Logotipo do Jornal de Resenhas
Franklin de Matos - 92 - Janeiro de 2003
Anatomia do riso
Quentin Skinner discute o significado do fenômeno desde a Antiguidade
Foto da capa do livro Hobbes e a teoria clássica do riso
Hobbes e a teoria clássica do riso
Autor: Quentin Skinner
Tradução: Alessandro Zir
Editora: Editora Unisinos - 88 páginas
Foto do(a) autor(a) Franklin de Matos

A Amilcar de Castro


"O entusiasmo súbito é a paixão que provoca aqueles trejeitos a que se chama riso. Este é provocado ou por um ato repentino de nós mesmos que nos diverte, ou pela visão de uma coisa deformada em outra pessoa, devido à comparação com a qual subitamente nos aplaudimos a nós mesmos."
Ao ler esta passagem do filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), o leitor bem poderia perguntar: que importância tem para a filosofia o riso, essa reação banal à qual nos entregamos tantas vezes no mesmo dia? De que modo escreveu sobre ela o autor do "Leviatã", um dos fundadores da moderna filosofia política? E o que tem a ver esse prazer aparentemente desinteressado com as idéias de deformação, competição e vaidade? Essas e outras questões são respondidas por outro filósofo inglês, Quentin Skinner, num ensaio denso e erudito, que antes desta conheceu outras versões, uma reproduzida no caderno Mais! de 4/8/2002.
Skinner descobriu o tema ao escrever "Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes" (Unesp), no qual sustenta que o "Leviatã" emprega sistematicamente as técnicas da "ars rhetorica" que o filósofo aprendera com os humanistas ingleses do Renascimento, para a qual o saber é silencioso, impotente para falar e precisa da eloquência a fim de se fazer valer. Assim, ensinam os retóricos desde a Antiguidade, uma das partes fundamentais dessa arte é a "elocutio" ("elocução"), capacidade de escrever ou falar com plena expressividade e persuasão, e que, para tanto, precisa de dois traços: clareza e "ornatus". É bom anotar que os "ornamenta" não são apenas adornos ou embelezamentos, mas as "armas" que o orador deve aprender a manejar para ser bem sucedido, aquilo que dá ritmo e força ao discurso. Ora, para conferir-lhe "ornatus", podem-se empregar dois meios. Primeiro, usar as figuras e tropos de modo a tornar o ouvinte um espectador, fazendo-o "ver" aquilo que o orador diz e, portanto, aderir à sua visão (em geral, isso é obtido quando se inspira a comiseração do auditório). O segundo meio consiste em provocar o sentimento oposto, o desdém e o riso daqueles que ouvem, a fim de tornar ridículas as posições do adversário. Se em "Razão e Retórica", Skinner consagra várias páginas a estudar as figuras de linguagem utilizadas por Hobbes no "Leviatã", a fim de satirizar seus inimigos, no presente ensaio vai em busca da própria concepção do riso subjacente a seus procedimentos.

