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Cláudia Valladão de Mattos - 61 - Abril de 2000
Lasar Segall errante
Exposição em Paris mostra
Foto do(a) autor(a) Cláudia Valladão de Mattos

Exposição em Paris mostra experiências do pintor como imigrante

Lasar Segall errante



CLAUDIA VALLADÃO DE MATTOS

A exposição sobre Lasar Segall no recém-fundado Musée d'Art et d'Histoire du Judaisme, em Paris, resultou de uma colaboração entre o Museu Lasar Segall (SP) e o David and Alfred Smart Museum, da Universidade de Chicago, que organizaram uma retrospectiva da obra de Segall, apresentada em Chicago e Nova York em 1997/ 98, usando a "imigração" como fio condutor.
Nos vários textos do catálogo da mostra, a obra de Segall é abordada de diferentes pontos de vista. A curadora justifica tal multiplicidade pelas diferentes experiências migratórias do próprio artista, que reverteram em importantes "mudanças de tema, estilo e meios artísticos".
Já na introdução do catálogo, D'Alessandro indicará a direção de sua própria leitura, que visa situar a vida e a obra de Segall no contexto da relação do europeu com as assim chamadas "culturas primitivas". Sua tese central, mais amplamente desenvolvida no artigo sobre "A Assimilação do Espetacular e do Inédito", é que uma visão colonialista, que identificava o negro (o mulato) e sua cultura como o "locus" de fantasias exóticas e sexuais do homem europeu, mediaria a recepção da cultura brasileira por Segall.
Em sua análise impecavelmente "political correct" da série "Mangue", D'Alessandro comenta: "Para ele, o Mangue representava um reino de sexualidade e exotismo desenfreados e ele se colocava como explorador artístico, aventurando-se no espaço erotizado do primitivo". D'Alessandro parece partir, no entanto, de uma equiparação, a meu ver equivocada, entre Segall e os artistas do ambiente cultural do expressionismo alemão, não levando em conta em sua análise a posição peculiar que o próprio Segall ocupava enquanto "ostjude" (judeu oriental) no contexto das vanguardas alemãs.
Guardadas todas as diferenças e proporções, seria fundamental indagar se Segall não se situaria, aos olhos de seus colegas alemães, em um universo mais próximo aos dos ditos homens "primitivos" que daquele da cultura européia "civilizada", uma vez que também ele era filho de um oriente distante, exotizado e incompreendido e, por isso mesmo, atraente.

Um olhar de empatia
Acredito que D'Alessandro não interpretou bem o olhar que Segall apresenta em suas pinturas do Brasil, a meu ver um olhar antes de empatia que de diferenciação. Empatia calcada em uma experiência pessoal de submissão ao olhar "voyeurista" europeu. A sua posição marginal dentro da cultura alemã propiciou as bases para uma aproximação do modo de vida brasileiro, menos mediada por preconceitos. Segall compreendeu muito bem e rapidamente, por exemplo, as reivindicações anticolonialistas do modernismo, assim como a ironia antropofágica, que ele reelabora.
As questões envolvidas no texto de Reinhold Heller são de outra natureza. Lançando mão do vasto material que encontrou à sua disposição no arquivo do Museu Lasar Segall, o autor investigou com competência o contexto histórico no qual o pintor viveu e produziu na Alemanha. A principal consequência desse trabalho foi apontar para uma importante incoerência nas datações atuais das obras expressionistas de Segall. Conhecedor do movimento expressionista alemão, Heller percebeu de imediato que as datas até hoje atribuídas a quadros como "Aldeia Russa" ou "Margarete" (1912 e 1913, respectivamente) não podem de forma alguma estar corretas, necessitando uma urgente revisão.
Em sua análise, um importante aspecto da biografia de Lasar Segall, que é fundamental para compreender a sua produção da época, foi, no entanto, deixado de fora: sua relação com o assim chamado "Movimento de Renascimento Judaico" nas artes plásticas, que nasceu na Rússia com artistas como El Lissitzky, Marc Chagall e Issachar Ryback, e ganhou grande popularidade entre artistas judeus de vanguarda na Alemanha, a partir da década de 20.
A meu ver, foi exatamente no diálogo com esse movimento que Segall desenvolveu seu expressionismo singular, e não com base em uma simples reelaboração de suas experiências de infância. Nesse sentido, considero ingênua a valorização que Heller faz da crítica alemã dos anos 20, como as de Rosa Schapire, Will Grohmann e Theodor Däubler, na verdade os primeiros a promover uma exotização da obra de Segall, vinculando-a diretamente ao mundo supostamente fantástico e místico do "Ostjude".
O texto de Vera D'Horta -que aliás acaba de lançar o livro "Lasar Segall" pela Fundação Finambrás- trata de aspectos biográficos do artista e investiga as supostas características de sua "alma". Com ela aprendemos que: "A vida brasileira de Segall foi pontuada pelos sinais exteriores de sua natureza russa e judaica, que ora surgiam estampados na camisa de gola alta com que se fez fotografar várias vezes, ora soavam nos acordes pungentes das músicas que ouvia no ateliê". No mesmo sentido, Vera D'Horta lança mão do velho Worringer para diferenciar o "traço de alma alemã" dos românticos e o "romantismo eslavo" de Segall, que "é o da alma altruísta e jovial dos russos", distinção que "também ajuda a entender seu expressionismo bastante particular".

Trabalho de memória
Por último, o catálogo traz a preciosa contribuição de Celso Lafer, que procura compreender de que forma Segall incorpora e elabora em sua obra a tradição judaica dentro da qual crescera e que formava uma parte essencial de sua identidade pessoal e artística. Sua leitura dos quadros de Segall como trabalho de memória, como eterno construir com fragmentos uma outra experiência, sempre marginal, é muito feliz e reforça a leitura do encontro empático entre Segall e o mundo da marginalidade brasileira, em seus trabalhos sobre o "Mangue", mas também, como ressalta Lafer, em suas "Visões de Guerra" e outras obras de conteúdo fortemente humanista.
Em seu conjunto, o catálogo que acompanha a mostra de Segall no Musée d'Art et d'Histoire du Judaisme, em Paris, ultrapassa de muito a vocação de simples registro da exposição, lançando novas e instigantes questões sobre a obra do artista. Gostaria de finalizar ressaltando mais uma vez a importância de projetos como esses, que significam um enorme avanço não só nas pesquisas sobre Segall, mas no diálogo de intelectuais brasileiros com a comunidade internacional. A qualidade e importância histórica da obra de Lasar Segall fazem dela um dos lugares privilegiados desse diálogo produtivo e gratificante.


Claudia Valladão de Mattos é doutora em história da arte pela Universidade Livre de Berlim e autora, entre outros livros, de "Lasar Segall" (Edusp) e "Lasar Segall. Entre Expressionismo e Judaísmo: O Período Alemão (1906-1923)" (Perspectiva).

Cláudia Valladão de Mattos é professora de história da arte no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.
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