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Henrique Espada Lima - 115 - Dezembro de 0012
Carlo Ginzburg e o enigma de Piero
Continuidade à experiência micro-histórica
Foto da capa do livro Investigando Piero
Investigando Piero
Autor: Carlo Ginzburg
Editora: COSAC NAIFY - 312 páginas
Foto do(a) autor(a) Henrique Espada Lima

Investigando Piero: eis o título que ganha em português a novíssima tradução do livro de Carlo Ginzburg sobre o mestre da pintura italiana do Quattrocento, Piero della Francesca. Publicado originalmente em 1981, o livro foi sucessivamente revisado pelo autor e a nova edição brasileira, traduzida por Denise Bottmann e cuidadosamente impressa pela editora Cosac Naify, corresponde à versão definitiva, publicada em 1994. A nova edição também sucede e atualiza a primeira edição brasileira (traduzida por Luiz Carlos Cappellano), publicada em 1989 pela Paz e Terra com outro título Indagações sobre Piero, e acrescida de quatro apêndices e 29 novas ilustrações (em um total de 124).
O título do original italiano, do qual a nova versão brasileira tenta se aproximar melhor - Indagine su Piero - remete diretamente ao procedimento do inquérito policial ou judiciário. E, de fato, o livro se constrói conscientemente como uma investigação detetivesca sobre a figura de Piero della Francesca ou, mais precisamente, sobre três das suas principais obras: o "Batismo de Cristo" pertencente à National Gallery de Londres, o ciclo de afrescos que decoram a Cappella Maggiore da Igreja de São Francisco de Arezzo, e a "Flagelação de Cristo", conservada na Galeria Nacional da Marca de Urbino.

 

Recepção hostil

 

Quase trinta anos depois da sua primeira edição, o livro parece ocupar hoje uma posição menos incômoda dentro dos estudos de história da arte do que teve nos anos de seu aparecimento. Tendo sido produzido por alguém que não se identificava como um "historiador da arte", mas como um intruso num campo marcado pelas suas próprias tradições analíticas, e relativamente impermeável a incursões de especialistas de outras áreas, Indagações sobre Piero teve uma recepção francamente hostil por boa parte do establishment da história da arte. "Um estudo mitômano, recheado de história imaginária": com essas palavras (citadas na nota 3, p. 248), John Pope-Henessy recebeu o livro de Ginzburg, dando testemunho de uma animosidade rara na crítica histórica, mas sintomática do tipo de afronta que uma obra como aquela parecia representar para os praticantes da disciplina.
As razões deste desacordo eram muitas. A maior talvez fosse a audácia de desafiar no seu próprio campo as interpretações produzidas por alguns dos maiores historiadores da arte sobre um dos mestres da pintura do Renascimento italiano. Ginzburg tinha plena consciência da provocação, dos seus riscos e, sobretudo, dos limites intelectuais enfrentados pelo seu próprio trabalho.
O "caso" Piero havia sido objeto de atenção de figuras chaves como Roberto Longhi, Kenneth Clark, Eugenio Battisti e Marilyn Aronberg Lavin (para citarmos apenas alguns). Pela notória carência de fontes sobre a vida e a obra do pintor, Piero permanecia então um verdadeiro enigma interpretativo e um desafio metodológico que, "independente de sua excelência artística", por si só justificava a empreitada (p. 15).
A convicção de Ginzburg de que uma leitura histórica da obra pictórica de Piero (e, de resto, de qualquer outra) não poderia deixar de articular os dados formais e os extraformais (os "documentos de arquivo e de biblioteca") tinha um tom decididamente polêmico numa disciplina onde seus praticantes muitas vezes construíam suas interpretações baseadas em análises exclusivamente estilísticas e iconográficas. A afronta metodológica acentuava-se com o objetivo, declaradamente "ambicioso", de "entrar num terreno, o da cronologia das obras, que os conhecedores sempre reivindicaram como área sua" (p. 24).

