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Walter Paixão - 117 - Junho de 2018
Novamente O capital
Foto da capa do livro O capital no século XXI
O capital no século XXI
Autor: Thomas Piketty
Tradução: Monica Baumgarten de Bolle
Editora: Intrínseca - 672 páginas
Foto do(a) autor(a) Walter Paixão

Um leitor que possua alguma notícia sobre ‘O Capital’ de Karl Marx (Das Kapital) talvez espere que ‘O Capital’ de Thomas Piketty (Le capital au XXIe siècle) constitua, neste início de século XXI,  uma atualização do contundente efeito explosivo que o primeiro livro teve na consciência política de homens e mulheres do mundo inteiro em fins do século XIX e início do século XX. Não espere. Piketty não escreve como profeta e muito menos como um revolucionário, preocupado em arregimentar massas para ações diretas pela demolição do capitalismo, vista como pré-condição para o fim dos dramas sociais que derivam da distribuição desigual da riqueza do planeta. Ao contrário, está mais para pensador positivista, portanto fincado na realidade, e para reformador racional preocupado em sustentar suas afirmações em series de dados reais que extrai da história recente da economia mundial e também em uma visão acurada do quadro politico e social; e por isso, não publica nenhum manifesto, não apela para os sentimentos de indignação dos povos, apela somente para a razão de pessoas medianamente educadas. Talvez por isso, ao contrário de Marx, que viu seu Capital ser imediatamente acolhido por círculos crescentes de revolucionários militantes, ao mesmo tempo em que era injustamente esnobado por economistas e acadêmicos do seu tempo, Thomas Piketty teve sua obra imediatamente reconhecida pelos mais renomados economistas e cientistas sociais de todo o mundo, ao mesmo tempo em que era e é ainda praticamente desconhecida de militâncias políticas e sindicais. É que as verdades das conclusões que o livro apresenta sobre o estado atual e as perspectivas de distribuição da riqueza no mundose existem Piketty as extrai, como disse,  principalmente da aridez de planilhas de dados construídas a partir da mais extraordinária pesquisa de história econômica já realizada. Ele mobiliza dados concretos de vinte países, que podem ser democraticamente acessados pelo público via internet em um monumental banco de dados sobre altos rendimentos, denominado The World Top Incomes Database uma instituição que vem sendo construída solidariamente a mil mãos por pesquisadores de todos os continentes. Contudo, não pense o leitor que corre o risco de se afogar em fórmulas de difícil compreensão. Defensor entusiasta de uma abordagem multidisciplinar da questão da desigualdade, Piketty filia-se à tradição da economia politica praticada pelos economistas clássicos, que não perdiam de vista, no emaranhado dos símbolos matemáticos,  as questões de fundo da disciplina.

Logo no inicio da introdução do seu livro,  depois de assumir que  “a distribuição das riquezas é uma das questões mais vivas e polêmicas da atualidade”, Piketty enuncia as duas questões que procurará responder ao longo das 669 páginas da obra: “Será que a dinâmica da acumulação do capital privado conduz de modo inevitável a uma concentração cada vez maior da riqueza e do poder em poucas mãos, como acreditava Marx no século XIX? Ou será que as forças equilibradoras do crescimento, da concorrência e do progresso tecnológico levam espontaneamente a uma redução da desigualdade e a uma organização harmoniosa das classes nas fases avançadas do desenvolvimento, como pensava Simon Kusnets no século XX?

Reformador moderado, embora aceite o diagnóstico do revolucionário sobre a evolução da desigualdade (ao menos à guisa de hipótese), Piketty recusa os meios de combate que este oferece. Ou seja, admite a tese segundo a qual tanto o capitalismo de hoje como o do tempo de Marx incorporam uma lógica de acumulação de capital que pode sim conduzir a um aprofundamento do fosso das desigualdades e, consequentemente a um atrofiamento uma da economia de mercado. Mas, ao mesmo tempo,  não admite a crença de que a tomada do poder político por uma classe social seja suficiente para quebrar essa lógica. Por outro lado, concorda também com a tese de que a dinâmica do capitalismo pode propiciar a redução da desigualdade com consequente aumento do poder aquisitivo das rendas do trabalho, fato que, segundo ele, as pesquisas históricas demonstram. Mas não admite que tal redução resulte de processo ‘natural’, animado por qualquer espécie de ‘mão invisível’ do mercado.

A fórmula  r > g, forjada por Piketty, diz que a taxa de remuneração do capital em suas varias formas de manifestação (r) é maior que a taxa de crescimento da renda e da produção (g). Diz mais: a continuidade no tempo do fato descrito pela fórmula (“força fundamental de divergência”), conduzindo a uma situação em que o estoque de capital seja extraordinariamente alto e a taxa de crescimento, zero ou próxima de zero, pode causar a implosão do capitalismo. Tal ideia de uma lógica de autodestruição do capitalismo, presente tanto em Das Kapital como em Le Capital, pode levar à falsa conclusão de que Piketty seja um marxista. Ele não é. Não fosse pelo motivo de fazer outra leitura da extensão dos conceitos de capital e lucro contidos no primeiro livro, seria pelo fato de Piketty criticar explicitamente o determinismo presente nos prognósticos de Marx. Piketty não acredita que este determinismo derive diretamente da crença  em uma ‘lógica de autodestruição’ como parte do modelo capitalista. Até porque, como disse, ele admite em termos a pertinência desta tese. Acredita sim que o determinismo marxista deriva de um erro — o erro de acreditar que os dados econômicos e sociais que Marx tinha à sua disposição lhe permitiam inferir que o sistema caminharia inevitavelmente para a dissolução.

