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Sérgio Miceli - 93 - Fevereiro de 2003
A educação sentimental de Clarice e Fernando
A correspondência entre os autores de
Foto do(a) autor(a) Sérgio Miceli

Clarice Lispector (1920-1977) e Fernando Sabino (1923) pertencem à mesma geração literária e se conheceram por meio do atuante círculo de intelectuais católicos no Rio de Janeiro. Embora tenham sido socializados no ambiente cultural carioca na mesma época, tudo o mais em suas experiências de vida, até a mocidade, prenunciava modos distintos de encarar a criação artística. Mas os caminhos profissionais se cruzaram no final dos anos de 1950, quando passaram a depender dos ganhos auferidos na imprensa por suas crônicas e entrevistas.
Educado numa família católica, mantida pelos encargos de representação comercial exercidos pelo pai, o jovem Fernando colaborava no jornal "O Diário", lançado em 1935 pela arquidiocese de Belo Horizonte, no qual também contribuíam outros moços cristãos intelectuais, que se tornariam amigos íntimos, parceiros de afeição e trabalho: Helio Pellegrino, filho do diretor do Hospital Militar; Otto Lara Resende, que começou como docente no colégio fundado pelo pai na capital, o professor e empresário educacional Antonio de Lara Resende, da diretoria de "O Diário"; Paulo Mendes Campos, ex-aluno interno de salesianos e franciscanos, filho de um médico atuante na zona da mata mineira no apogeu do café.
Clarice provinha de modestíssima família de imigrantes judeus russos. Os pais e as três filhas se instalaram no começo junto aos parentes aqui residentes, uns tempos em Maceió (1921-24), depois firmando residência em Recife (1924-33), no bairro da Boa Vista, que congregava a pequena, mas integrada, comunidade israelita na cidade. Seu pai tirava da atividade de mascate o amparo da família e da mulher doente, acometida por uma paralisia progressiva que a tornou inválida, dependente dos préstimos das filhas.
Clarice perdeu a mãe ainda menina (1930) e o pai, dez anos mais tarde, quando a família já se havia mudado para o Rio de Janeiro. Ela ingressa na Faculdade Nacional de Direito em 1939 e retira a subsistência de diversos empregos paralelos aos estudos. O mais marcante foi o de redatora na Agência Nacional, de onde é removida para atuar como repórter no jornal "A Noite", órgãos públicos criados pelo Estado Novo. Nesses lugares, teve a chance de contatar outros escritores, inclusive o romancista Lúcio Cardoso. Por seu intermédio, Clarice se aproxima da inteligência católica, em especial dos prosadores Cornélio Penna, Adonias Filho e Octavio de Faria. No mesmo ano de 1943, obtém o diploma de bacharel, lança seu romance de estréia, "Perto do Coração Selvagem", e se casa com um colega da faculdade, o diplomata Maury Gurgel Valente.
Em 1941, Fernando também ingressara na faculdade de direito e estreara em livro com o volume de contos "Os Grilos Não Cantam Mais", numa edição custeada pelo pai; três anos depois, casou-se com Helena, filha do então governador mineiro Benedito Valadares. O envio do livro a Mário de Andrade ensejou um relacionamento de tutoria, pautado pelos sabões do mestre experiente e pelo entusiasmo do novato diante da receptividade aos seus escritos, o que confirma a curiosa correspondência entre eles.O matrimônio lhe trouxe a nomeação ao primeiro de uma série de postos conquistados por apadrinhamento político.

Clarice e Fernando
Clarice residiu na Europa (Nápoles/ Berna/Londres/1944-52) e em Washington (1952-9), em companhia do marido diplomata e dos filhos. Sabino viajou com a mulher para Nova York (1946-8), onde trabalhou como funcionário no escritório comercial e no consulado brasileiro; de regresso ao Rio, manteve-se no serviço público até 1957.
Tais circunstâncias de vivência no exterior, quando estavam tentando constituir família e, isolados, enfrentando o que sentiam como um cotidiano massacrante em terra estrangeira, devem ter motivado a urgência de uma troca regular de impressões, textos e ajudas, calibrada pela afetividade e admiração intelectual recíproca. O período provocativo dessa correspondência coincidiu com a feitura dos romances "O Lustre" (1946) e "A Cidade Sitiada" (1949) e com o florescimento ficcional dos episódios de "O Encontro Marcado".

