Um leitor que
possua alguma notícia sobre ‘O Capital’ de Karl Marx (Das Kapital) talvez espere que ‘O Capital’ de Thomas Piketty (Le capital au XXIe siècle) constitua,
neste início de século XXI, uma
atualização do contundente efeito explosivo que o primeiro livro teve na
consciência política de homens e mulheres do mundo inteiro em fins do século
XIX e início do século XX. Não espere. Piketty não escreve como profeta e muito
menos como um revolucionário, preocupado em arregimentar massas para ações
diretas pela demolição do capitalismo, vista como pré-condição para o fim dos
dramas sociais que derivam da distribuição desigual da riqueza do planeta. Ao
contrário, está mais para pensador positivista, portanto fincado na realidade,
e para reformador racional preocupado em sustentar suas afirmações em series de
dados reais que extrai da história recente da economia mundial e também em uma
visão acurada do quadro politico e social; e por isso, não publica nenhum
manifesto, não apela para os sentimentos de indignação dos povos, apela somente
para a razão de pessoas medianamente educadas. Talvez por isso, ao contrário de
Marx, que viu seu Capital ser imediatamente acolhido por círculos crescentes de
revolucionários militantes, ao mesmo tempo em que era injustamente esnobado por
economistas e acadêmicos do seu tempo, Thomas Piketty teve sua obra
imediatamente reconhecida pelos mais renomados economistas e cientistas sociais
de todo o mundo, ao mesmo tempo em que era e é ainda praticamente desconhecida de
militâncias políticas e sindicais. É que as verdades das conclusões que o livro
apresenta sobre o estado atual e as perspectivas de distribuição da riqueza no
mundo— se existem— Piketty as extrai, como disse, principalmente da aridez de planilhas de dados
construídas a partir da mais extraordinária pesquisa de história econômica já
realizada. Ele mobiliza dados concretos de vinte países, que podem ser democraticamente
acessados pelo público via internet em um monumental banco de dados sobre altos
rendimentos, denominado The World Top
Incomes Database — uma
instituição que vem sendo construída solidariamente a mil mãos por
pesquisadores de todos os continentes. Contudo, não pense o leitor que corre o
risco de se afogar em fórmulas de difícil compreensão. Defensor entusiasta de
uma abordagem multidisciplinar da questão da desigualdade, Piketty filia-se à
tradição da economia politica praticada pelos economistas clássicos, que não
perdiam de vista, no emaranhado dos símbolos matemáticos, as questões de fundo da disciplina.
Logo no
inicio da introdução do seu livro,
depois de assumir que “a
distribuição das riquezas é uma das questões mais vivas e polêmicas da
atualidade”, Piketty enuncia as duas questões que procurará responder ao longo
das 669 páginas da obra: “Será que a
dinâmica da acumulação do capital privado conduz de modo inevitável a uma
concentração cada vez maior da riqueza e do poder em poucas mãos, como
acreditava Marx no século XIX? Ou será que as forças equilibradoras do
crescimento, da concorrência e do progresso tecnológico levam espontaneamente a
uma redução da desigualdade e a uma organização harmoniosa das classes nas
fases avançadas do desenvolvimento, como pensava Simon Kusnets no século XX?
Reformador
moderado, embora aceite o
diagnóstico do revolucionário sobre a evolução da desigualdade (ao menos à
guisa de hipótese), Piketty recusa os meios de combate que este oferece. Ou
seja, admite a tese segundo a qual tanto o capitalismo de hoje como o do tempo
de Marx incorporam uma lógica de acumulação de capital que pode sim conduzir a um
aprofundamento do fosso das desigualdades e, consequentemente a um atrofiamento
uma da economia de mercado. Mas, ao mesmo tempo, não admite a crença de que a tomada do poder
político por uma classe social seja suficiente para quebrar essa lógica. Por
outro lado, concorda também com a tese de que a dinâmica do capitalismo pode
propiciar a redução da desigualdade com consequente aumento do poder aquisitivo
das rendas do trabalho, fato que, segundo ele, as pesquisas históricas demonstram.
Mas não admite que tal redução resulte de processo ‘natural’, animado por
qualquer espécie de ‘mão invisível’ do mercado.
A fórmula r > g, forjada por Piketty, diz que a taxa de remuneração do capital em
suas varias formas de manifestação (r)
é maior que a taxa de crescimento da renda e da produção (g). Diz mais: a continuidade no tempo do fato descrito pela fórmula
(“força fundamental de divergência”), conduzindo a uma situação em que o
estoque de capital seja extraordinariamente alto e a taxa de crescimento, zero
ou próxima de zero, pode causar a implosão do capitalismo. Tal ideia de uma
lógica de autodestruição do capitalismo, presente tanto em Das Kapital como em Le
Capital, pode levar à falsa conclusão de que Piketty seja um marxista. Ele
não é. Não fosse pelo motivo de fazer outra leitura da extensão dos conceitos
de capital e lucro contidos no primeiro livro, seria pelo fato de Piketty criticar
explicitamente o determinismo presente nos prognósticos de Marx. Piketty não
acredita que este determinismo derive diretamente da crença em uma ‘lógica de autodestruição’ como parte do
modelo capitalista. Até porque, como disse, ele admite em termos a pertinência
desta tese. Acredita sim que o determinismo marxista deriva de um erro — o erro de acreditar que os dados
econômicos e sociais que Marx tinha à sua disposição lhe permitiam inferir que
o sistema caminharia inevitavelmente para a dissolução.