Os dados sobre rendimentos do trabalho da época de Marx, compreendendo a fase inicial da revolução industrial, autorizavam a conclusão de que havia um empobrecimento crescente dos trabalhadores e, consequentemente, uma deterioração progressiva das suas condições de vida. Mas os dados recolhidos por Piketty, compreendendo um largo período os últimos 120 anos mostram que Marx não dispunha de uma serie de dados suficientemente extensa nem o necessário distanciamento histórico para projetar para futuro o juízo que fez sobre a dinâmica da desigualdade crescente do seu tempo. Diferentemente, a extensa série de dados levantada metodicamente por Piketty e outros pesquisadores mostra que a curva dos rendimentos dos trabalhadores no longo prazo foi lentamente infletindo até o ponto em que o poder aquisitivo dos rendimentos do trabalho revela-se multiplicado por dez. Marx não teria levado em conta o aumento da produtividade da economia no período, alavancado pela evolução do conhecimento e da técnica. Não por deficiência intelectual, Marx era um gênio. Mas pelo estado da arte dos registros e das pesquisas da sua época. Malthus, Ricardo e muitos outros, além do próprio Marx, discorriam sobre desigualdade econômica sem citar fontes ou apresentar metodologias que permitissem a reconstrução dos argumentos pelo público. (Não nos esqueçamos que o surgimento das ‘declarações de renda’, assim como de inúmeros outros protocolos da atividade econômica, são acontecimentos do século XX). Por outro lado, o reconhecimento de uma evolução positiva das rendas diretas e indiretas do trabalho não significa que tenha sido a difusão do ‘conhecimento’ ou da ‘técnica’ o fator determinante exclusivo da inflexão da curva da miséria profetizada por Marx. A reconstituição histórica da dinâmica de acumulação do capital privado e da distribuição das rendas do trabalho no longuíssimo prazo permite a Thomas Piketty anunciar a existência de duas espécies de forças que movem o sistema: forças de divergência, que tendem a produzir desigualdades crescentes, e forças de convergência, que favorecem a redução das desigualdades. Há na composição destas forças elementos estruturais e, para usar terminologia marxista, elementos subjetivos. No caso das forças de divergência, estrutural é a lei de acumulação contínua de capital; e subjetivos, os movimentos políticos ou sindicais de defesa de direitos de acumulação ilimitada; no caso das forças de convergência, estrutural é o alargamento do conhecimento e das tecnologias voltados para o desenvolvimento econômico; e subjetivos, os movimentos políticos, sindicais e sociais que conduzam a uma redução das desigualdades. Portanto,  à melhoria do “capital humano”, há que se computar também o papel das lutas socialistas pela redução das desigualdades.

Os argumentos de Piketty autorizam a conclusão de que o erro de Marx, ao profetizar o predomínio exclusivo das forças de divergência, assim como o erro de Simon Kusnets, ao anunciar o domínio das forças de convergência, foi transformar regularidades econômicas de curto prazo em ‘leis’ econômicas. De fato, assim como Marx teria sido intempestivo ao anunciar a chegada próxima do inferno da pauperização extrema a partir de um processo desenfreado de aumento da desigualdade, oferecendo como evidência dados da cena social do seu tempo, que se restringiam a um período histórico curto, Kusnets teria anunciado o advento de uma sociedade em que a desigualdade diminuíra em anos anteriores e deveria continuar diminuindo, rumo a um estado de harmonia entre classes sociais, baseando-se em  série de dados também limitada da economia americana. A pesquisa de Kusnets —que Piketty considera admiravelmente bem documentada, cobrindo o período que ia de 1913 a 1948, levou o pesquisador americano a fazer uma previsão otimista que seria confirmada pelos fatos até os anos 1960, revelando que a participação do décimo mais alto da população na renda nacional caíra no período pesquisado de 45-50% para 30-35%.  Entretanto, a partir dos anos 1970-1980, a curva de igualitarização de Kusnets apresenta dramática inflexão, com a desigualdade aumentando rápida e significativamente a pesquisa de Piketty revela que, nos anos 2000-2010, a concentração da renda nas mãos do décimo mais alto da sociedade americana havia retornado ao nível anterior de 45-50%, registrado em 1910. Ou seja, os 10% mais ricos dos Estados Unidos da América voltam a se apropriar de quase metade da renda do país. E nada indica que este processo será revertido a curto prazo.

