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Pedro Paulo Pimenta - 116 - Dezembro de 2014
A difícil tarefa do tradutor
Foto da capa do livro Crítica da razão pura
Crítica da razão pura
Autor: Immanuel Kant
Tradução: Fernando Costa Mattos
Editora: Vozes - 624 páginas
Foto do(a) autor(a) Pedro Paulo Pimenta

Publicada pela primeira vez em 1781, a Crítica da razão pura, de autoria do filósofo alemão Immanuel Kant, teve que esperar até 1978 para ser integralmente vertida para a língua portuguesa. Os autores da façanha – Valerio Rodehn e Udo Baldur Moosburger – tiveram seus esforços compensados pela publicação de sua versão na série Os pensadores, então editada pela Abril Cultural e vendida em bancas de jornal. Essa circunstância garantiu a essa tradução a justa projeção que ela merece, ao mesmo tempo em que propiciou uma penetração enorme junto ao público leitor, especializado ou não, que dificilmente poderia ser igualada por edições posteriores.

 

Poucos anos depois, em 1987, a fundação portuguesa Calouste-Gulbenkian publicaria uma nova tradução, assinada por Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, e que, se tinha para os brasileiros a desvantagem considerável do preço elevado de artigo importado, oferecia, como compensação, todas as passagens da obra suprimidas por Kant na edição de 1787 e que a primeira versão em português decidira ignorar. Servia para reiterar, ademais, que um mesmo texto pode assumir feições muito diferentes, dependendo das escolhas do responsável por vertê-lo a partir da língua em que foi escrito.

 

Eis que agora surge uma terceira tradução, a primeira que não é realizada a quatro mãos, assinada por Fernando da Costa Mattos. Além de trazer o texto integral das duas edições, inclui um valioso glossário de termos. A publicação, pela editora Vozes e pela editora São Francisco, é oportuna, e deve ser saudada como um evento importante no panorama das letras filosóficas em língua portuguesa.

 

A empreitada de traduzir um livro como a Crítica da razão pura oferece enormes e numerosos riscos, que os mais tarimbados germanistas não poderiam evitar por completo. Além do conhecimento primoroso da língua alemã, é preciso ter, para se dedicar a essa tarefa, completa segurança na utilização do português, sem mencionar conhecimento profundo do pensamento de Kant. Felizmente para nós, tais qualidades não faltam ao Prof. Costa Mattos.  

 

Fica, no entanto, a pergunta: haveria lugar para uma terceira tradução de uma obra destinada a um público de especialistas? Certamente que sim, tendo em vista a considerável expansão, em anos recentes, dos cursos de filosofia no ensino superior no Brasil. Graças ao Prof. Costa Mattos, podemos agora nos congratular de termos nos equiparado aos falantes das línguas francesa, inglesa, espanhola ou italiana, que contam com diferentes traduções, para seus respectivos idiomas, da obra-prima de Kant. Esse fato não pode senão enriquecer o vocabulário filosófico, além de fortalecer o hábito da reflexão crítica a propósito da leitura de textos que são tudo, menos ingênuos.    

 

Seria uma pena, porém, que um livro tão importante e tão interessante ficasse restrito aos estudantes/estudiosos da filosofia. A Crítica da razão pura pode e deve ser lida mesmo por quem não estuda filosofia. Kant nunca foi o escritor seco de que os seus delatores de plantão volta e meia se queixam. Não é que a Crítica da razão pura seja um livro fácil, mas gosto é o que não falta à refinada especulação tecida ao longo dessas páginas revolucionárias, que, redigidas entre o ocaso do Século das Luzes e a aurora do Romantismo, mudaram o panorama da filosofia e não perderam a atualidade.

 

Mestre das metáforas

 

Kant foi, entre outras coisas, um mestre na utilização de metáforas, e uma boa maneira de oferecer ao leitor uma ideia dos méritos da nova tradução da Crítica da razão pura é citar uma delas, que se encontra logo na introdução do livro, comparando-a, em português, às traduções anteriores. Na passagem em questão, Kant comenta um dos temas centrais da Crítica, que Rubens Rodrigues Torres Filho chamou, num célebre ensaio, “A virtus dormitiva de Kant”, de “ilusão que entusiasma e dá asas à metafísica”, a ilusão de que a intuição forneceria conhecimento dos objetos suprassensíveis, que se encontram para além da experiência. 

 

“Reforçado por tal prova do poder da razão, o impulso para a ampliação do conhecimento não reconhece quaisquer limites. A leve pomba, que em seu voo livre corta o ar cuja resistência sente, poderia formar a impressão de que as coisas lhe seriam bem mais favoráveis no espaço sem ar. Assim abandonou Platão o mundo dos sentidos, porque este estabelece limites tão estreitos ao entendimento, e se aventurou nas asas da ideia para além dele, no espaço vazio do entendimento puro.” (Costa Mattos)

 

“Seduzido por uma tal prova de força da razão, o impulso de ir mais além não vê limites. A leve pomba, ao sulcar livremente o ar, cuja resistência sente, poderia crer que no vácuo melhor ainda conseguiria desferir o seu voo. Foi precisamente assim que Platão abandonou o mundo dos sentidos, porque esse mundo opunha ao entendimento limites tão estreitos e, nas asas das ideias, abalançou-se no espaço vazio do entendimento puro.” (Pinto e Morujão)

 

“Conquistado por tal prova de poder da razão, o impulso de ampliação não vê mais limites. Enquanto no livre voo fende o ar do qual sente a resistência, a leve pomba poderia representar-se ser ainda mais bem-sucedida no espaço sem ar. Do mesmo modo, Platão abandonou o mundo sensível porque este estabelece limites tão estreitos ao entendimento e sobre as asas das ideias aventurou-se além do primeiro no espaço vazio do entendimento puro.” (Rodehn e Moosburger)     

 

É inevitável que uma mesma passagem seja vertida de formas bastante diferentes (não citamos aqui a preciosa tradução de Torres Filho, que aparece no artigo mencionado), e as escolhas de cada tradutor, antes de serem julgadas, devem ser atribuídas ao estilo peculiar de cada um. Em todo caso, as diferentes versões em português dessa linda metáfora renovam o convite de Kant ao leitor para que se dispa de seus preconceitos e o acompanhe num exame radical, que empreende o desmonte da velha metafísica e a edificação de uma nova filosofia. Se ainda hoje os filósofos se veem às voltas com a herança metafísica (principalmente quando afetam menosprezá-la), a Crítica kantiana não perdeu a atualidade. Que tudo isso esteja condensado numa simples imagem poética, eis uma demonstração inequívoca – se preciso fosse – do gênio de Kant. 

Pedro Paulo Pimenta é professor do departamento de filosofia da USP.
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