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Jorge Grespan - 116 - Dezembro de 2014
Os manuscritos de O Capital
Sobre o lançamento do volume 4.3 da MEGA
Foto do(a) autor(a) Jorge Grespan

Em tempos de crise econômica mundial, profunda e crônica, que recolocou em debate o pensamento crítico de Marx, vem a calhar o lançamento na Alemanha do último volume da segunda seção da edição completa de Marx e Engels, a MEGA (Marx-Engels Gesamtausgabe). Encerra-se assim a publicação de todo o enorme material referente a O Capital e a seus escritos preparatórios, com as várias versões e traduções que o livro teve em vida de Marx e de Engels, e de tudo o mais deixado por eles para tanto, até rascunhos e anotações em estado absolutamente embrionário. Para entender o significado desse fato, é preciso fazer uma rápida reconstituição dos objetivos e da história do projeto MEGA.

A ideia de formar um arquivo e de publicar a obra completa de Marx e de Engels surge logo depois da Revolução Russa e, coordenada por Davi Riazanov (1870-1938), a edição começa em 1927. Já muito antes reconhecido como um erudito marxista, Riazanov vinha reunindo cartas e manuscritos dos dois autores, bem como outros documentos do movimento operário e socialista de vários países; era a pessoa talhada para a função, e concebeu o plano arrojado de uma coleção com quarenta volumes, dividida em três seções: a primeira, com textos sobre política, história e filosofia; a segunda, com as várias edições que O capital teve até a morte de Engels, em 1895, incluindo os esboços feitos por Marx; e a terceira com as cartas de ambos um para o outro e para outras pessoas, algo que não havia sido feito antes por nenhum editor. Esse é o projeto da chamada “primeira MEGA”, cuja justa ambição se revelava já pela publicação de textos da juventude de Marx e de Engels, como os Manuscritos de Paris e a Ideologia alemã.

Os problemas políticos da tumultuada década de 1930 na União Soviética, porém, repercutiram também na MEGA, especialmente em relação aos textos        mencionados acima. Neles aparecia uma imagem do marxismo que destoava em parte daquela pretendida pelas lideranças como o cânone científico da obra. Riazanov e vários dos seus colaboradores são destituídos em 1930 e, por fim, o projeto se interrompe em 1935.

A MEGA foi sucedida na década de 1950 pela Marx-Engels Werke (MEW), mas sua subordinação às condições e injunções postas pela política da União Soviética e da Alemanha Oriental tornaram desejável retomar a MEGA como uma edição mais atenta ao aspecto crítico e filológico.

Isso foi possível a partir de 1975, quando é lançado o primeiro volume da “segunda MEGA”, agora dimensionada para 165 volumes e quatro seções – além das três da “primeira MEGA”, delineou-se uma quarta, reunindo as notas e apontamentos dos dois autores sobre livros que liam ou temas científicos que estudavam. A primeira seção, ainda dedicada aos textos políticos, históricos e filosóficos, foi planejada para 35 volumes, dos quais quatorze foram lançados até o fim da década de 1980. A terceira seção passou a publicar também as cartas de resposta dos correspondentes de Marx e Engels, ampliando-se para quarenta volumes, dos quais oito foram publicados até 1989. Esse é, aliás, um dos pontos distintivos do projeto atual, pois a massa de cartas enviadas e recebidas por Marx e Engels permite não só conhecer os assuntos do seu interesse em cada momento, como também recompor toda a imensa rede de contatos deles pela Europa e América do Norte, uma dimensão central da sua militância político-revolucionária. A quarta seção, por fim, é a maior, planejada de início para ter 75 volumes, dos quais apenas sete haviam sido lançados antes de 1989.