Os dados sobre
rendimentos do trabalho da época de Marx, compreendendo a fase inicial da revolução
industrial, autorizavam a conclusão de que havia um empobrecimento crescente
dos trabalhadores e, consequentemente, uma deterioração progressiva das suas
condições de vida. Mas os dados recolhidos por Piketty, compreendendo um largo
período —os últimos 120 anos— mostram que Marx não dispunha de
uma serie de dados suficientemente extensa nem o necessário distanciamento
histórico para projetar para futuro o juízo que fez sobre a dinâmica da
desigualdade crescente do seu tempo. Diferentemente, a extensa série de dados
levantada metodicamente por Piketty e outros pesquisadores mostra que a curva dos
rendimentos dos trabalhadores no longo prazo foi lentamente infletindo até o ponto
em que o poder aquisitivo dos rendimentos do trabalho revela-se multiplicado
por dez. Marx não teria levado em conta o aumento da produtividade da economia no
período, alavancado pela evolução do conhecimento e da técnica. Não por
deficiência intelectual, Marx era um gênio. Mas pelo estado da arte dos
registros e das pesquisas da sua época. Malthus, Ricardo e muitos outros, além
do próprio Marx, discorriam sobre desigualdade econômica sem citar fontes ou
apresentar metodologias que permitissem a reconstrução dos argumentos pelo
público. (Não nos esqueçamos que o surgimento das ‘declarações de renda’, assim
como de inúmeros outros protocolos da atividade econômica, são acontecimentos do
século XX). Por outro lado, o reconhecimento de uma evolução positiva das
rendas diretas e indiretas do trabalho não significa que tenha sido a difusão
do ‘conhecimento’ ou da ‘técnica’ o fator determinante exclusivo da inflexão da
curva da miséria profetizada por Marx. A reconstituição histórica da dinâmica
de acumulação do capital privado e da distribuição das rendas do trabalho no
longuíssimo prazo permite a Thomas Piketty anunciar a existência de duas espécies
de forças que movem o sistema: forças de divergência, que tendem a produzir
desigualdades crescentes, e forças de convergência, que favorecem a redução das
desigualdades. Há na composição destas forças elementos estruturais e, para
usar terminologia marxista, elementos subjetivos. No caso das forças de
divergência, estrutural é a lei de acumulação contínua de capital; e
subjetivos, os movimentos políticos ou sindicais de defesa de direitos de
acumulação ilimitada; no caso das forças de convergência, estrutural é o
alargamento do conhecimento e das tecnologias voltados para o desenvolvimento
econômico; e subjetivos, os movimentos políticos, sindicais e sociais que
conduzam a uma redução das desigualdades. Portanto, à melhoria do “capital humano”, há que se
computar também o papel das lutas socialistas pela redução das desigualdades.
Os argumentos
de Piketty autorizam a conclusão de que o erro de Marx, ao profetizar o
predomínio exclusivo das forças de divergência, assim como o erro de Simon Kusnets,
ao anunciar o domínio das forças de convergência, foi transformar regularidades econômicas de curto prazo
em ‘leis’ econômicas. De fato, assim como Marx teria sido intempestivo ao
anunciar a chegada próxima do inferno da pauperização extrema a partir de um
processo desenfreado de aumento da desigualdade, oferecendo como evidência
dados da cena social do seu tempo, que se restringiam a um período histórico
curto, Kusnets teria anunciado o advento de uma sociedade em que a desigualdade
diminuíra em anos anteriores e deveria continuar diminuindo, rumo a um estado
de harmonia entre classes sociais, baseando-se em série de dados também limitada da economia
americana. A pesquisa de Kusnets —que
Piketty considera admiravelmente bem documentada—, cobrindo o período que ia de 1913 a 1948, levou o pesquisador americano
a fazer uma previsão otimista que seria confirmada pelos fatos até os anos 1960,
revelando que a participação do décimo mais alto da população na renda nacional
caíra no período pesquisado de 45-50% para 30-35%. Entretanto, a partir dos anos 1970-1980, a
curva de igualitarização de Kusnets apresenta dramática inflexão, com a
desigualdade aumentando rápida e significativamente — a pesquisa de Piketty revela que, nos anos 2000-2010, a
concentração da renda nas mãos do décimo mais alto da sociedade americana havia
retornado ao nível anterior de 45-50%, registrado em 1910. Ou seja, os 10% mais
ricos dos Estados Unidos da América voltam a se apropriar de quase metade da
renda do país. E nada indica que este processo será revertido a curto prazo.
