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Beatriz Porcel - 122 - Julho de 2022
O esplendor da liberdade e do público
Foto da capa do livro O dia de glória chegou
O dia de glória chegou
Autor: Rosângela Chaves
Editora: Edições 70 0
Foto do(a) autor(a) Beatriz Porcel

O livro que apresentamos, O dia de glória chegou – Revolução, opinião e liberdade em Tocqueville e Arendt, de Rosângela Chaves, é resultado de sua tese de doutorado obtida na Faculdade de Filosofia da UFG e selecionada para publicação na coleção Anpof (Edições 70).

Não é, como se poderia pensar, um trabalho puramente comparativo entre os dois autores, mas uma análise exaustiva e erudita de alguns conceitos-chave escolhidos para apontar correspondências e aproximações que são, segundo a “Introdução” da obra, revolução, opinião/opinião pública e liberdade. Trata-se, como diz Rosângela Chaves, de um diálogo imaginário que é possível devido "às confluências próximas na forma como abordam a política e as potencialidades da ação coletiva", ambos – Arendt e Tocqueville – imersos em seus tempos turbulentos e preocupados com a defesa e a proteção da democracia. Além disso, como aspecto relevante, o fato de ser possível descobrir também em ambos “uma versão convergente do republicanismo”.

A autora demonstra, ao longo de seu livro, que o olhar retrospectivo que Tocqueville e Arendt dirigem ao passado ilumina os problemas do presente de cada um. Ambos também se mostram preocupados com a liberdade como cerne das revoluções modernas. A lógica argumentativa do livro consiste em estabelecer quatro capítulos que correspondem, cada um, aos núcleos teóricos nomeados. A primeira, "Revolução, ruptura e liberdade"; a segunda, "Opinião, massificação e pluralidade"; a terceira "Igualdade, liberdade, fraternidade – e felicidade", e a última, "Instituições da liberdade", mais uma "Introdução" e algumas "Considerações finais” em que o tema do republicanismo é exposto. Cada capítulo também contém uma “Introdução” e um final “Tocqueville e Arendt” sobre o que foi desenvolvido. Esse esquema expositivo é muito complexo, mostrando uma notável rede de conceitos, típica de quem conhece muito profundamente tanto Tocqueville quanto Arendt. Como uma amostra do que foi dito, resumimos o capítulo 3, “Igualdade, liberdade, fraternidade – e felicidade”.

Na Introdução, são revistos os slogans revolucionários “igualdade, liberdade e fraternidade”, acrescentando-se o termo “felicidade”, que, para a autora, se articulam a ponto de não se conseguir separar um do outro. O termo “igualdade” está disponível em Tocqueville em seu potencial transformador, em suas ligações com outros autores como Guizot e Montesquieu, nas diferenças importantes entre o homem aristocrático e o homem democrático, no impacto da igualdade no campo das artes, da ciência, da filosofia e da religião, das relações familiares, do individualismo. O mesmo termo “igualdade” se desdobra em Arendt em torno de isonomia, pluralidade e visibilidade, três categorias que são analisadas sob todos os aspectos possíveis: igualdade – em oposição à uniformidade –, distinção, alteridade, as noções de “quem” e “o quê”, invisibilidade dos pobres e oprimidos, dos apátridas e dos negros, e igualdade da esfera pública e da esfera social.

Na seção “Liberdade” deste capítulo, a posição de Tocqueville em relação à independência, à cidadania e à justiça é revista, começando com a caracterização do liberalismo e de discussões relacionadas no século XIX, as tendências da sociedade democrático-igualitária, a liberdade-independência em conexão com a ação política, com o público. A posição de Arendt trata da “ação livre e espontânea” e aqui Chaves apresenta um ensaio muito completo sobre a questão da liberdade, central para Arendt, através da diferença entre freedom e liberty, entre liberdade positiva e negativa através das posições de Berlin, Hobbes e Rousseau; da liberdade entre os antigos; da liberdade e seu vínculo com a ação, com a pluralidade, com a natalidade, e também da ação relacionada à espontaneidade e à ideia de princípio.

No ponto 3, o tema é “Tocqueville: pauperismo e direito à propriedade”, indicando que a noção mais apropriada – compartilhada com Arendt – é a amizade no sentido político entre cidadãos que compartilham o espaço público e, indo além, abordando as  questões materiais relacionadas à escassez e às desigualdades econômicas que põem em risco a democracia nascente nas sociedades industrializadas. É interessante –  ainda hoje – acompanhar a posição tocquevilliana sobre as causas da pobreza e sobre a necessidade da reforma agrária, posições que o mostram como um pensador  avançado no campo social. Para essa seção, Arendt aparece com os conceitos de “compaixão, piedade e solidariedade”, nos quais a tão debatida posição da autora alemã sobre a questão social é tratada seguindo o fio crítico da libertação, típico da Revolução Francesa. Além do mais, é mostrado como os conceitos de “compaixão” e “piedade” junto com o de “bondade” distorcem a esfera pública. O debate aberto por essas posições arendtianas é plenamente explicado por Chaves.

O último ponto deste capítulo é dedicado à felicidade, em Arendt como “felicidade pública e o vinho da ação”, afirmando que “felicidade pública” refere-se ao prazer produzido pelo gozo da liberdade na esfera pública, participando dos assuntos públicos, que Chaves explora na análise de Arendt das Revoluções Francesa e Americana, neste caso enriquecida com inúmeras referências históricas. Para Tocqueville, o conceito selecionado é “o homem de ação”, enfatizando que sua causa principal sempre foi a liberdade, a liberdade de expressão e de ação que ele admirava nos Estados Unidos, mas que não pôde desfrutar em sua carreira política na França, o que resultou em decepção, salvo em parte por sua posterior adesão ao republicanismo, que também terminou em frustração.

O capítulo se completa com um balanço entre Tocqueville e Arendt e a valorização do espaço público, a crítica do primeiro à “tirania da maioria” e da segunda ao “humor das massas” como ameaças à opinião pública e a uma esfera pública vigorosa em que a liberdade política possa ser realizada. Os dois autores defendem a relevância da política como campo de discordância e de acordo entre múltiplas vozes e entre diferentes perspectivas e defendem uma ideia de liberdade intimamente ligada à noção de igualdade, da qual brotam felicidade e fraternidade. Chaves não ignora os pontos críticos e problemáticos das questões discutidas neste capítulo e, assim, mostra que sua análise vai além das referências e relações que os próprios autores estabelecem em suas obras. Essa perspectiva reflexiva pode ser lida em todos os capítulos deste livro, dando maior densidade a cada tema.

Uma última menção não pode ser omitida, neste caso, as “Considerações finais”, em que Tocqueville e Arendt se deixam ver em um quadro republicano, tão caro neste momento em que tanto o vivere civile, a vita activa e a convivência democrática estão ameaçados. Escusado será dizer que a própria democracia, com todas as suas fraquezas, pode oferecer os meios para revigorar a prática da liberdade política.

Extraordinário livro de Rosângela Chaves. Uma investigação alerta, uma forma expositiva escrupulosamente organizada, uma notável amplitude de recursos históricos e bibliográficos que oferecem um documento essencial a um amplo público.  É também, porque não dizê-lo, uma afirmação do valor das ideias políticas que devem ser defendidas em todos os tempos e lugares.

BEATRIZ PORCEL é professora honorária da Universidade Nacional de Rosário (Argentina)

 


Beatriz Porcel
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