A data de 1989 é decisiva, evidentemente, pela queda do Muro de Berlim, que chegou a colocar em xeque o projeto mesmo da MEGA. Depois de algumas negociações, foi possível retomá-lo, agora vinculado à International Marx-Engels Foundation (IMES), com sede em Amsterdã, junto aos arquivos que abrigam cerca de dois terços dos manuscritos e das obras de Marx e de Engels (o terço restante está arquivado em Moscou), e sob os auspícios da Academia de Ciências de Brandemburgo, em Berlim, cidade onde trabalha de fato o grupo de colaboradores da MEGA, decifrando e preparando os textos para publicação. A “segunda MEGA” passou, então, para outra fase, na qual se valoriza ainda mais a crítica textual e a filologia, oferecendo aos pesquisadores de todos os matizes teóricos e políticos os textos de Marx e de Engels no estado em que se encontram nos arquivos. Assim, desde o começo dos anos 1990, foram publicados três novos volumes na primeira seção, quatro na terceira e quatro na quarta, redimensionando-se o total da coleção para 114 volumes.

 

Características essenciais

Mas as características essenciais do projeto da “segunda MEGA” foram mantidas. Uma das mais importantes é que cada volume vem acompanhado de outro, à parte, com o “aparato” de estudo, do qual constam as variantes indicadas por Marx ou Engels nos manuscritos, as rasuras e cortes que aí fizeram, e pequenas anotações à margem para inclusão eventual em nova publicação. Ao comparar esse “aparato” com o texto principal, o leitor pode seguir o processo de criação das obras em suas alternativas e inflexões.

Isso é ainda mais importante no caso da segunda seção da MEGA, que o inventário acima deixou propositalmente de fora. É ela, dedicada a O Capital e seus escritos preparatórios, que está agora completa nos 22 volumes em que havia sido dimensionada. Até 1989, quatorze deles haviam sido editados, contendo dois tipos de texto: o material preparatório propriamente dito para a redação de O Capital, isto é, as notas de leitura e as redações provisórias de Marx desde 1857 (o texto dos Grundrisse, em sua edição crítica), passando pelos manuscritos de 1861-1863 (que incluem as Teorias da Mais-valia), para chegar aos manuscritos de 1863-1867, considerados até recentemente como a última versão de O Capital antes da publicação do Livro I por Marx em 1867; e o segundo tipo de texto, relativo às várias edições do Livro I – as alemãs de 1867, 1872 e 1883, a tradução francesa também de 1872 e a inglesa de 1887.

É preciso assinalar, de passagem, a importância desses volumes da MEGA, que permitem ao pesquisador confrontar as edições e perceber diferenças que não se limitam à conhecida reformulação feita por Marx no capítulo 1 da edição de 1872. Em vários momentos dessa última aparecem mudanças relevantes, paralelas às que Marx vinha introduzindo na tradução francesa, para a qual, como se sabe, ele fez às vezes uma nova redação. Além disso, a terceira e a quarta edição alemã, de que Engels se encarregou, também exibem importantes diferenças, em função das opções de Engels pela primeira ou pela segunda edição de Marx. Tudo isso levanta problemas mais do que formais, propiciando ao estudioso uma perspectiva realista, por assim dizer, dos processos de elaboração dessa obra crucial.

 

Adaptações de Engels

Depois de 1989, a segunda seção da MEGA continuou com a publicação dos manuscritos redigidos por Marx entre 1864 até pouco antes da sua morte, em 1883, para compor os Livros II e III de O Capital. Especial atenção foi dada ao modo com que Engels realizou adaptações, cortes e opções em meio ao grande material que tinha em mãos, e do qual pouca informação possuía antes: em carta de 2 de abril de 1883 a Lavrov, logo depois da morte do amigo, Engels revela que nos últimos tempos Marx mantinha em segredo o estado do seu trabalho; e no prefácio escrito para o Livro III relata a dificuldade de se haver com um texto muito lacunar. Por isso, além dos volumes que trazem o manuscrito de Marx, são muito interessantes os volumes especiais dedicados ao texto redacional de Engels, ou seja, ao texto de ajuste feito a partir dos originais, como preparação para os volumes definitivos da primeira edição do Livro II, em 1885, e do Livro III, em 1894.

