O livro Quando a
política caminha na escuridão: interesse e virtude n’A Democracia na América de
Tocqueville, publicado em 2018, é o resultado do processo de lapidação da
dissertação de mestrado em ciência política, realizado por Roberta Soromenho
Nicolete em 2013 na Universidade de São Paulo. A importância da obra decorre de
sua contribuição para a recepção do pensamento de Alexis de Tocqueville no
debate político-filosófico brasileiro, preenchendo lacunas da literatura
nacional no tocante às reflexões tocquevillianas. Ela ainda se destaca por dar
centralidade à ideia do “interesse” na obra desse autor, especificamente do
“interesse bem compreendido”, tema normalmente tangenciado por seus
intérpretes.
O título do livro indica a circunstância do tempo que
será objeto de reflexão: o período em que a política caminha na escuridão por
não haver clareza ou mínima limpidez sobre seus rumos. A autora o explicitará
melhor na introdução, indicando-o como o período entre o final do século XVIII
e início do século XIX, “no qual se abre,
de uma vez por todas, um abismo entre o mundo aristocrático e o mundo
democrático”. Esse abismo expressa a profunda ruptura em relação às
instituições políticas e sociais da era aristocrática e, simultaneamente,
exprime que a democracia, estado social em consolidação, era um grande mistério
para os homens modernos.
Tocqueville compreende os sentimentos de medo e de
angústia que decorrem da percepção do abismo
entre os dois mundos (título da introdução). Para ele, a transição para a
nova sociedade era inevitável e a sua tarefa, exposta na obra A democracia na América –
Livros I e II, era
compreender o estado social democrático. O
livro de Nicolete, a partir dessa obra central para o pensamento
tocquevilliano, apresenta possíveis respostas do pensador às ambiguidades e aos
riscos da democracia. Ele se divide em dois capítulos cujo primeiro demonstra a
importância da experiência
política norte-americana, vivenciada pelo pensador, para a construção de um
modelo ideal de sociedade que permita inferir observações sobre a democracia,
contribuindo para uma maior perceptibilidade sobre sua estrutura social,
política e moral. O segundo capítulo analisa mais detidamente algumas
categorias essenciais para o corpo social e político dos EUA, especialmente no
tocante à preservação de sua fundamentação moral, guiando-se pela doutrina do
interesse bem compreendido e pela complexa relação existente entre o interesse e
a virtude na modernidade. A principal aposta deste livro está na convicção de
que essa doutrina possui uma indubitável importância para o conjunto da obra
tocquevilliana, constituindo-se como uma doutrina filosófica que pode refletir
maior claridade para os rumos da era democrática.
O elemento central da democracia, para Tocqueville, é
a igualdade de condições: nela os homens são iguais aos seus semelhantes. E são,
também, individualistas, julgam-se independentes e se isolam, vivendo
preocupados apenas com o seu interesse privado, seus pequenos prazeres e seu
momento presente. E ainda que a igualdade plena não seja possível, ela é um
processo em andamento que avança e impõe novos arranjos entre os homens. Um
possível arranjo é o despotismo democrático, termo cunhado pelo pensador,
decorrente do isolamento e da não participação na política que deixa vazio o
lugar do poder de mando e de organização da sociedade. Esse lugar é facilmente
ocupado por um déspota, cujo discurso de ação é a ordem que permite aos
indivíduos desfrutarem de seus bens materiais com segurança. Mas também é
possível seguir o caminho da liberdade e, nesse sentido, a América se
apresenta, afirma Nicolete, como um
conceito e um mito (nome do capítulo I) por delinear uma concepção de
sociedade derivada de uma narrativa originária, onde os emigrantes ingleses
fundam um estado social igualitário modelado pela ação voluntária dos homens.
Apesar de constituído por uma trama frágil de relações entre homens
individualistas, os EUA oferecem oportunidades do agir em conjunto a partir de
seus costumes e da instituição, pelos legisladores, de espaços para o exercício
da liberdade.
No capítulo II, Nicolete observará que nos EUA não se
nega o individualismo e a busca pela satisfação dos interesses privados, mas se
pensa o estado social a partir deles. Isso é possível pela construção da
doutrina do interesse bem compreendido, discussão que, para ela, insere
Tocqueville no debate sobre as doutrinas morais do interesse. Adjetivando o
interesse com a expressão “bem compreendido” (ou “propriamente” compreendido,
como defende), o pensador sugere uma nova linguagem política para o tema, relacionando
interesse e virtude e reelaborando o conceito de virtude na modernidade.
Bem compreender o interesse é algo mediato e refletido,
não compreendido de forma imediata, e deve ser ensinado ao cidadão. A autora,
realizando um diálogo original e necessário entre Tocqueville e Montaigne,
afirma que o homem democrático primeiro apreenderá a necessidade e utilidade do
agir em comum e depois adquirirá o gosto por esse agir, realizando uma conduta
virtuosa. Há nesse processo a constituição de uma nova ordem moral e uma nova
espécie de virtude que é menos generosa, menos desinteressada, mas mais
acessível ao homem democrático.
A autora conclui que Tocqueville é um poeta da
democracia que realiza uma pintura ao descrever positivamente a democracia
americana e, a partir dela, generalizar a doutrina do interesse bem
compreendido, considerando-a como uma doutrina filosófica democrática
apropriada para o nosso tempo. Concluímos esta resenha fazendo uma analogia
necessária: Roberta Nicolete é também uma poetisa, pois aborda neste livro as
ideais tocquevillianas por associações imagéticas e busca as melhores palavras
para apresentá-las ao leitor brasileiro que, no momento atual, caminha na
escuridão em relação às incertezas de sua democracia.
PAULA GABRIELA MENDES LIMA é pós-doutoranda do Departamento
de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, doutora em filosofia política e mestre em direito
pela Universidade Federal de Minas Gerais e consultora em direito constitucional
da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais.