão é o espaço concreto e a intermodalidade do sentir, pois associa experiências auditivas, olfativas, tácteis ao lado das visuais, a tal ponto que hoje o sintagma arte visual soa datado. A história da arte atual está às voltas com esse novo campo de provas que, questionado, postula por sua vez novos problemas para a arte do passado. A facilidade de difusão da instalação em todo o mundo artístico não procede de um modismo, mas de uma inquietação profunda acerca da expressão artística em países fora do eixo Europa e Estados Unidos. Nessas nações, o culto fetichista de museu como templo e caixa-forte de tesouros artísticos não vinga. Quando o crítico francês Jean Clair declara que a arte moderna é uma invenção do Ocidente não padece de xenofobia, apenas discorre para um público determinado, constituído por homens brancos e, sob reserva, mulheres brancas de certa região do mundo. Greenberg andava preocupado com o problema quando tentava conter o entusiasmo dos americanos pela própria arte, pois tomavam-na por sinônimo de progresso social: "A arte não deve ser superestimada. A qualidade da arte numa sociedade não reflete necessariamente -ou talvez raramente- o grau de bem-estar usufruído por muitos de seus membros. E bem-estar vem primeiro. Os bens e os males vêm primeiro. Deploro a tendência de superiorizar a arte". 

Nelson Aguilar é professor de história da arte da Unicamp.
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