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Rosângela Chaves - 119 - Abril de 2021
Os caminhos da democracia em Tocqueville
Foto da capa do livro Do interesse à paixão na política
Do interesse à paixão na política
Autor: Paaula Gabriela Mendes Lima
Editora: Appris - 220 páginas
Foto do(a) autor(a) Rosângela Chaves

Autor do clássico A democracia na América, publicado em dois volumes na primeira metade do século XIX, o francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) trouxe uma contribuição fundamental à teoria política com sua análise sobre a democracia, que ele classificava não apenas como um regime político baseado na soberania popular, mas sobretudo como um estado social assentado na igualdade de condições. Essa forma de interpretar a natureza da democracia trazia implicações importantes porque demandava levar em conta, além de fatores sociais e econômicos, elementos culturais. Mais do que isso, tratava-se de compreender que o processo de aprofundamento da igualdade de condições característico da modernidade e que conduzia ao  estado social democrático acarretava uma mudança profunda nas relações humanas e com isso propiciava o surgimento de um novo imaginário e também de um novo “tipo” humano: o homo democraticus.

Esse homem democrático – em contraposição ao “tipo” aristocrático, que se via preso a uma rígida cadeia hierárquica de afiliações e dependências – era caracterizado por Tocqueville, em linhas gerais, como extremamente individualista e preocupado, acima de tudo, com o seu bem-estar material e a sua vida privada. Qual seria, então, o vínculo que poderia reunir na esfera pública, nas modernas sociedades democráticas, esses indíviduos cuja disposição é permanecerem isolados entre si? O que poderia evitar a desagregação do tecido social decorrente desse contexto de radical atomização dos indivíduos que parece ser, conforme o diagnóstico de Tocqueville, uma tendência natural das democracias modernas?

O livro Do interesse à paixão na política – Uma trajetória filosófica de Alexis de Tocqueville (Appris Editora, 2020), de Paula Gabriela Mendes Lima, procura uma resposta a essas questões a partir de uma análise original e muito bem fundamentada das categorias políticas do interesse e da paixão dentro do pensamento tocquevilliano. A hipótese desenvolvida por Paula – o livro é fruto da sua tese em Filosofia Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), defendida em 2018 – é a de que ambas as categorias operam como princípios que propulsionam a ação política do homo democraticus, sendo fundamentais para compreender o funcionamento e a conservação das democracias modernas. Na sua pesquisa, Paula Lima optou por seguir um percurso linear na trajetória investigativa de Tocqueville acerca da democracia, explorando as várias acepções que o termo “interesse” ganha primeiramente na Democracia na América de 1835 e, depois, na continuação da obra, publicada em 1840. No último capítulo do livro, a autora dedica-se à mudança de ênfase do interesse para a paixão percebida na reflexão tocquevilliana, tendo como base os Souvernirs, um texto histórico-memorialístico em que Tocqueville examina o cenário político da França a partir dos acontecimentos em torno da Revolução de 1848 e também de sua própria performance como ator político, tanto no parlamento francês quanto na sua breve experiência como ministro das Relações Exteriores do regime presidencialista de Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho de Napoleão Bonaparte.

Apoiando-se nas suas observações da sociedade e das instituições norte-americanas durante a sua viagem pelos Estados Unidos da América no começo da década de 1830, Tocqueville chegou à constatação, segundo Paula Lima, de que o vínculo político que une os indivíduos das modernas sociedades democráticas é baseado no interesse. “O interesse impulsiona o homem a participar da vida política e a agir no espaço público”, afirma a autora (LIMA, 2019, p. 62). No entanto, como se disse anteriormente, o conceito de interesse assume múltiplos sentidos ao longo da obra tocquevilliana – “não é um conceito monolítico [...], mas um aglomerado de espécies”, acentua Paula Lima (LIMA, 2019, p. 62). Há o interesse particular, que é a base da constituição moral e o principal móvel da ação dos indivíduos democráticos, uma vez que estes agem tendo em vista principalmente aquilo que lhes é útil e vantajoso. Mas essa motivação egocêntrica é contrabalançada pelo interesse comunal – relacionado ao interesse específico de um determinado corpo social (o modelo apresentado por Tocqueville são as comunas norte-americanas da região da Nova Inglaterra, as quais, na primeira metade do século XIX, contavam com uma forte participação popular na deliberação em praça pública dos assuntos de interesse público local) – e pelo interesse nacional, vinculado às questões da nação como um todo.

