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Nicolau Sevcenko - 92 - Janeiro de 2003
A força da história
O historiador Carlo Guinzburg critica concepção relativista e cética da história
Foto da capa do livro Relações de força
Relações de força
Autor: Carlo Guinzburg
Tradução: Jônatas Batista Neto
Editora: Companhia das Letras - 198 páginas
Foto do(a) autor(a) Nicolau Sevcenko

Dizer de Carlo Guinzburg que é um dos historiadores mais admirados do mundo contemporâneo é ainda dizer pouco. Em vários sentidos ele redefiniu a prática, o campo e os limites da historiografia. O viço inovador de seus estudos e ensaios se abre para a filosofia, a antropologia, os estudos literários, a iconografia, a hermenêutica, a semiologia, a política e que outras áreas houver, capazes de enriquecer o trabalho do historiador, tornando sua atividade crítica num epicentro das humanidades. Não é de admirar que suas obras despertem o entusiasmo dos estudantes de quaisquer áreas que tenham acesso a elas.
Esse seu novo livro, bem traduzido por Jônatas Batista Neto, vem se juntar a uma obra toda ela de conhecimento obrigatório para quem deseja sintonizar com a fronteira do debate intelectual. O assunto, à primeira vista, pode parecer muito técnico, e o argumento, demasiado detalhista. Mas o estilo de Guinzburg é de uma clareza cristalina e o seu modo de conduzir a investigação histórica prende o leitor como um engenhoso conto de detetive.
O livro é todo ele um debate com a corrente que Guinzburg denomina de "relativismo cético". Ela reúne aqueles que defendem "as teses baseadas na redução da historiografia à sua dimensão narrativa ou ficcional", ou seja, aqueles que encaram a escrita da história como uma espécie de exercício variante da criação literária. Há vários nomes por trás dessas teses, mas o que ressalta, no que ele chama de versão feroz, é Paul de Man. Outros que comporiam esse círculo cético, na versão branda, incluem Hayden White, Richard Rorty, Roland Barthes, Michel Foucault e Jacques Derrida, dentre os mais célebres.

Combate ao positivismo
Como teríamos chegado a essa situação? Como teria a pesquisa histórica perdido seu estatuto de uma disciplina consolidada dentre as ciências humanas, passando a ser reenquadrada no contexto dos estudos literários? Segundo o professor Guinzburg, essa metamorfose teria ocorrido como uma consequência do combate sistemático às posições do positivismo ao longo dos anos 1960 e 70. No seu afã de contestar os dogmas do saber positivo, esses intelectuais centraram fogo no que consideravam como o mais sólido bastião defensivo do inimigo, sua obsessão pela prova.
Dessa forma, segundo ele, ao jogarem fora a água suja da prova positivista, esses teóricos teriam jogado junto o bebê do conhecimento histórico. Para completar o infanticídio, eles teriam substituído a criança perdida pela retórica e seus artifícios ficcionais. Mas onde então buscaram fundamentos para justificar uma operação tão drástica?
A partir daqui começam as grandes revelações, desvendadas pela lupa implacável do detetive Guinzburg. Pistas colhidas dentre vários autores céticos apontam todas na mesma direção, Nietzsche, e para uma mesma fonte, "Acerca da Verdade e da Mentira". Esse texto era o esboço de um futuro livro, que o filósofo, ao redor dos 30 anos, numa fase de intensa depressão e ceticismo, acabaria abandonando inconcluso. Ele seria, entretanto, publicado postumamente, em 1903. Lá estava a passagem que seria a chave de toda a "virada retórica":
"Que é então a verdade? Um exército móbil de metáforas, metonímias, antropomorfismos, em resumo: uma suma de relações humanas que foram reforçadas poética e retoricamente, que foram deslocadas e embelezadas e que, após um longo uso, parecem, a um dado povo, sólidas, canônicas e vinculatórias. As verdades são ilusões das quais se esqueceu a natureza evasiva, são metáforas que se esgarçaram e perderam toda forma sensível, são moedas cujas imagens se apagaram e são levadas em consideração apenas como metal e não mais como moedas".
A investigação meticulosa de Guinzburg revela as duas fontes básicas dessas elaborações de Nietzsche. A primeira é o diálogo do retórico Cálicles, defensor do poder manipulatório das palavras e dos privilégios dos poderosos, com seu adversário, o filósofo Sócrates, partidário da justiça e da igualdade, tal como apresentado no "Górgias", de Platão.
A segunda das fontes desse texto cético de Nietzsche é ainda mais reveladora. Num fluxo surpreendente de relações cruzadas, vemos o filho de pastor protestante e ex-aluno de teologia, que renegara o pai, a fé e a carreira eclesiástica, enveredar pelas obras de Overbeck e Gerber, para chegar a Goethe e nada menos que Lutero, Santo Agostinho, São Paulo e o Evangelho de São João. Na senda dessa linhagem, "a linguagem é espírito", Deus é Verbo e articula o mundo como uma urdidura de tropos retóricos. O que leva Guinzburg à desconcertante conclusão de que "a filosofia do idealismo alemão é, sob muitos aspectos, um cristianismo protestante secularizado". Nietzsche representaria o ápice das estirpes idealista e romântica, inscrevendo a redenção humana como sumo artifício retórico, só que em chave cética.