Fé, letras e política
Lúcio Cardoso foi figura-chave na formação literária de Clarice e Fernando. Já em carta ao jovem Sabino, em 1942, Mário de Andrade rastreia o forte componente católico no seu ideário e, logo mais, identifica Lúcio, Cornélio e a "entourage" de Otávio de Faria, divulgadores de uma postura espiritualista das profundezas, como uma influência deletéria para a nova geração de prosadores.
As cartas trocadas nessa época comprovam o fascínio exercido por Lúcio, o qual sugeriu o título adotado por Clarice no romance de estréia. Ela alimentou um bocado de fantasias a respeito do sujeito misterioso e esquivo que era Lúcio, mas essa paixão nem tão recolhida acabou em confidência e coleguismo. O agradecimento de Fernando pelo envio do livro de Clarice, acolhendo pedido de Lúcio, deu início à amizade tão bem talhada na correspondência.
Nas cartas aos amigos, Sabino explicita suas reservas à subserviência da inteligência católica aos ditames de Alceu Amoroso Lima, a quem nomeia "líder das sacristias", sem largar mão de investidas na área e alusões reticentes aos intelectuais comunistas. Ao guardar distância do proselitismo de escritores confessionais, como Octavio de Faria e Lúcio Cardoso, procura, como antigetulista convicto, se manter afastado da esquerda e acessível aos acenos da direita: visita monges beneditinos; fica de olho na Editora Agir, sob chancela de Alceu; participa da criação do semanário católico de letras "Dom Casmurro"; faz conferência sobre Mário de Andrade no centro D. Vital.
Por conseguinte, embora tenham se aproximado no começo de suas carreiras de escritor, Clarice e Fernando pertenciam a ambientes sociais radicalmente diferentes, sobretudo no que se refere à proximidade da vida intelectual. Fernando logo cedo conseguiu publicar contos em revistas e jornais da província; Clarice só veio a divulgar os primeiros textos com ajuda dos colegas letrados no serviço público. Fernando e os amigos intelectuais pertenciam a famílias cultivadas, cujos chefes possuíam diplomas de bacharel; Clarice fez de seu projeto criativo o escape ousado a um destino convencional.
A mais substantiva diferença entre ambos, em especial no tocante à criatividade literária, era uma questão de gênero. O principal assunto de Clarice era ela mesma, sua experiência de vida como menina e mocinha numa família de imigrantes, a aprendizagem penosa dos óbices que se interpunham a seus anseios criativos. Para se entender a natureza dos respectivos projetos literários, basta confrontar dois de seus romances -"Perto do Coração Selvagem" (1943) e "O Encontro Marcado" (1956)-, exercícios contrastantes de uma "educação sentimental".