Assim, o interesse se alça, escreve a autora, “como o princípio da ação e da razão na democracia” (LIMA, 2019, p. 99). O homem democrático age por interesse, mas compreende racionalmente que a obediência à legislação e o sentimento de patriotismo lhe são úteis porque lhe interessa conservar a ordem social, a coesão da coletividade na qual está inserido e a prosperidade do seu país. E também tem consciência de que a sua atuação como cidadão tem utilidade para assegurar os seus interesses no âmbito político (cf. LIMA, 2019, p. 100). No entanto, lançando mão da terminologia de Christian Laval, Paula Lima questiona se a defesa do interesse como “categoria política indispensável” para a compreensão do funcionamento da sociedade democrática tornaria Tocqueville uma espécie de apologista de um tipo de utilitarismo democrático. E aqui entra uma outra noção de interesse explorada por Tocqueville, a do “interesse bem compreendido”, que permite conceber as bases que sustentam a democracia para além do mero utilitarismo.

O interesse bem compreendido consiste em um cálculo racional por parte do homem democrático que chega à conclusão de que agir em prol do bem comum é essencial para preservar seu próprio autointeresse, mesmo que essa atitude exija uma contenção dos seus desejos e de suas paixões para a conservação da harmonia social. Tocqueville combina, dessa forma, as ideias de interesse  e de virtude, estabelecendo, como argumenta Paula Lima, uma “relação dialética entre virtude e interesse” (LIMA, 2020, p. 125), em que o interesse do indivíduo articula-se com o do cidadão, impulsionando um engajamento público que reforça as virtudes cívicas – no entanto, esse agir virtuoso demanda uma práxis democrática reiterada e, por conseguinte, o exercício da liberdade política, a qual, para Tocqueville, é sinônimo da mais ampla participação política por parte dos integrantes do corpo político.

Por fim, no que diz respeito à paixão, Paula Lima mostra em seu estudo como essa categoria política ganha corpo no pensamento de Tocqueville diante do desafio do autor em tentar compreender o turbulento contexto político e social francês que culminou na Revolução de 1848 e, na sequência, no golpe de 1851, quando Luís Napoleão Bonaparte decretou o fim da Segunda República ao se autoproclamar imperador. Tocqueville percebeu que era sobretudo a paixão que moldava a ação dos atores políticos naquele momento. De um lado, havia os revolucionários influenciados pelas teorias socialistas e movidos por afetos como o desejo de pôr fim às desigualdades. De outro, as classes médias foram tomadas pelas paixões do medo e do terror diante da luta revolucionária popular e acabaram por se submeter ao jugo de uma nova tirania, abdicando da liberdade em nome da ordem. Assim, no lugar de uma ação política fundada no interesse bem compreendido, que seria o meio mais viável para assegurar a estabilidade e a operacionalidade daquela sociedade ainda em processo de consolidação democrática, a disputa entre as classes sociais e os seus desejos e as suas paixões conflitantes acabou abrindo um terreno propício para um golpe de Estado (cf. LIMA, 2020, p. 196).

Neste momento em que os regimes democráticos em todo o mundo estão sob ameaça de forças extremistas, o livro de Paula Lima oferece, além de uma valorosa contribuição para a compreensão do pensamento de Tocqueville, uma análise pertinente sobre os alicerces e a própria natureza da democracia, sem deixar de lado as ameaças que pairam sobre ela. Por isso, sua leitura se faz tão recomendável não apenas para os estudiosos da obra tocquevilliana, mas para todos aqueles que se preocupam com o destino da democracia no mundo contemporâneo, a qual, com todos os seus defeitos, ainda permanece como o único horizonte possível para uma convivência civilizada entre os habitantes das diversas nações deste planeta.

ROSÂNGELA CHAVES é doutora em filosofia política pela UFG


Rosângela Chaves
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