Para Gianni Ratto, a principal qualidade da cenografia deve ser sua funcionalidade
As dimensões da encenação
MARIA SÍLVIA BETTI
Ao contrário do que anuncia a declaração de intenções do autor, o "Antitratado" é muito mais do que simples obra introdutória dirigida ao leigo: trata-se de trabalho que só a vivência profunda de seu tema pode produzir. Trata-se, ainda, de trabalho de artífice e, ao mesmo tempo, de fino observador e fruidor do teatro em particular e das artes em geral.
Trabalho que, em decorrência dessas características, não se deixa impregnar da aridez do jargão técnico ou da formalidade das abordagens acadêmicas. Seu tom é antes o de conversa informal com um velho mestre, que discorre sobre os aspectos conceituais e artesanais das diferentes formas cenográficas, pictóricas e arquitetônicas ao longo dos tempos. Não há didatismo ou preocupação sistematizadora, e não se interrompe o fio temático das questões tratadas, já que as informações biográficas e históricas encontram-se disponíveis no final, num oportuno glossário de referências explicativas.
Dotado de ampla cultura humanística, Gianni Ratto busca, antes de mais nada, a decantação quase alquímica das idéias, movido pela convicção, por ele próprio classificada de romântica, de que, embora a arte não se ensine, o desenvolvimento de uma sensibilidade aplicada a seus mecanismos pode propiciar o germe da criação.
Para Ratto, a história da humanidade é a história das obras nas quais está presente a grande arte: nelas, em seu entender, a questão da autoria não se coloca. A idéia de uma cultura fundada em valores humanísticos é postulada com convicção ao longo de todo o trabalho, e a ausência contemporânea de grandes valores de base comunitária -humildade e senso de coletividade, por exemplo- é discutida e condenada.
Definições de cenografia
Desenvolvendo seu discurso mediante associações e imagens, Ratto procura sempre ilustrar conceitos e termos, utilizando-se de farto material iconográfico: nele o leitor encontra não apenas documentos que remetem à natureza técnica da cenografia, mas também ilustrações de obras de diferentes períodos da arte européia, cujas concepções de espaço e luz são analisadas detalhadamente. As definições e implicações da cenografia, objeto central das formulações do autor, são examinadas sob diferentes ângulos de observação: um, mais genérico, voltado para a discussão de aspectos conceituais, outro, mais técnico e voltado para os recursos expressivos, e um terceiro, mais pragmático, dirigido àqueles eventualmente interessados em absorver e aplicar os conhecimentos do autor.
Se é possível resumir o teor do trabalho sem empobrecê-lo, pode-se dizer que nele a arte da cenografia é definida não apenas como concretude do espaço eleito para o desenrolar de um espetáculo, mas como a atmosfera criada para que uma realidade ilusória adquira foro de verdade. A cenografia não deve ser meramente decorativa nem gratuitamente bela: sua qualidade principal é a funcionalidade, já que ela deve desempenhar um papel paralelo ao dos próprios atores. Valorizando a economia de expressão, Gianni Ratto destaca também o valor do diálogo com os demais elementos constitutivos da encenação, como a luz e os figurinos.
Em seu entender, o grande desafio da criação cenográfica é captar a tridimensionalidade do espaço da encenação, partindo da bidimensionalidade inicial do papel. O processo de trabalho por ele preconizado valoriza as soluções artesanais mais do que a sofisticação tecnológica, e o antiilusionismo mais do que o verismo cenográfico. O urdimento interpretativo do espetáculo, por exemplo, não pode ser totalmente projetado e controlado por meio da utilização de maquetes; tudo o que implique preconcepção do ato interpretativo tende, também, a ser olhado com reservas, já que importantes recursos nascem, muitas vezes, da surpresa e da improvisação.
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Ratto valoriza a potencialidade dramática do palco vazio, onde cada pequeno detalhe será investido de carga expressiva. A cenografia não deve ter medo de assumir sua própria teatralidade quando esta é funcional. A capacidade de intuição do espectador vai muito além da visualidade do espetáculo, adverte ele, e não deve ser tratada como se fosse apenas decorrente dela.
Energia criadora
O verismo da cenografia operística contemporânea é igualmente criticado: para Ratto, a reprodução exata de um objeto real só se justifica quando de alguma maneira a concretude desse objeto foi alvo de algum tipo de ruptura, como nos relógios do quadro famoso de Dali ou nos retratos alegóricos de Arcimboldi.
Discutindo as transformações dos espaços teatrais através dos tempos, Ratto procura sensibilizar o leitor para as implicações sócio-históricas nelas presentes: partindo dos anfiteatros gregos, ele percorre sucessivamente a espetacularização da liturgia na Idade Média, o advento da perspectiva enquanto recurso expressivo no humanismo e as imposições do academismo oitocentista, vigente até as primeiras décadas do século 20. A linha histórica aí traçada aponta, em seguida, a discussão das concepções modernas, apoiadas na teatralidade. À tentativa de apreensão do cotidiano por Antoine, Ratto contrapõe as concepções de Meyerhold, Tairov, Piscator e Mielziner, entre outros.
Ao longo do processo histórico percorrido, é dos choques com a dramaturgia e com a realidade histórica que a cenografia tem, segundo ele, extraído forças para, ao fim de cada crise, retomar sua energia criadora. Com efeito, Ratto é bastante assertivo em sua defesa da palavra e da interpretação como valores constitutivos indissociáveis do teatro. Sua preocupação de base é, porém, a de questionar a crise de valores culturais no mundo contemporâneo e afirmar a necessidade de se reconquistar para o teatro uma cidadania perdida. Esta encontra-se, em seu entender, na recusa da grandiloquência visual e dos mega-investimentos, que só fazem por disfarçar a falta de cultura, a incompetência criadora e a crescente mercantilização da arte.
O livro de Ratto constitui, assim, não apenas um convite à reflexão específica sobre a natureza expressiva do espaço cênico, mas também uma oportuna e contundente afirmação de sua luta de artista em prol da cultura e da arte contra a barbárie de nossa presente conjuntura.
Antitratado de Cenografia - Variações Sobre o Mesmo Tema Gianni Ratto Editora Senac (tel. 0/xx/11/884-8122) 188 págs., R$ 35,00
Maria Sílvia Betti é professora na USP e autora de "Oduvaldo Vianna Filho" (Edusp).