O aprendizado masculino
As cartas recém-publicadas de Sabino giram em torno de reminiscências da infância e mocidade, numa evocação de porres, armações, transas, repletas de achegas à reinvenção ficcional das estrepolias do jovem que passara a noite de núpcias no Palácio da Liberdade, então residência do sogro. "O Encontro Marcado" acolhe diversos procedimentos mobilizados pelo feitio romanesco revigorado no modelo flaubertiano. A exemplo do que sucede no romance francês, centrado nas histórias paralelas de adolescentes de condições sociais contíguas e diversas, o sucedâneo nativo relata as aventuras de jovens da alta classe média mineira, que perambulam por bares, redações de jornais, praças, puteiros, numa Belo Horizonte acanhada, naquela muda transicional, antes de cair nas amarras da vida adulta.
Trata-se de uma trama nucleada no processo de envelhecimento social de personagens adolescentes - inspirados nos amigos do peito-, os quais se mostram tanto mais envolventes e propensos a suscitar a índole projetiva do leitor quanto mais parecem estar imersos numa atmosfera de insanável indeterminação. Enquanto os companheiros vão, aos trancos, modelando seus itinerários de vida afetiva e profissional, o herói, Eduardo Marciano, cumpre uma escalada que, ao fim, se revela um tanto frustrante, como que o obrigando a retornar, já veterano, deprimido, decepcionado, à meta de partida, a de se tornar escritor.
Ao tematizar constrições difusas e "universais" de gênero e idade, os avanços do enredo se escoram no embate entre o alter ego do autor -moço promissor com vocação literária, acadêmico de direito, namorado de garota bacana- e seus amigos, um deles engajado na militância clandestina de esquerda, adiante enquadrado como médico e pai de família, outro como mestre-escola, rodeado de discípulos. O herói é o alvo privilegiado dessa única possibilidade de se "viver todas as vidas" pela leitura ou pela escrita, como dizia Flaubert: ambicioso e ingênuo, apaixonado e sacana, desprendido e interesseiro, Eduardo gostaria de poder agarrar o mundo com as mãos.
Outro ingrediente indispensável ao gênero "educação sentimental" consiste no roteiro apimentado de situações e parcerias amorosas, desde as escapadas com moças de condição social inferior ("empregadas" e "mulatas"), passando pelas experiências homossexuais (a que se vêem expostos heróis tão atraentes e ambivalentes como o flaubertiano Frédéric Moreau, na leitura de Sartre, ou nosso Eduardo Marciano), até as escapadas (pela ordem) com mocinha tentadora, piranha e viúva de amigo.
Tudo se passa como se a potência de seus pendores para a escrita tivesse se esvaído após o casamento com a filha de um ministro de Estado. Daí em frente, já morando na capital federal, numa roda de amigos ligados à atividade cultural, Eduardo vai desistindo de seus vínculos e intentos, alcoolizado, na busca sôfrega de namoradas avulsas para saciar o fastio da relação conjugal. O filho abortado e a separação apressam os lances de uma tomada de consciência, por parte desse protótipo de toda uma geração intelectual, prensada entre as colaborações prestigiosas na imprensa e as mordomias garantidas pelo emprego público. Eis a educação sentimental de um escritor brasileiro, ou melhor, a reconversão de um ex-nadador, talentoso, bonito e tumultuado, cujo único ponto de fixação na vida é o emprego público arranjado pelo sogro político.
O tal "encontro marcado" do início do livro, que ele combinara com os colegas, redunda num acerto de contas pessoal, já homem feito, amparado pelo socorro institucional e religioso. Eduardo fracassara como intelectual, marido, amante; agora, ao cabo de tantas fossas, quer se redimir peitando o trabalho como escritor e exonerando-se do emprego público.
Aos ingredientes costumeiros do itinerário de vida e trabalho de gerações sucessivas de intelectuais brasileiros -o treinamento precoce na imprensa, a estréia auto-financiada em letra de forma, o casamento para cima, a ida para o Rio de Janeiro, o envolvimento em rodas literárias e mundanas- , acrescentam-se a profissão de fé católica, certo indiferentismo político e a lealdade incondicional à panela de amigos de juventude.