Poesia e história
Afora esse texto crucial do mestre alemão, há ainda um outro, que compõe o segundo pé para a sustentação das teses do relativismo cético. Trata-se da "Poética", de Aristóteles, na qual ele define a poesia como atividade mais filosófica e elevada que a história, na medida em que a primeira cogita de eventos gerais e possíveis, ao passo que a segunda se limita aos fatos particulares e reais. Os céticos interpretam esse texto como uma redução da história a um campo menor no contexto da poética e como uma afirmação da soberania da retórica como o saber último sobre os potenciais da linguagem. Para eles, tanto a história quanto qualquer romance, por exemplo, têm exatamente a mesma finalidade, a de criar mundos textuais autônomos e convincentes, sem nenhuma relação com quaisquer eventos externos ao universo da linguagem. História e ficção só existem como artefatos retóricos.
Guinzburg discorda frontalmente dessa posição, tomando como base outro texto de Aristóteles, a "Retórica", no qual ele destaca o papel exponencial da prova, como o único elemento capaz de legitimar os procedimentos retóricos. Essa é a razão pela qual Aristóteles critica o historiador Heródoto, dado a incorporar à sua narrativa fantasias destituídas de evidências e comprovação, preferindo Tucídides, cujos argumentos remetem sempre ao "núcleo central da prova".
Mas então, se para o grande mestre Aristóteles a retórica estava tão inextricavelmente presa à prova, como se firmou a tradição segundo a qual a retórica passou a ser associada apenas à ficção e ao universo impalpável da linguagem? A resposta está na incorporação da cultura grega pela romana e nas inevitáveis distorções que se seguiram. O personagem decisivo aqui é o maior orador e pensador político romano, Cícero, que, tendo conhecimento precário e indireto de Aristóteles, estabeleceu uma nova concepção de retórica:
"A nossa oratória deve ser adaptada aos ouvidos da multidão; deve seduzir os ânimos, deve convencê-los, deve provar seus argumentos não com a balança dos ourives, mas sim como uma espécie de balança popular".
Soa familiar? Deve soar, pois essa é a nossa herança cultural e, infelizmente, sobretudo política. E é desse legado que derivou a concepção da retórica como a arte do agenciamento dos sentidos, da excitação do imaginário e da manipulação da linguagem, para fins de sedução, conformação e mobilização coletiva. Daí decorrem também sua associação com a ficção e seu divórcio final com as exigências da prova.
Jogada para a sombra, a tradição crítica de Aristóteles não morrera em definitivo. Um mestre latino posterior, Quintiliano, escreveria um tratado, "Institutio Oratoria", destinado a transmiti-la a gerações posteriores. Quem haveria de resgatar essa linhagem, transformando-a na peça angular da crítica humanista foi Lourenço Valla, no seu bombástico "Discurso Sobre a Falsa e Enganadora Doação de Constantino".
O texto foi escrito em 1440, mas só publicado em 1506, tão explosivo era seu impacto político. Nele, Valla demonstrava a fraude do documento mediante o qual, supostamente, o imperador Constantino teria doado metade do seu império ao pontífice de Roma. A Igreja forjara e usara esse falso testamento durante séculos para legitimar suas pretensões ao poder temporal. Valla lançou a pá de cal sobre as ambições do papado. Tão notável quanto sua proeza política era a verve com que desmantelou um a um os argumentos e a linguagem da "Doação", aplicando exemplarmente as lições sobre os rigores da prova da retórica de Quintiliano. Guinzburg traça os passos que de Valla, por meio de Mabillon, Montfaucon e os eruditos de Saint-Maur, levam diretamente a Marc Bloch e Walter Benjamin, no século 20, e à consolidação da historiografia em sua versão mais moderna e engajada.

Inversão do argumento
Nos três ensaios finais do livro, conduzindo a análise crítica com a graça de um virtuose, Guinzburg inverte o argumento, passando a demonstrar como as próprias criações artísticas, literárias e retóricas são fontes valiosas para aprofundar o conhecimento histórico. Num documento jesuítico sobre uma revolta de nativos das ilhas Marianas, de 1700, ele detecta uma inesperada intromissão das vozes locais, invadindo o monólogo da cultura colonialista européia. Noutro estudo, sonda as elipses, silêncios, e rupturas narrativas de Flaubert, revelando suas densas conotações históricas. No último, recompõe o percurso iconográfico que resultou na tela "As Senhoritas de Avinhão", de Picasso, decifrando o complexo jogo de trocas culturais, entre as colônias e a Europa, entre os tempos arcaicos e a modernidade, entre a arte e a história, que pulsam em tensão extrema numa das obras seminais da cultura contemporânea.
Ao virar a última página, a arquitetura do livro se recompõe como um todo. A expansão e o domínio do Ocidente burguês impôs sua hegemonia sobre outros povos, outras culturas e classes, o que é um fato. Mas nem de longe esse processo é unívoco, consumado ou moralmente isento. O objetivo da pesquisa histórica é esgarçar a pretensa coerência desse tecido discursivo, abrindo poros por onde transpirem presenças, experiências e sentidos antes destinados a permanecer ocultos ou sufocados, como num teatro cujo pano de boca nunca subisse.
O problema com o relativismo cético é que ele insiste em que atrás do pano de boca só há o avesso do pano de boca. Os fatos ficam reificados na linguagem e os juízos éticos são remetidos à dinâmica do imaginário. O que se perde de vista são as relações de força, o nexo explicativo entre os fatos que se impõem e as vivências que se escamoteiam. Guinzburg restitui o ofício do historiador à sua mais plena dignidade.


Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura na USP.

Nicolau Sevcenko é professor de história na USP.
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