A coletânea de ensaios O poeta e
o tempo, de Marina Tsvetáeva, apresenta ao público brasileiro um traço da
produção da poeta russa que se vê intimamente associado à sua própria maneira
de fazer poesia. Seus poemas, já conhecidos, ao menos em parte, em nossas
terras, apresentam aspectos da reflexão sobre o ofício poético, como nos atesta
o célebre poema “A Vladímir Maiakóvski” (aqui na tradução de Haroldo de
Campos): “Ele é dois: a lei e a exceção, / Ele é dois cavalo e cavaleiro. /
Toma fôlego, cospe nas mãos: / Resiste, triunfo carreteiro”. Essa produção
poética que se vê marcada pelos poetas e modos de seu tempo se faz ressoar nos
textos em prosa que compõem a coletânea publicada pela editora Âyiné.
No primeiro texto do volume “o poeta e a crítica” vemos o esforço da
autora no sentido de apresentar o ofício do crítico, bem como indicar o seu lugar:
“Para ter parecer sobre alguma coisa, para julgá-la, é preciso viver nela e
amá-la” (p. 26). Não se trata de uma resposta virulenta de uma autora de poesia
em relação à crítica, mas de um modo de localizar a crítica e seus afazeres
dentro de certas exigências que não permitam à crítica como um todo, o juízo
rápido e descuidado que já condenara alguns dos autores de sua geração, numa
pressa que é digna dos modos como se operava com a arte nas primeiras décadas
do século XX: “Quem, na emigração, não escreve crítica? ‘dê um parecer’,
‘escreva uma resenha’. Dar um parecer sobre qualquer assunto? Ai de nós! Eles
dão um parecer, um farrapo, um absurdo, dão o que não é dado, não dão nada.”(p.
61).
O tempo da poesia não poderia ser contemplado por esses que escrevem as
resenhas e críticas nos jornais onde abundam juízes não imbuídos das condições
necessárias para que a própria poesia lance luz sobre o leitor desses
periódicos: “Escrevem advogados, jovens sem profissão, menos jovens de várias
profissões, escrevem todos, escreve o público.” (p. 61). O lugar da crítica,
que se eleva por sobre a massa das opiniões em geral, deve ser o do “deus dos
caminhos e dos cruzamentos, deus bifronte, que olha para trás e para frente”
(p. 75), ou seja, ao crítico é imposta a tarefa de conhecer a tradição e
antever os próximos passos a serem traçados pela própria produção poética.
O ofício do poeta é exposto quase que como uma espécie de contraparte
da crítica. É nessa maneira de argumentar que a poeta se vai apresentando no
seu próprio modo de fazer poesia: “como posso eu, poeta, ou seja, pessoa da
essência das coisas, ser seduzida pela forma? Deixarei que a essência me
seduza, a forma virá por si. E ela vem.” (p. 74). É nessa formação dialética,
entregue pela poesia e atestada pela crítica num exercício de determinação
mútua que decorre da bem feitura de ambas, que a literatura teria de se afirmar
e se consolidar.
As linhas desse ensaio trazem uma espécie de poética da poética, que
resvala numa crítica da crítica. Só está apto a escrever crítica aquele que
vive e entende os meios poéticos de expressão, esse ideal, longe de ser cumprido,
é posto como uma espécie de ideia reguladora do ofício crítico, que, em sua
mais perfeita prática, escaparia a qualquer traço de determinação meramente
subjetiva: “ ‘eu acho assim’, ‘agrada-me assim’ – na presença do ‘eu’ e do
‘me’, até ao sapateiro permito não gostar de meus poemas. Isso porque nem o ‘eu’
nem o ‘me’ carregam responsabilidade” (p. 34). Aos que julgam há sempre a
ressalva: “Ao julgar um mundo no qual não vivem, vocês estarão simplesmente
cometendo abuso de poder” (p. 27).
O ensaio que dá título ao livro, “O poeta e o tempo”, traz
desdobramentos das temáticas apontadas no ensaio anterior. A temporalidade
ganha cena, mas não como um tempo etéreo que se manifesta no seguir das
gerações, mas no coro ao qual o poeta está sempre submetido: “Da história não
se pode pular fora!” (p. 88). É diante de seu tempo que o poeta escreve, para
hoje e de hoje. Exceção feita a Hölderlin, que, “atrasado em seu próprio
século, revelou-se contemporâneo do nosso século XX” (p. 85). Não se pode negar
seu tempo, quer para uma visão do futuro quer por uma visão do passado, ambas
devem afinar em conjunto a voz do poeta, pois “toda contemporaneidade tem dois
rabos: o dos restauradores e o dos inovadores, e um é pior que o outro” (p.
80). É nessa trama peculiar que relaciona a temporalidade e a poesia que a
poeta se lança em seu tempo.
A contemporaneidade da poesia é uma questão fundamental, pois “ não
existe arte não contemporânea” (p. 83). Nem mesmo diante de um tempo de grandes
convulsões se pode perdoar o poeta que se pretende fora de seu tempo: “Quer
você aceite a Revolução, quer você a despreze, evite, recuse, ela já está, de
qualquer maneira, dentro de você desde sempre, e desde o 1818 russo, você
gostando ou não” (p.103). Isso não significa uma adesão cega aos elementos do
tempo do poeta, mas uma clara noção de que é na determinação histórica que seus
versos e sua arte serão feitos. Cabe ao poeta inventar seu próprio tempo. Para
encerrar o ensaio, a poeta coloca a temporalidade em outra chave, a da própria
criação poética como uma arte disposta e determinada pelo tempo: “O tempo é meu
material de trabalho, meu meio de produção e de trabalho” (p. 114). É nesse
sentido que toda a mobilização do ensaio se coloca no sentido de estabelecer as
vicissitudes da relação entre o poeta, a poesia, e o tempo.
Encerra o volume alguns pequenos textos que compõem, por coagulação, o
ensaio “A arte à luz da consciência”, onde a poeta se volta alguns casos da
tradição, como Goethe e Gogol, e casos de seu tempo, aqui mais uma vez a figura
de Maiakóvski ganha destaque e encerra a intrincada relação entre o tempo e a
poesia que serve de amarra ao volume. Na conclusão do último ensaio exalta a
figura do poeta revolucionário e contemporâneo de seus iguais: “ Se houve
suicídio naquela vida, não foi um só, mas dois, e ambos não são suicídios: o
primeiro é um levante e o segundo, uma festa. Vitória sobre a natureza e
glorificação dela. Maikóvski viveu como homem e morreu como poeta.” (p. 196).
A poeta sabia que para si “não há absolvição. (...) Mas, se houver um
Juízo Final da palavra, diante dele, eu sou pura” (p. 197). É a essa
temporalidade que é fim e meio, que leva ao aniquilamento, que Marina Tsvetáeva
produziu sua obra e seu ofício. A essa relação com o próprio tempo e com seu
tempo devemos algumas das linhas mais comoventes da autora. Para encerrar,
citemos as últimas linhas de um poema de 1924, “Não terás minha alma viva”, traduzidos
por Aurora Fornoni Bernardini (a quem também devemos a tradução do volume em
questão), no livro Indícios Flutuantes (p.
125): “Vida: facas sobre as quais dança / Quem ama. / - Cansei de esperar a
faca!”
PEDRO GALÉ é professor de filosofia substituto da Universidade Federal
de São Carlos