O material posto diante do leitor permite questionar a versão de Engels para ambos os livros, por mais que se esteja seguro das suas boas intenções. Com as técnicas atuais de crítica de texto, é possível fixar uma datação mais precisa para a redação de cada caderno deixado por Marx, separando temas que na edição de Engels aparecem juntos, como, por exemplo, as várias teorias de crise que constam dos capítulos 14 e 15 do Livro III – a relação entre subconsumo, aumento de salário e elevação da composição orgânica do capital fica pelo menos sistematizada, de modo a evitar muito das polêmicas que se produziram e vêm se produzindo a esse respeito entre os intérpretes de Marx.

 

O Grundrisse

De qualquer modo, generaliza-se a vantagem anotada por Roman Rosdolsky para a leitura dos Grundrisse: se já era ali possível flagrar o nascimento dos conceitos centrais da crítica à economia política, agora também o é acompanhá-los na sua trajetória de avanços e recuos. De fato, a segunda seção da MEGA mantém os Grundrisse como fase inicial do projeto que levaria Marx a O Capital, mas distingue outras duas fases decisivas. O livro de 1859, Para a Crítica da Economia Política, não é só o começo abortado da publicação dos Grundrisse, pois nele Marx já havia atinado que a mercadoria, e não o dinheiro, deveria ser o ponto de partida da apresentação do modo de produção capitalista; e as modificações cruciais assim impostas ao todo da crítica vão repercutir até em temas relativos aos Livros II e III, como a concepção do capital a juros como mercadoria, ou o papel da concorrência entre os capitalistas individuais na dedução dos preços a partir dos valores. Em 1859, portanto, começa uma nova fase dos estudos de Marx, que se estende até 1863 e recebe o título geral de Para a Crítica da Economia Política. Uma terceira, por seu turno, vai de 1863 a 1867, quando Marx pensa aprontar a versão final da sua grande obra. Marcada também por várias diferenças conceituais importantes em relação à fase anterior, nessa Marx muda o título para O Capital, a fim de enfatizar o domínio dessa forma do valor que se valoriza sobre o conjunto das relações sociais da sociedade burguesa, deixando Crítica da Economia Política como subtítulo.

Em cada uma dessas fases, Marx pretendia publicar juntos os três volumes da sua obra, e por isso redigiu de modo mais ou menos paralelo todos os temas que nela entrariam. Assim, em 1863, avança a partir dos manuscritos da fase anterior e sucessivamente escreve o texto que destinava à publicação: em 1864 escreve um bom pedaço do material referente ao Livro III, passa, a seguir, para o Livro II, volta ao Livro III em 1865, para enfim escrever o Livro I, que acabou publicando separado dos demais, por conselho de Engels, em 1867.

 

Conceito de valor

No meio desse caminho, Marx redefine o conceito de valor, para diferenciá-lo do valor de troca, que seria a sua forma externa, assumida só na troca de uma mercadoria por outra. O valor como determinação interna à mercadoria permite distinguir nela o destino social, voltado ao mercado, e assim formular o teorema do fetichismo com toda a clareza já no âmbito dessa que é a forma mais elementar e geral da sociabilidade capitalista, algo impossível nas fases anteriores de pesquisa e redação. A partir daí, Marx pode definir o fetichismo também no caso da forma de dinheiro e no das várias formas de capital por um novo prisma, ressaltando a inversão de sujeito e objeto operada em todos os níveis da vida econômica. O quanto essa precisão era algo novo para ele mesmo, é algo que pode ser avaliado pela comparação da primeira com a segunda edição alemã do Livro I: em 1872, é muito mais complexa a derivação do dinheiro a partir das formas adotadas pelas mercadorias na sua troca direta – a importante seção 3 do capítulo 1.

Esse avanço é simultâneo ao realizado na elaboração do Livro III, no qual a derivação dos preços enfim ocorre a partir dos conceitos de equalização e de preço de produção, isto é, de uma sociabilidade criada pelo capital para si próprio, submetendo a vontade e a consciência dos capitalistas individuais. E também na do Livro II, em que a reprodução do capital passa a ser exposta como movimento de formas assumido pelo capital mesmo, definido como sujeito que domina as condições de sua existência. Tal conceito de reprodução resultante do de capital como sujeito fetichista permitiu ainda antecipar esse tema, reservado antes ao Livro II, no final do Livro I, que com isso ganhava um fecho próprio. Ao contrário dos planos até ali elaborados por Marx para sua obra, o Livro I era concluído com a acumulação e reprodução do capital social – capítulos 21 a 24 –, completando um círculo lógico que o tornava independente da sequência dos demais livros.

Surge aqui, contudo, um problema. Para além das possibilidades que a elaboração conceitual lhe facultava, por que Marx teria feito essa mudança de planos, que inclusive desagradou muito a Engels? Será que ele não estava seguro de poder continuar a obra, de modo que o Livro I poderia acabar sendo o seu grande legado teórico de análise do capitalismo? De todo modo, no ano de 1868, Marx se empenhou muito em aprontar o Livro II para publicação e não conseguiu, tendo retomado a tarefa várias vezes durante a década seguinte.

Essa é uma das histórias e das discussões que a MEGA traz nos últimos volumes da sua segunda seção. Em especial no volume agora publicado, o de número 4.3, com o qual se encerra a seção inteira, um conjunto de problemas e de explicações alternativas se oferece. O exame dos textos escritos por Marx entre meados de 1867 e o final de 1868 mostra que ele queria aproveitar o avanço conceitual proporcionado pela elaboração do teorema do fetichismo exatamente nas duas direções apontadas acima, a saber, a reprodução do capital como resultado do movimento em circuito de suas formas, e a derivação dos preços a partir da equalização dos valores e preços de produção. Esses são os principais temas dos escritos também da década de 1870 até 1881, mas nenhuma das inúmeras tentativas satisfaz ao seu autor, que as começa e interrompe sempre, quase obcessivamente.

 

Solução do mistério

O volume 4.3 da MEGA sugere aí a solução do mistério que ronda o fato de Marx não ter concluído sua obra nos quase dezesseis anos que viveu depois de publicar o Livro I de O Capital. A razão não seria tanto a falta de saúde nem a militância política, como geralmente se alega, mas a dificuldade de retomar o fio da meada depois de ter completado o Livro I do modo que fez. Se o capital se reproduz em escala crescente, mas com o ônus da pauperização crescente do proletariado, conforme o final do Livro I, como expor o funcionamento adequado da circulação do capital no Livro II? Como começar explicando a perfeita operação dos circuitos de reprodução do capital individual, passar para a não menos adequada rotação de suas partes e concluir com a proporcionalidade das trocas entre os departamentos em que se divide o capital social? A dificuldade é tão grande que o Livro II de fato gerou desconforto entre muitos marxistas do começo do século XX.

Como alternativa, o volume 4.3 da MEGA sugere que a mudança de planos já na publicação do Livro I talvez corresponda ao começo de uma quarta fase de trabalho de O Capital, que se estenderia pelos anos posteriores. Não teria ocorrido então um impasse, e sim uma pausa necessária para a absorção de novos conhecimentos. E, de fato, a MEGA também revela o enorme interesse de Marx nos anos finais de sua vida pelo desenvolvimento do sistema de crédito, prestes a ocupar um lugar central na reprodução capitalista, e pela importância crescente da economia norte-americana depois da Guerra de Secessão.

Essa é, em suma, a contribuição decisiva da MEGA, em especial da sua segunda seção. Nela se desfaz a impressão errônea de uma obra acabada, coesa e fechada em si mesma, que as publicações tradicionais de O Capital podem dar, ensejando interpretações rígidas e dogmáticas. Nela Marx aparece em sua plena grandeza de pensador, capaz de sempre se repensar e de levar em conta a realidade acima de tudo. Para quem estuda sua obra, esse é o traço mais instigante e inspirador.

 

 

Jorge Grespan é professor de história da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
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