Ao pessimismo de Marx e ao otimismo de Kusnets, autores pelos quais nutre indisfarçável simpatia, Piketty oferece como alternativa a via de uma  racionalidade pragmática. Vale a pena copiá-lo: “...a economia jamais deveria ter tentado se separar das outras ciências sociais, não há como avançar sem saber o que se passa nas outras áreas. (...) Para fazer progressos importantes nas questões fundamentais, como a dinâmica histórica da distribuição da riqueza e da estrutura das classes sociais, é preciso proceder com pragmatismo e mobilizar métodos e abordagens de várias disciplinas: dos historiadores, sociólogos e cientistas políticos, bem como dos economistas. É preciso partir de questões de fundo e tentar respondê-las; as querelas de território são secundária”.

Piketty assume o fato, destacado em livro anterior, de que a existência  do mercado se justifica porque este possui uma ‘função alocativa de recursos’ que é essencial à economia de uma sociedade complexa qualquer,  e esta função ainda não pode ser desempenhada eficientemente por outro sistema. Prova disso seria o modelo alternativo de planificação centralizada da alocação dos recursos, que, embora experimentado pela União Soviética por mais de setenta anos, não cumpriu a promessa dos seus defensores de fazer pela redução da desigualdade mais do que o sistema capitalista teria feito. Por esta razão,  todas as propostas que fará para reduzir a desigualdade visarão uma intervenção no funcionamento da economia de mercado. Não para demoli-la, mas para imprimir-lhe novo rumo na direção de uma distribuição menos desigual da riqueza.

Piketty atribui o espetacular aumento da desigualdade nos Estados Unidos verificada por meio de complementação da curva de Kusnets com dados do período 1970-2010  à explosão que as altas rendas do trabalho tiveram nesse país,  sob a capa de argumentos em defesa da ‘meritocracia’, mas que, de fato, provavelmente são originários de imemorial sentimento egoísta, que um famoso filosofo inglês do século XVII denominou um dia ‘desejo criminoso de possuir’ (amor sceleratus habendi). E atribui o grande aumento do estoque das fortunas privadas de países como Alemanha, França e Reino Unido, a dois fatores combinados: existência de uma alta taxa de retorno do capital (este acumulado sob a forma de imóveis, ativos financeiros e patrimônio líquido) e de uma baixa taxa de crescimento na linguagem de Piketty, a regularidade  QUOTE 16 α">  r >g expressa-se na lei de longo prazo, ß QUOTE 16β">  =s/g, quando a elasticidade de substituição entre capital e trabalho é superior a 1.

Admitida a hipótese de que argumentos derivados da noção de mérito não justificariam a desigualdade de rendas do trabalho acima citada, o remédio sugerido por Piketty para promover a redução da desigualdade seria a criação de uma alíquota igualmente elevada de imposto sobre a renda, a ser aplicada sobre os super-salários. Caso contrário, a solução a ser dada para equilibrar diferenciais de “capital humano” que justifiquem significativa desigualdade de remuneração com base no mérito, coincidiria com a solução que deve ser dada para conter o excesso de capital privado acumulado na sociedade. Que solução seria esta? a criação de um imposto mundial progressivo sobre este capital. Seria uma forma indireta de transferir recursos do capital para o mundo do trabalho, com vistas à melhoria do potencial de obtenção de renda dos trabalhadores via educação, sem interferir no mecanismo de precificação dos salários pela lei da concorrência.

Embora afirme que a arrecadação proveniente de um imposto mundial sobre o capital e as grandes fortunas carrearia receitas expressivas para a construção do moderno Estado social, Piketty observa que estas receitas possuiriam caráter apenas complementar, não se devendo portanto esperar que substituam as receitas fiscais existentes.  Na verdade, o papel principal deste imposto é funcionar como regulador do capitalismo. Seu objetivo é evitar uma espiral desigualadora desenfreada e uma divergência ilimitada das desigualdades patrimoniais. Além disso, possibilitar um controle eficaz das crises financeiras e bancárias. Antes porém, o imposto mundial deve viabilizar um ambiente de transparência democrática e financeira, relativamente aos patrimônios e ativos detidos pelos indivíduos em escala internacional. Abramos um parêntese: tarefa difícil de realizar, seja pela heterogeneidade dos métodos de registro e contabilidade empregados por países e empresas, seja pela manutenção de injustificáveis medidas de “segredo comercial” ou “segurança nacional” qual teria sido a justificativa para que o Brasil não tenha disponibilizado dados estatísticos do seu imposto sobre a renda para o banco de dados mundial de Piketty? Fechemos o parêntese. Embora entusiasta declarado da luta pela ampliação e reforço das forças de convergência do capitalismo, Piketty afirma que um dos grandes desafios do futuro é o desenvolvimento de novas formas de propriedade e de controle democrático do capital, assim como de novas formas de participação e de governo, ainda por ser inventadas. E que estas dependem, em grande medida, do grau de informação econômica de que as pessoas dispõem. ¤

 

(Walter Paixão, ex-Analista Tributário da Receita Federal do Brasil)


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