A concepção clássica
Desde a Antiguidade a filosofia se viu às voltas com o riso e as paixões por ele mobilizadas. Em sua "Retórica", Aristóteles vincula-o à zombaria e ao desprezo e, na "Poética", afirma que o ridículo é uma forma do vergonhoso, do feio e do baixo. Rimos daqueles que possuem uma marca constrangedora e, por isso, são considerados inferiores, especialmente se o estigma é moral (exceto os casos de completa depravação). Em suma, como já dissera Platão, o riso é uma reprovação do vício.
Essa teoria foi de pronto retomada por duas correntes distintas, mas convergentes. A primeira é médica e tem origem numa célebre carta atribuída a Hipócrates, que elogia o riso desdenhoso do sábio Demócrito diante das tolices humanas. A outra é dos escritores retóricos, que reafirmam a ligação entre a deformação e o ridículo, mas não se limitam a repetir Aristóteles. No "De Oratore", Cícero lembra a importância do inesperado para provocar o riso e, em "Institutio Oratoria", Quintiliano desenvolve uma idéia que será decisiva para Hobbes: a de superioridade desdenhosa. Quando rimos de alguém, estamos com frequência nos gabando e aplaudindo a nós mesmos, pois descobrimos no outro uma fraqueza ou defeito que nos torna superiores.
Durante o Renascimento a teoria clássica do riso voltou a ganhar relevo. Aqui devem-se distinguir os humanistas, cujo domínio é a retórica e entre os quais se destacam Baldessare Castiglione e Juan Luis Vives, e os médicos, que examinam o fenômeno de uma perspectiva psicológica ou fisiológica, como é o caso de Laurent Joubert. A exemplo dos clássicos, esses autores estão interessados nas emoções que provocam o riso e, como eles, insistem que, quando rimos, nossa felicidade não pode ser separada dos sentimentos de sarcasmo, desprezo ou até mesmo ódio.
Segundo Skinner, dois pontos foram aperfeiçoados pelos escritores renascentistas. O médico Girolamo Fracastoro enfatizou especialmente o papel da surpresa, já lembrada por Cícero: as coisas que nos levam a rir devem ter alguma novidade e aparecer de modo repentino e inesperado. O imprevisto geraria a "admiratio", que levaria, por sua vez, à "delectatio", que afinal provocaria o riso. Além disso, como Aristóteles não definira o ridículo e tampouco dissera que vícios seriam mais facilmente escarnecidos pelo riso, os humanistas tentaram esclarecer a questão. Segundo eles, os defeitos que merecem desprezo são aqueles aos quais falta uma certa naturalidade, sem serem de uma completa perversidade. A opinião geral então se concentra em três vícios, aliás explorados pelos autores de comédias em todos os tempos: a avareza, a hipocrisia, a vanglória.
Entretanto, mais importante que essas ampliações, foi o surgimento de uma tendência que começou a duvidar que a relação entre alegria e escárnio bastasse para explicar o riso. O que acontece quando riem as crianças, os amantes que se reencontram ou aquele que acolhe os amigos e conhecidos? Não existiria um riso puramente bondoso, simples reação a um acontecimento agradável e surpreendente? Às vezes, não rimos de pura "perplexidade"? É o que parece ocorrer quando sentimos uma mudança repentina em nossas expectativas, quer por alguma justaposição surpreendente ou outro tipo de incongruência -por exemplo: quando um homem se veste de mulher, um príncipe de camponês ou a imaginação de um fidalgo enlouquecido pelos romances transforma prosaicos moinhos em ameaçadores gigantes.

A teoria de Hobbes
No início do século 17 parecia certo que o escárnio não explicava por inteiro o fenômeno e que era preciso admitir igualmente um riso de pura benevolência. Entretanto os dois maiores filósofos de então, Descartes e Hobbes, ignoram essa recente conquista, reatando com a ortodoxia da tradição. Em "As Paixões da Alma", Descartes volta a conectar a alegria do riso apenas ao ódio, ao desdém e à zombaria e, em "Elements of Law", Hobbes escreve que a "paixão do riso" é "uma súbita glória" decorrente de alguma superioridade que sentimos ao nos compararmos com as fraquezas alheias ou nossas próprias em tempos passados. Hobbes insiste que os homens acham odioso ser motivo de riso porque os sentimentos de glorificação daquele que ri são sempre desdenhosos e zombeteiros.
Para Skinner, a omissão de Descartes e Hobbes aos críticos da teoria clássica parece tanto mais surpreendente quanto ambos, sempre que podem, exibem aversão pelo aristotelismo. Será que eles desconheciam as ressalvas formuladas por esses autores? Para explicar o caso de Hobbes, Skinner arrisca uma hipótese. O autor do "Leviatã" não abre mão da análise clássica porque esta torna o riso uma espécie de ilustração exemplar de suas próprias concepções da natureza humana, daquele "desejo perpétuo de poder e mais poder, que cessa somente com a morte". Segundo Hobbes, os homens amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros, deleitando-se em comparar-se com os demais a fim de se sentirem superiores. Ora, em seus trejeitos convulsivos, não são esses os sentimentos que o riso mobiliza incessantemente? Não é para sua própria glória que se ri do outro? Rir dele não é precisamente dominá-lo?
E, por isso mesmo, porque põe a descoberto a natureza humana, para Hobbes o riso precisa ser submetido a um severo controle. Conforme Quentin Skinner, o riso sempre fora bem visto por uma certa tradição, não apenas por aqueles que o consideravam uma expressão de pura alegria e prazer, mas principalmente por quem o tomava como um meio para preservar a saúde ou ainda um instrumento moral de reprovação do vício. Durante o século 17, porém, as coisas mudam de figura e, especialmente nos livros de cortesania, o riso passa a ser algo censurado. Certamente tais reservas se devem a uma crescente exigência por altos padrões de decoro e autocontrole, próprios do chamado processo "civilizador".
Hobbes também desconfia do riso, mas não pelos mesmos motivos. Suas razões são primeiramente morais: rir em demasia é sinal de pusilanimidade, pois ri muito quem tem poucas "habilidades" e só consegue manter a auto-estima observando as "imperfeições" do próximo (em contrapartida, as "mentes elevadas" costumam se comparar apenas com os mais hábeis). Nesse sentido, escreve Skinner, o riso para Hobbes seria uma "estratégia" para lidar com nossos sentimentos de inadequação e insegurança.
Mas suas principais razões para reprovar o riso são sociais. Se sua filosofia política se funda no princípio de que se deve buscar e preservar a paz a todo custo e, por isso, ninguém deve mostrar ódio ou desprezo pelo outro, não é compreensível que seja o riso a maior das ameaças? Como pode uma boa sociedade tolerá-lo irrestritamente?

