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Maria das Graças de Souza - 18 - Setembro de 1996
A "Enciclopédia" no mercado
Foto da capa do livro O iluminismo como negócio
O iluminismo como negócio
Autor: Robert Darnton
Tradução: Maria Lucia Machado
Editora: Companhia das Letras - 576 páginas
Foto do(a) autor(a) Maria das Graças de Souza

uma boa parte da obra de Robert Darnton se caracteriza pela abordagem de aspectos considerados menores e por isso mesmo esquecidos pela historiografia em geral e pela historiografia das idéias em particular. A tese subjacente ao seu trabalho é a de que o processo de dessacralização da monarquia, um dos fatores que certamente contribuíram para que a Revolução de 1789 se tornasse possível, não se deveu propriamente à leitura de livros como o "Contrato Social", de Rousseau, mas à ampla difusão de textos de outra natureza, de qualidade inferior, obras de autores menores. Os exemplos seriam muitos: o romance erótico "Thérèse Philosophe", de autoria controversa, a utopia intitulada "O Ano 2440", de Mercier, e as "Anedotas sobre Madame du Barry", de um desconhecido Senhor de Mairobert.

Em "Boemia Literária e Revolução", Darnton distingue o "alto Iluminismo" de uma "subliteratura" produzida na época. Analisa o "submundo" das Luzes, habitado por "filósofos falidos", "Rousseaus de sarjeta", boêmios, escrevinhadores desempregados, sem prestígio, editores piratas e livreiros clandestinos, e que contudo teriam produzido a grande massa de libelos que, por via da irreverência e às vezes da obscenidade, teriam contribuído, mais do que a produção dos considerados grandes autores, para a derrocada do antigo regime.
Sem deixar de reconhecer a importância do material inédito analisado por Darnton, é preciso entretanto dizer que não são muito definidas as fronteiras entre o que ele denomina o "alto Iluminismo" e o "submundo" da literatura das luzes. Se o "Contrato" foi um fracasso do ponto de vista de sua difusão antes de 1789, a "Nova Heloísa" foi um "best seller", tanto quanto as anedotas sobre a amante de Luís 15. O sucesso do romance de Rousseau nos ajuda a entender, como mostra Darnton em "O Grande Massacre dos Gatos", o que havia mudado no comportamento e na sensibilidade dos leitores do século. Mas não apenas isto. Escrita na mesma época da "Carta a d'Alembert", a "Nova Heloísa" apresenta forte conteúdo crítico em relação à cultura do antigo regime.
Do mesmo modo, embora pertença ao "alto Iluminismo", Voltaire também escreveu e publicou obras do gênero escandaloso. O interessante seria poder cruzar esses domínios, estabelecer suas influências recíprocas, situá-los, para usar uma expressão cara a Voltaire, no "espírito da época", entendido como um conjunto de elementos da cultura da França pré-revolucionária, e que se manifesta tanto nos poemas maldosos de Voltaire sobre a regência do início do século e nos romances pornográficos quanto na "História das Duas Índias", de Raynal, ou no "Contrato Social".
De qualquer modo, um dos aspectos mais originais do trabalho de Darnton é o interesse em constituir os parâmetros de uma história do livro que se distinga tanto daquela que vigora nos EUA, e que se caracteriza por se apresentar como um campo restrito de bibliotecários e amantes de livros raros, quanto daquela produzida pelos franceses que, embora tenha o mérito de ter tirado a história do livro do domínio da pura erudição, limitou-se a efetuar levantamentos em bibliotecas e inventários de heranças. Falta aos historiadores do livro, segundo Darnton, a análise do processo de produção, edição e sobretudo difusão dos livros. Uma análise de tal natureza, um exame do que se poderia chamar a base material da comunicação do pensamento, forneceria os dados para a compreensão da experiência literária e permitiria construir uma visão do modo pelo qual as idéias penetram e incidem sobre os rumos da sociedade.
Esta tarefa é realizada em larga escala em "O Iluminismo Como Negócio". O livro toma a "Enciclopédia" no momento em que Diderot encerra a sua participação no empreendimento, em 1772, e, acompanhando as edições subsequentes, busca delimitar qual o impacto da obra na difusão do ideário iluminista. Interessa a Darnton investigar os rumos da "Enciclopédia" a partir do momento em que passa a ser dirigida por Panckoucke, nas mãos de quem a obra se transformará num negócio extremamente vultoso e lucrativo.
As quatro primeiras edições, no caro formato "in-folio", colocaram no mercado quase dez mil coleções da obra. As edições "in-quarto" de Genebra e a "in-octavo" de Lausanne puseram em circulação, em números aproximados, mais de 14 mil "Enciclopédias". Isto significa que por volta de 1782 mais de 23 mil "Enciclopédias" estavam nas mãos de leitores, em bibliotecas, nos chamados "cabinets de lecture" ou nos depósitos dos livreiros. Levando-se em conta o número de volumes de cada coleção (17 de texto e 11 de ilustrações para as quatro primeiras edições "in-folio", 36 de texto e 3 de ilustrações para as edições de Genebra e Lausanne, mais os volumes que foram publicados como suplementos), tem-se uma idéia do que isto significava para a indústria do livro na época.