A "mulher da voz"
"Perto do Coração Selvagem" também configura uma peculiaríssima "educação sentimental", assinada por uma jovem prosadora que estreou fazendo sucesso, de crítica e de público. O momentoso e inovador assunto do livro era a sua própria experiência, ora reciclada como estofo de um projeto criativo audacioso.
As crônicas de Clarice lidam com certos episódios que serão remexidos em sequências ficcionais do romance autobiográfico de estréia; em vez de proporcionar lastro à reconstrução de liames entre vida e obra, o interesse dessa ligação é clarear os flancos expressivos de sua dicção autoral, ou melhor, as modulações de uma voz narrativa de mulher. A figura compreensiva do pai, os banhos de mar, a lembrança da morte da mãe, a presença inquietante da tia, os bichos são materiais de vivência remanejados em chave falseada, que lhe facultam exprimir o linguajar quase indizível de uma moça empenhada em se fazer ouvir com todas as idiossincrasias de sua condição feminina.
O livro se desdobra em dois tempos: no primeiro, as andanças, os devaneios e as impressões de Joana menina, meio apartada, meio colada ao universo do pai; no segundo, já casada, em rota de colisão com seus próprios enguiços, tensionada pelos resmungos e afazeres do marido, tendo de se haver com outras figuras de mulher, por cujos enroscos revela simpatia, inveja e identidade.
Na primeira metade, Joana empreende sua aprendizagem afetiva ao lidar com forças masculinas, que despertam nela pulsões eróticas e desarranjos corporais arrepiantes. Na sequência, Joana como que retalha os quinhões de um destino intemporal de mulher em sucessivas encarnações, correspondentes às etapas do ciclo de vida: ela mesma fazendo as vezes de noiva, logo de mulher casada; Lídia, amante do marido, grávida; a gostosona esposa do professor; a ressequida "mulher da voz", viúva com um filho, descartada do jogo amoroso, prenúncio do que sucederia com Joana e, assim, com todas as mulheres; a prima Isabel, solteirona; a companheira do seu amante; a velha; e mesmo a cachorra prenha, que a comove pela continuidade de função vital exercida no mundo. Mesmo em relação às mulheres que lhe provocam repulsa, Joana não consegue reprimir o que têm de "secreto e mau em comum".
Essa paulatina conscientização de Joana se faz por sensações que dão fissura e energia ao corpo. O impulso sensual vai compondo uma poética descompassada, de mistura com uma reflexão sentida, travada, que não abdica sequer dos obstáculos postos diante da construção ficcional. O conhecimento enunciado pela narradora está invariavelmente agarrado à sensação que se inscreve numa memória corporal, transcrita de chofre em instantes de vida, fugazes, tão cheios de sentidos a ponto de quase sufocar a personagem.
Joana vai sendo plasmada em meio ao convívio com os próximos e os estranhos, nas refregas do dia-a-dia, que a fazem apreender e incorporar os papéis assumidos pelas mulheres, e cujos registros perceptivos afloram na linguagem, em conceitos, divisões e classificações por gênero ("verde é homem, branco é mulher, encarnado pode ser filho ou filha (...)"Nunca" é homem ou mulher? Por que "nunca" não é filho nem filha?").
A modelagem de Joana se efetua em torno do corpo, pelo despertar dos sentidos, pela erotização, pelos emblemas (bigode etc.), pelos termos de parentesco, pelo contraste de forças na parelha, pela guerra amorosa e conjugal, pelo afogueamento causado pelos transtornos da natureza, como se todos os elementos do universo pudessem incendiar o desejo.

Registro sexuado
Uma das cenas mais atordoantes é a masturbação de Joana no banho, em cujo ambiente o leitor busca se orientar pelas pistas de embaçamento no cômodo. Após alguns gestos de alongamento, Joana alastra a faísca pelo corpo, num registro sexuado que nenhum homem saberia macaquear ou descrever. Adiante, o tesão de Joana por Otávio reitera o registro sensível desse estonteamento que passa da cabeça para as veias. Esboçadas da ótica de quem se sente entregue, atada, trespassada, as imagens de cópula dariam fecho a essa aprendizagem da verdadeira "mulher da voz" autoral que viria a ser Clarice. O livro se encerra com a mesma imagem do início, o barulho da máquina de escrever do pai, agora posse de Joana para aquele dia "em que todo meu movimento será criação".
Fernando Sabino se saiu bem no trabalho caprichado de editar os volumes de cartas, ao fornecer ao leitor informações oportunas acerca de personagens, acontecimentos, autoria de versos, na justa medida e sem sobrecarga de aparato crítico ornamental. Já o volume "Correspondências" se destina a iniciados. Além de não se atinar quanto aos critérios adotados na seleção de cartas e missivistas, afora o fato de sua disponibilidade, o leitor fica à mercê para suprir as lacunas gritantes de esclarecimento sobre pessoas e assuntos os mais comezinhos.


Cartas Perto do Coração
Fernando Sabino/ Clarice Lispector
Record (Tel.0/xx/21/2585-2000)
224 págs., R$ 20,00

Cartas na Mesa
Fernando Sabino
Record (Tel.0/xx/21/2585-2000)
320 págs., R$ 35,00

Correspondências
Clarice Lispector
Teresa Monteiro (org.)
Rocco (Tel.0/xx/21/2507-2000)
336 págs., R$ 37,00


Sergio Miceli é professor titular de sociologia na USP e autor, entre outros livros, de "Intelectuais à Brasileira" (Cia. das Letras).

Sérgio Miceli é professor do departamento de sociologia da USP.
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