Nova inflexão
Embora "Razão e Retórica" já insistisse que a análise hobbesiana do riso "mal chega a exibir qualquer originalidade" e embora seja patente sua filiação à tradição, creio que se pode inferir do próprio ensaio de Skinner que essa análise dá uma nova inflexão à teoria clássica. Primeiro, porque Hobbes enfatiza de modo especial uma idéia que já se acha em Quintiliano: a convicção que a reprovação do vício não é a finalidade do riso, mas, por assim dizer, seu instrumento, em vista do verdadeiro objetivo, a autoglorificação e a dominação. Para ele, o que está em primeiro plano são as paixões, o que traz o fenômeno para o coração de sua antropologia. Quanto aos clássicos -que de modo algum se desinteressam pelas paixões ligadas ao riso-, ao insistirem na idéia de reprovação do vício, fatalmente acentuam o lado "racional" do riso. Tanto é que essa ênfase já aparece no famoso texto que os antigos latinos conheciam como "De Partibus Animalium", no qual Aristóteles afirma que o riso é o elemento que distingue o homem dos outros animais.
Além disso, pode-se dizer que Hobbes de certo modo inaugura uma nova tradição, na qual a análise retórica, psicológica ou fisiológica do riso é subordinada a um ponto de vista mais abrangente, o social e político. Se assim for, seu herdeiro mais imediato é certamente Jean-Jacques Rousseau que, na "Carta a d'Alembert Sobre os Espetáculos" (Unicamp), faz algo parecido: retoma a teoria clássica do riso a fim de condená-lo com energia, submetendo-o a uma crítica moral e, portanto, política, pois as duas coisas são para ele indissociáveis. Seu argumento central afirma que, ao ridicularizar os vícios, o riso nos leva a temer os ridículos e não os próprios vícios (o que importa não é ser virtuoso, e sim não parecer ridículo). E seu maior efeito é nos submeter à "opinião", para Rousseau o maior dos males. A exemplo do caso de Hobbes, a crítica do riso nos leva assim ao coração da filosofia rousseauniana. Mas não custa lembrar que Hobbes reprova o riso porque este é uma ameaça para a sociedade, enquanto Rousseau o recusa pela razão oposta, porque ele reforça as normas sociais (ao menos aquelas do tipo de sociedade que censura -no caso de Molière, por exemplo, "l'homme du monde" prezado no Antigo Regime).
Outro capítulo fundamental dessa nova tradição será certamente reservado a "O Riso" (Martins Fontes), ensaio publicado por Henri Bergson no início do século 20 e no qual a relação entre o riso e a sociedade torna-se premissa de análise. Segundo Bergson, não se pode compreender o fenômeno se não se admitem três princípios: não há riso sem humanidade (dizem que o homem é o único animal que ri, mas também se deveria dizer que é o único do qual se ri); o riso supõe a insensibilidade (rir é uma operação da inteligência, que exige o bloqueio do sentimento: o maior inimigo do riso é a emoção); e enfim não há riso sem sociedade (nosso riso é sempre de um grupo).
Existem outras maneiras de se compreender o riso, escoradas em tradições distintas, mas creio que em todas ele tem a ver com a racionalidade, a paixão, a linguagem, a sociedade. Certa vez Miguel de Cervantes afirmou, antecipando Bergson, que "uma das definições do homem é dizer que é um animal risível". Poderia a filosofia ignorar o fenômeno?


Franklin de Mattos é professor de filosofia na USP e autor de "O Filósofo e o Comediante - Ensaios sobre Literatura e Filosofia na Ilustração" (UFMG).

Franklin de Matos é professor do departamento de filosofia da USP.
Top