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Marcos Tavares - 117 - Junho de 2018
Novos tempos
Até o mero catar piolho possui a freudiana sublimação libidinal
Foto da capa do livro Cibersolidão, 45 crônicas
Cibersolidão, 45 crônicas
Autor: Jô Drummond
Editora: Opção - 141 páginas
Foto do(a) autor(a) Marcos Tavares

Escrever, muitos escrevem. O que qualifica um escrevedor, daí escritor, é, além do trato com as palavras, o seu distinto olhar, a sua cosmovisão. E quando esse escritor (no caso, literata) detém título de Doutorado em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e, em nova incursão no gênero crônica, examina sobretudo o mundo moderno e suas tecnologias, em livro que publica, hemos de prestar a devida atenção. Nada é p

Josina Nunes Drumond (Jô Drumond), ocular testemunha desses tempos fugazes, ora nos concede documental prova da tal “modernidade líquida” nomeada pelo sociólogo polonês Zigmunt Bauman (“Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar”). Título da obra alude ao fenômeno da “solidão acompanhada” ou cibersolidão. Em crônica homônima, a de abertura, discorre acerca das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDIC) com suporte na internet que, aliada aos recursos da Computação Móvel, têm influenciado novos comportamentos sociais, em especial no tocante à facilidade nos relacionamentos. Estes, não presenciais, até superficiais, mas logo designados “amizades”, não raro podem, ironicamente, destruir vínculos afetivos pessoais e já duradouros. Solidão cibernética detectada num dia de silêncio no WhatsApp: só explicado quando, por já desusados telefonemas, se soube do suicídio de um de seus integrantes (Era Digital). Consequência da nova era, o home based, uma espécie de franquia que permite gerenciar, sem sair de casa, uma atividade laboral rentável, é objeto de narrativa (Trabalho à distância). Sob epígrafe de Rubem Braga resgata a saudosa época em que carteiros, esperados com ansiedade, traziam boas e más notícias. “Cada um de nós morre um pouco quando alguém, na distância e no tempo, rasga alguma carta ou deleta alguma mensagem nossa ”, conclui, lírica (Velhas Cartas).

Francófila, debruça-se sobre a História de França, em paralelo com o nosso período escravocrata, e filosofa acerca da liberdade relativa, do cerceamento imposto por algemas sociais (Grilhões). O definhamento da bisavó Theodora, latifundiária e escravagista, então empobrecida pela Lei Áurea, perdida a força de trabalho, é lição para tantos quantos queiram preservar a história familiar jamais estudada em bancos escolares (O Fio do tempo). Pós-Doutora em Literatura Comparada (UFMG), Jô Drumondvê similaridade de ideias entre o literato Somerset Maughan (séc. XIX), em sua obra A Servidão Humana, e o geneticista Dean Hamer (séc. XX): um fator bioquímico (o gene VMAT2) propiciaria o grau de espiritualidade (A fé). Repensando a própria vivência missionária, aventa possível benignidade do aludido gene da fé (Questionamentos religiosos). Destoante do cânone da Igreja, exegeta bíblico com visão peculiar merece destaque: Jean Meslier, vigário francês, é dado como precursor de vários movimentos libertários (Padre ateu). Atestando o autêntico significado do gênero (krónos=tempo), há um momento em que reminiscências da menina revisitam festejos (Festas joaninas ou julinas).

Prosa simples jamais simplória, bem saborosa, pródiga de “causos” como sói a um bom mineiro (Patos de Minas-MG), impregna-a com alta dosagem de humor: um sufoco em viagem aérea (Apreensão), uma noite passada em claro em república estudantil de Ouro Preto (Pulgatório), episódio de brusca transformação de duas de suas alunas de francês (Irmãs Carmelitas), adversidade em lamacenta estrada rural (Atoleiro), divertido passeio em Tiradentes: um guia com fétido odor corporal é substituído por um com acentuado distúrbio de fala (O malfadado city tour). Até o mero catar piolho possui a freudiana sublimação libidinal (O cafuné).

Especialista em Guimaraes Rosa, em cinco textos foca o singular autor e terra natal dele (Cordisburgo, I a IV). E outros temas há. Eclética, também artista plástica, um seu trabalho de 1990, um acrílico sobre papel cartão, compõe a capa do livro desta “imortal” da Academia Espírito-santense de Letras que, a tornar “exequível suas exéquias”, já humorada diretriz a seus sucessores deixa (Meus últimos desejos).

Marcos Tavares é membro da Academia Espírito-santense de Letras


Marcos Tavares
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