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Pedro Fernandes Galé - 117 - Junho de 2018
O ofício do crítico
A poética tensa de Marina Tsvetáeva
Foto da capa do livro O poeta e o tempo
O poeta e o tempo
Autor: Marina Tsvetáeva
Tradução: Aurora Bernardini
Editora: AYINÉ - 204 páginas
Foto do(a) autor(a) Pedro Fernandes Galé

A coletânea de ensaios O poeta e o tempo, de Marina Tsvetáeva, apresenta ao público brasileiro um traço da produção da poeta russa que se vê intimamente associado à sua própria maneira de fazer poesia. Seus poemas, já conhecidos, ao menos em parte, em nossas terras, apresentam aspectos da reflexão sobre o ofício poético, como nos atesta o célebre poema “A Vladímir Maiakóvski” (aqui na tradução de Haroldo de Campos): “Ele é dois: a lei e a exceção, / Ele é dois cavalo e cavaleiro. / Toma fôlego, cospe nas mãos: / Resiste, triunfo carreteiro”. Essa produção poética que se vê marcada pelos poetas e modos de seu tempo se faz ressoar nos textos em prosa que compõem a coletânea publicada pela editora Âyiné.

No primeiro texto do volume “o poeta e a crítica” vemos o esforço da autora no sentido de apresentar o ofício do crítico, bem como indicar o seu lugar: “Para ter parecer sobre alguma coisa, para julgá-la, é preciso viver nela e amá-la” (p. 26). Não se trata de uma resposta virulenta de uma autora de poesia em relação à crítica, mas de um modo de localizar a crítica e seus afazeres dentro de certas exigências que não permitam à crítica como um todo, o juízo rápido e descuidado que já condenara alguns dos autores de sua geração, numa pressa que é digna dos modos como se operava com a arte nas primeiras décadas do século XX: “Quem, na emigração, não escreve crítica? ‘dê um parecer’, ‘escreva uma resenha’. Dar um parecer sobre qualquer assunto? Ai de nós! Eles dão um parecer, um farrapo, um absurdo, dão o que não é dado, não dão nada.”(p. 61).

O tempo da poesia não poderia ser contemplado por esses que escrevem as resenhas e críticas nos jornais onde abundam juízes não imbuídos das condições necessárias para que a própria poesia lance luz sobre o leitor desses periódicos: “Escrevem advogados, jovens sem profissão, menos jovens de várias profissões, escrevem todos, escreve o público.” (p. 61). O lugar da crítica, que se eleva por sobre a massa das opiniões em geral, deve ser o do “deus dos caminhos e dos cruzamentos, deus bifronte, que olha para trás e para frente” (p. 75), ou seja, ao crítico é imposta a tarefa de conhecer a tradição e antever os próximos passos a serem traçados pela própria produção poética.

O ofício do poeta é exposto quase que como uma espécie de contraparte da crítica. É nessa maneira de argumentar que a poeta se vai apresentando no seu próprio modo de fazer poesia: “como posso eu, poeta, ou seja, pessoa da essência das coisas, ser seduzida pela forma? Deixarei que a essência me seduza, a forma virá por si. E ela vem.” (p. 74). É nessa formação dialética, entregue pela poesia e atestada pela crítica num exercício de determinação mútua que decorre da bem feitura de ambas, que a literatura teria de se afirmar e se consolidar.

As linhas desse ensaio trazem uma espécie de poética da poética, que resvala numa crítica da crítica. Só está apto a escrever crítica aquele que vive e entende os meios poéticos de expressão, esse ideal, longe de ser cumprido, é posto como uma espécie de ideia reguladora do ofício crítico, que, em sua mais perfeita prática, escaparia a qualquer traço de determinação meramente subjetiva: “ ‘eu acho assim’, ‘agrada-me assim’ – na presença do ‘eu’ e do ‘me’, até ao sapateiro permito não gostar de meus poemas. Isso porque nem o ‘eu’ nem o ‘me’ carregam responsabilidade” (p. 34). Aos que julgam há sempre a ressalva: “Ao julgar um mundo no qual não vivem, vocês estarão simplesmente cometendo abuso de poder” (p. 27).

O ensaio que dá título ao livro, “O poeta e o tempo”, traz desdobramentos das temáticas apontadas no ensaio anterior. A temporalidade ganha cena, mas não como um tempo etéreo que se manifesta no seguir das gerações, mas no coro ao qual o poeta está sempre submetido: “Da história não se pode pular fora!” (p. 88). É diante de seu tempo que o poeta escreve, para hoje e de hoje. Exceção feita a Hölderlin, que, “atrasado em seu próprio século, revelou-se contemporâneo do nosso século XX” (p. 85). Não se pode negar seu tempo, quer para uma visão do futuro quer por uma visão do passado, ambas devem afinar em conjunto a voz do poeta, pois “toda contemporaneidade tem dois rabos: o dos restauradores e o dos inovadores, e um é pior que o outro” (p. 80). É nessa trama peculiar que relaciona a temporalidade e a poesia que a poeta se lança em seu tempo.

A contemporaneidade da poesia é uma questão fundamental, pois “ não existe arte não contemporânea” (p. 83). Nem mesmo diante de um tempo de grandes convulsões se pode perdoar o poeta que se pretende fora de seu tempo: “Quer você aceite a Revolução, quer você a despreze, evite, recuse, ela já está, de qualquer maneira, dentro de você desde sempre, e desde o 1818 russo, você gostando ou não” (p.103). Isso não significa uma adesão cega aos elementos do tempo do poeta, mas uma clara noção de que é na determinação histórica que seus versos e sua arte serão feitos. Cabe ao poeta inventar seu próprio tempo. Para encerrar o ensaio, a poeta coloca a temporalidade em outra chave, a da própria criação poética como uma arte disposta e determinada pelo tempo: “O tempo é meu material de trabalho, meu meio de produção e de trabalho” (p. 114). É nesse sentido que toda a mobilização do ensaio se coloca no sentido de estabelecer as vicissitudes da relação entre o poeta, a poesia, e o tempo.

Encerra o volume alguns pequenos textos que compõem, por coagulação, o ensaio “A arte à luz da consciência”, onde a poeta se volta alguns casos da tradição, como Goethe e Gogol, e casos de seu tempo, aqui mais uma vez a figura de Maiakóvski ganha destaque e encerra a intrincada relação entre o tempo e a poesia que serve de amarra ao volume. Na conclusão do último ensaio exalta a figura do poeta revolucionário e contemporâneo de seus iguais: “ Se houve suicídio naquela vida, não foi um só, mas dois, e ambos não são suicídios: o primeiro é um levante e o segundo, uma festa. Vitória sobre a natureza e glorificação dela. Maikóvski viveu como homem e morreu como poeta.” (p. 196).

A poeta sabia que para si “não há absolvição. (...) Mas, se houver um Juízo Final da palavra, diante dele, eu sou pura” (p. 197). É a essa temporalidade que é fim e meio, que leva ao aniquilamento, que Marina Tsvetáeva produziu sua obra e seu ofício. A essa relação com o próprio tempo e com seu tempo devemos algumas das linhas mais comoventes da autora. Para encerrar, citemos as últimas linhas de um poema de 1924, “Não terás minha alma viva”, traduzidos por Aurora Fornoni Bernardini (a quem também devemos a tradução do volume em questão), no livro Indícios Flutuantes (p. 125): “Vida: facas sobre as quais dança / Quem ama. / - Cansei de esperar a faca!”  

 

PEDRO GALÉ é professor de filosofia substituto da Universidade Federal de São Carlos


Pedro Fernandes Galé
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