Não apenas o Iluminismo aparecia como um negócio lucrativo, como também se presenciava o fato de que a obra projetada por Diderot crescera a ponto de sobrecarregar a capacidade da indústria da impressão numa vasta área da Europa. Segundo mostra Darnton, entre 1777 e 1780, havia cerca de 100 prelos em 20 tipografias diferentes, trabalhando apenas na edição "in-quarto", sem contar o número de contrafações e edições-pirata, muito comuns no século. Isso implicava alterações no mercado de papel, de tipos, de tintas, no recrutamento de operários, na compra de equipamentos, na ampliação de depósitos etc.
É curioso observar que parece haver uma relação direta entre a progressiva adaptação do conteúdo da "Enciclopédia" aos padrões oficiais e sua conformidade às exigências da censura, de um lado, e a estrondosa ampliação de sua divulgação, de outro. Quanto mais era expurgada a obra, mais facilidades Panckoucke obtinha em seus acordos, e consequentemente maiores eram as tiragens e os lucros. A primeira edição, ainda sob a direção de Diderot, pelo menos em seus últimos volumes, já havia sido mutilada pelos editores, que não queriam arriscar-se a mais uma interdição. Sabe-se que Diderot nunca teria perdoado isto ao livreiro e editor Le Breton. A partir do momento em que Panckoucke passa a dirigir o projeto, o texto será incessantemente alterado, com exclusão de verbetes, inclusão de outros, amenização de passagens que poderiam sugerir adesão a doutrinas heterodoxas. Finalmente, a substituição do projeto original pelo da nova "Enciclopédia Metódica" fará de Panckoucke o maior empresário do ramo no século.
Na verdade, a "Metódica", embora fosse apresentada aos leitores como uma reformulação da primeira enciclopédia, é de fato outra obra. A modificação na maneira de apresentar os verbetes, não mais em ordem alfabética, mas reunidos em blocos por domínios do conhecimento, não foi a alteração principal. O conteúdo dos verbetes passou a ser tratado de modo mais técnico. A nova geração de enciclopedistas contratada por Panckoucke era mais especializada, mais próxima do que será mais tarde a figura do cientista moderno. Se seu trabalho podia ser considerado mais "profissional", perdia muito do conteúdo filosófico e da força crítica que caracterizavam a obra original. Mais especializada em relação à sua antecessora, a "Enciclopédia Metódica" tornou-se, como afirma o próprio Darnton, "intelectualmente insípida". Isto explica, em parte, o fato de a obra-mestra de Panckoucke ter obtido os favores das autoridades dos anos finais do Antigo Regime, atravessado o conturbado período revolucionário, durante o qual, apesar de algumas dificuldades financeiras, não sofreu nenhuma censura ou perseguição por parte dos novos líderes, e ter adentrado incólume até o período da restauração.
Não deixa de ser curioso o fato de Darnton considerar a "Metódica" a "obra suprema do século", a "enciclopédia suprema do Iluminismo". Do ponto de vista dos números espantosos de tiragem e vendas, certamente ela superou todas as expectativas da época. Mas tinha já perdido o que para Diderot e d'Alembert deveria ser o seu mais importante traço: o objetivo de "examinar tudo, remexer em tudo sem exceção e sem escrúpulos", para "mudar a maneira geral de pensar" dos homens.
Ao assinalar a importância que adquiriram, no processo que culminou com a Revolução Francesa, os editores e autores clandestinos menores, poetas boêmios, panfletistas e pseudocientistas, e sobretudo ao elevar Panckoucke à categoria de maior divulgador do Iluminismo, a perspectiva assumida por Darnton sugere, se não uma substituição, pelo menos um repovoamento do Panteão, com a entrada destes novos heróis. Mas o Iluminismo propagado por Panckoucke era coxo. O projeto original pretendia atingir duas metas: apresentar um quadro sistemático dos conhecimentos humanos e atingir os alicerces culturais que sustentavam a velha ordem. O projeto de Panckoucke guardou apenas a primeira delas, e, quanto à outra, abandonou-a, conformando-se aos poderes estabelecidos.
Finalmente, as análises de Darnton, tanto nesta obra como naquelas sobre o submundo da literatura e sobre o comércio de livros clandestinos, sem fazê-lo de modo explícito, acabam por operar uma espécie de desqualificação das origens intelectuais e culturais da Revolução Francesa: não foi a boa filosofia, nem a boa ciência, nem a boa enciclopédia que contribuíram para o enfraquecimento do Antigo Regime. Se acreditarmos que desqualificar as causas significa desqualificar também os efeitos, a perspectiva nos parece no mínimo polêmica. 

Maria das Graças de Souza é professora do departamento de filosofia da USP.
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