Ao pessimismo
de Marx e ao otimismo de Kusnets, autores pelos quais nutre indisfarçável
simpatia, Piketty oferece como alternativa a via de uma racionalidade pragmática. Vale a pena
copiá-lo: “...a economia jamais deveria
ter tentado se separar das outras ciências sociais, não há como avançar sem
saber o que se passa nas outras áreas. (...) Para fazer progressos importantes nas
questões fundamentais, como a dinâmica histórica da distribuição da riqueza e
da estrutura das classes sociais, é preciso proceder com pragmatismo e
mobilizar métodos e abordagens de várias disciplinas: dos historiadores,
sociólogos e cientistas políticos, bem como dos economistas. É preciso partir
de questões de fundo e tentar respondê-las; as querelas de território são
secundária”.
Piketty assume
o fato, destacado em livro anterior, de que a existência do mercado se justifica porque este possui
uma ‘função alocativa de recursos’ que é essencial à economia de uma sociedade
complexa qualquer, e esta função ainda
não pode ser desempenhada eficientemente por outro sistema. Prova disso seria o
modelo alternativo de planificação centralizada da alocação dos recursos, que,
embora experimentado pela União Soviética por mais de setenta anos, não cumpriu
a promessa dos seus defensores de fazer pela redução da desigualdade mais do
que o sistema capitalista teria feito. Por esta razão, todas as propostas que fará para reduzir a
desigualdade visarão uma intervenção no funcionamento da economia de mercado. Não
para demoli-la, mas para imprimir-lhe novo rumo na direção de uma distribuição
menos desigual da riqueza.
Piketty
atribui o espetacular aumento da desigualdade nos Estados Unidos — verificada por meio de
complementação da curva de Kusnets com dados do período 1970-2010 — à explosão que as altas rendas do trabalho
tiveram nesse país, sob a capa de
argumentos em defesa da ‘meritocracia’, mas que, de fato, provavelmente são originários
de imemorial sentimento egoísta, que um famoso filosofo inglês do século XVII denominou
um dia ‘desejo criminoso de possuir’ (amor sceleratus habendi). E atribui o
grande aumento do estoque das fortunas privadas de países como Alemanha, França
e Reino Unido, a dois fatores combinados: existência de uma alta taxa de
retorno do capital (este acumulado sob a forma de imóveis, ativos financeiros e
patrimônio líquido) e de uma baixa taxa de crescimento — na linguagem de Piketty, a regularidade QUOTE
Admitida a
hipótese de que argumentos derivados da noção de mérito não justificariam a
desigualdade de rendas do trabalho acima citada, o remédio sugerido por Piketty
para promover a redução da desigualdade seria a criação de uma alíquota igualmente
elevada de imposto sobre a renda, a ser aplicada sobre os super-salários. Caso
contrário, a solução a ser dada para equilibrar diferenciais de “capital humano”
que justifiquem significativa desigualdade de remuneração com base no mérito,
coincidiria com a solução que deve ser dada para conter o excesso de capital
privado acumulado na sociedade. Que solução seria esta? — a criação de um imposto mundial progressivo sobre este capital.
Seria uma forma indireta de transferir recursos do capital para o mundo do
trabalho, com vistas à melhoria do potencial de obtenção de renda dos
trabalhadores via educação, sem interferir no mecanismo de precificação dos
salários pela lei da concorrência.
Embora afirme
que a arrecadação proveniente de um imposto mundial sobre o capital e as
grandes fortunas carrearia receitas expressivas para a construção do moderno
Estado social, Piketty observa que estas receitas possuiriam caráter apenas
complementar, não se devendo portanto esperar que substituam as receitas
fiscais existentes. Na verdade, o papel
principal deste imposto é funcionar como regulador do capitalismo. Seu objetivo
é evitar uma espiral desigualadora desenfreada e uma divergência ilimitada das
desigualdades patrimoniais. Além disso, possibilitar um controle eficaz das
crises financeiras e bancárias. Antes porém, o imposto mundial deve viabilizar
um ambiente de transparência democrática e financeira, relativamente aos
patrimônios e ativos detidos pelos indivíduos em escala internacional. Abramos
um parêntese: tarefa difícil de realizar, seja pela heterogeneidade dos métodos
de registro e contabilidade empregados por países e empresas, seja pela
manutenção de injustificáveis medidas de “segredo comercial” ou “segurança
nacional” — qual teria sido a
justificativa para que o Brasil não tenha disponibilizado dados estatísticos do
seu imposto sobre a renda para o banco de dados mundial de Piketty? Fechemos o
parêntese. Embora entusiasta declarado da luta pela ampliação e reforço das
forças de convergência do capitalismo, Piketty afirma que um dos grandes
desafios do futuro é o desenvolvimento de novas formas de propriedade e de
controle democrático do capital, assim como de novas formas de participação e
de governo, ainda por ser inventadas. E que estas dependem, em grande medida,
do grau de informação econômica de que as pessoas dispõem. ¤
(Walter Paixão, ex-Analista Tributário da Receita Federal do Brasil)