 

Enigma da obra

 

Daí a importância da "montagem" narrativa e demonstrativa do livro, que começa reconstruindo o próprio "enigma" interpretativo que envolvia a obra de Piero, centrado na datação dos três conjuntos pictóricos.
Revisitando as principais propostas de interpretação e datação das obras do pintor italiano - e com elas, alguns dos temas centrais da pintura italiana do Renascimento - Ginzburg reconstrói um quadro onde um punhado de referências documentais convivia com uma montanha de hipóteses de viabilidade duvidosa. Nesse quadro interpretativo confuso, identifica os elementos centrais de um quebra-cabeças cujas peças ele também pretende identificar e combinar.
Assim, o jogo interpretativo proposto articula dois planos: por um lado, explora a clientela de Piero, investigando suas relações com algumas figuras-chave do humanismo italiano (sobretudo aquele ligado ao Concílio de Florença em 1439 e o debate sobre a unificação das Igrejas cristãs do Oriente e do Ocidente), que teriam tido importância decisiva na construção do seu programa pictórico. Por outro lado, a pesquisa voltava-se sobre o exame de algumas "anomalias iconográficas" que permaneciam obscuras no "Batismo", no Ciclo de Arezzo e, sobretudo, na "Flagelação de Cristo". No entrelaçamento desses dois planos de análise Ginzburg encontra a equação que deve ser resolvida para desvendar o enigma de Piero.
Mas identificar o problema não é resolvê-lo, como bem sabe Ginzburg. É preciso em seguida compor o "campo de prova" onde as suas próprias hipóteses serão por sua vez construídas e testadas. É sobretudo na análise, conduzida nos capítulos três e quatro, sobre a tavoletta dedicada à "Flagelação" (sobre a qual não existe nenhuma informação indiscutível, a não ser a assinatura de Piero) que o jogo analítico proposto por Ginzburg encontra seu ápice e os resultados mais controversos.
A maestria na construção argumentativa da interpretação do quadro, entrelaçando a definição do tema, da iconografia e do comissionamento através de uma atenção minuciosa aos fragmentos documentais, às referências extraestilísticas e aos detalhes iconográficos, não esconde o fato de que algumas das suas mais importantes conclusões constroem-se sobre uma hipótese amplamente conjectural cuja comprovação carece até aqui de uma prova documental inequívoca. A reflexão do autor retorna assim ao ponto de partida teórico e metodológico explícito do trabalho, isto é, a pergunta sobre o estatuto da "prova" na investigação histórica.
"Provas", "evidências", "falsificação", "controle" são conceitos que se repetem continuamente ao longo do livro, remetendo constantemente a este ponto de partida. Explica-se aí o interesse que pode produzir não apenas no especialista, mas no leitor não familiarizado com a história da arte ou com as eruditas referências sobre humanismo italiano, que pode ler a obra erudita e densa de Ginzburg como um experimento fascinante a testar alguns dos fundamentos epistemológicos da disciplina histórica. Um exercício que está explicitamente conduzido no segundo apêndice do livro ("Flagelação: conjecturas e refutações"), que disseca em detalhe um erro interpretativo do próprio Ginzburg, utilizado como contraprova das possibilidades e dos limites do próprio experimento.
Investigando Piero ocupa um lugar importante na obra de Carlo Ginzburg (que o leitor brasileiro vem tendo a oportunidade de acompanhar através das suas muitas traduções). Por um lado, por dar continuidade em novos termos à experiência "micro-histórica" presente em seus trabalhos anteriores, da "leitura lenta" dos indícios de realidades históricas escassamente documentadas. Por outro, por inaugurar uma discussão sobre a noção de "prova" que continua a alimentar suas investigações históricas até hoje.
Depois de trinta anos, a decifração proposta por Ginzburg para a obra de Piero della Francesca ainda permanece controversa. Mas nesse tempo tornou-se também um livro incontornável.

 

Henrique Espada Lima é professor do departamento de história da Universidade Federal de Santa Catarina.
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