Logotipo do Jornal de Resenhas
Paula Gabriela Mendes Lima - 118 - Fevereiro de 2020
A claridade refletida
A complexa relação entre o interesse e a virtude em Tocqueville
Foto da capa do livro Quando a política caminha na escuridão
Quando a política caminha na escuridão
Autor: Roberta Soromenho Nicolete
Editora: Alameda - 153 páginas
Foto do(a) autor(a) Paula Gabriela Mendes Lima


 

O livro Quando a política caminha na escuridão: interesse e virtude n’A Democracia na América de Tocqueville, publicado em 2018, é o resultado do processo de lapidação da dissertação de mestrado em ciência política, realizado por Roberta Soromenho Nicolete em 2013 na Universidade de São Paulo. A importância da obra decorre de sua contribuição para a recepção do pensamento de Alexis de Tocqueville no debate político-filosófico brasileiro, preenchendo lacunas da literatura nacional no tocante às reflexões tocquevillianas. Ela ainda se destaca por dar centralidade à ideia do “interesse” na obra desse autor, especificamente do “interesse bem compreendido”, tema normalmente tangenciado por seus intérpretes.

O título do livro indica a circunstância do tempo que será objeto de reflexão: o período em que a política caminha na escuridão por não haver clareza ou mínima limpidez sobre seus rumos. A autora o explicitará melhor na introdução, indicando-o como o período entre o final do século XVIII e início do século XIX, “no qual se abre, de uma vez por todas, um abismo entre o mundo aristocrático e o mundo democrático”. Esse abismo expressa a profunda ruptura em relação às instituições políticas e sociais da era aristocrática e, simultaneamente, exprime que a democracia, estado social em consolidação, era um grande mistério para os homens modernos.

Tocqueville compreende os sentimentos de medo e de angústia que decorrem da percepção do abismo entre os dois mundos (título da introdução). Para ele, a transição para a nova sociedade era inevitável e a sua tarefa, exposta na obra A democracia na América – Livros I e II, era compreender o estado social democrático. O livro de Nicolete, a partir dessa obra central para o pensamento tocquevilliano, apresenta possíveis respostas do pensador às ambiguidades e aos riscos da democracia. Ele se divide em dois capítulos cujo primeiro demonstra a importância da experiência política norte-americana, vivenciada pelo pensador, para a construção de um modelo ideal de sociedade que permita inferir observações sobre a democracia, contribuindo para uma maior perceptibilidade sobre sua estrutura social, política e moral. O segundo capítulo analisa mais detidamente algumas categorias essenciais para o corpo social e político dos EUA, especialmente no tocante à preservação de sua fundamentação moral, guiando-se pela doutrina do interesse bem compreendido e pela complexa relação existente entre o interesse e a virtude na modernidade. A principal aposta deste livro está na convicção de que essa doutrina possui uma indubitável importância para o conjunto da obra tocquevilliana, constituindo-se como uma doutrina filosófica que pode refletir maior claridade para os rumos da era democrática.

O elemento central da democracia, para Tocqueville, é a igualdade de condições: nela os homens são iguais aos seus semelhantes. E são, também, individualistas, julgam-se independentes e se isolam, vivendo preocupados apenas com o seu interesse privado, seus pequenos prazeres e seu momento presente. E ainda que a igualdade plena não seja possível, ela é um processo em andamento que avança e impõe novos arranjos entre os homens. Um possível arranjo é o despotismo democrático, termo cunhado pelo pensador, decorrente do isolamento e da não participação na política que deixa vazio o lugar do poder de mando e de organização da sociedade. Esse lugar é facilmente ocupado por um déspota, cujo discurso de ação é a ordem que permite aos indivíduos desfrutarem de seus bens materiais com segurança. Mas também é possível seguir o caminho da liberdade e, nesse sentido, a América se apresenta, afirma Nicolete, como um conceito e um mito (nome do capítulo I) por delinear uma concepção de sociedade derivada de uma narrativa originária, onde os emigrantes ingleses fundam um estado social igualitário modelado pela ação voluntária dos homens. Apesar de constituído por uma trama frágil de relações entre homens individualistas, os EUA oferecem oportunidades do agir em conjunto a partir de seus costumes e da instituição, pelos legisladores, de espaços para o exercício da liberdade.

No capítulo II, Nicolete observará que nos EUA não se nega o individualismo e a busca pela satisfação dos interesses privados, mas se pensa o estado social a partir deles. Isso é possível pela construção da doutrina do interesse bem compreendido, discussão que, para ela, insere Tocqueville no debate sobre as doutrinas morais do interesse. Adjetivando o interesse com a expressão “bem compreendido” (ou “propriamente” compreendido, como defende), o pensador sugere uma nova linguagem política para o tema, relacionando interesse e virtude e reelaborando o conceito de virtude na modernidade.

Bem compreender o interesse é algo mediato e refletido, não compreendido de forma imediata, e deve ser ensinado ao cidadão. A autora, realizando um diálogo original e necessário entre Tocqueville e Montaigne, afirma que o homem democrático primeiro apreenderá a necessidade e utilidade do agir em comum e depois adquirirá o gosto por esse agir, realizando uma conduta virtuosa. Há nesse processo a constituição de uma nova ordem moral e uma nova espécie de virtude que é menos generosa, menos desinteressada, mas mais acessível ao homem democrático.

A autora conclui que Tocqueville é um poeta da democracia que realiza uma pintura ao descrever positivamente a democracia americana e, a partir dela, generalizar a doutrina do interesse bem compreendido, considerando-a como uma doutrina filosófica democrática apropriada para o nosso tempo. Concluímos esta resenha fazendo uma analogia necessária: Roberta Nicolete é também uma poetisa, pois aborda neste livro as ideais tocquevillianas por associações imagéticas e busca as melhores palavras para apresentá-las ao leitor brasileiro que, no momento atual, caminha na escuridão em relação às incertezas de sua democracia.

 

 

PAULA GABRIELA MENDES LIMA é pós-doutoranda do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais,  doutora em filosofia política e mestre em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e consultora em direito constitucional da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais.

 


Paula Gabriela Mendes Lima
Top