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Mariluce Moura - 118 - Fevereiro de 2020
Ousadias múltiplas
Nota sobre as forças selvagens da natureza
Foto da capa do livro Et cetera: sobre vida selvagem e inteligência
Et cetera: sobre vida selvagem e inteligência
Autor: João Carlos Salles
Editora: Quarteto Editora - 204 páginas
Foto do(a) autor(a) Mariluce Moura

O novo livro de João Carlos Salles permite-se múltiplas ousadias, a começar pelo título: et cetera. Sim, há o subtítulo, sobre vida selvagem e inteligência, em princípio destinado a explicar o enigmático título. Mas dado que não há no volume nenhum ensaio ou poema sobre animais na floresta, na savana, caatinga ou em qualquer outro bioma, o leitor terá que percorrê-lo um tanto para tentar descobrir de que vida selvagem afinal se trata. E concluir, talvez, que ela é metafórica e ali está posta inclusive para açular sua curiosidade.

Acrescente-se que a imagem da interessante capa, o desenho inspirado num caracol ou caramujo (foto Nastasic/Getty Images), não leva ninguém para mais perto da verdade dessa vida selvagem, posto que, na memória coletiva, caracol é bicho de jardins e quintais em torno da casa. Serzinho conhecido, a provocar, quando esmagado sob os pés na caminhada inocente, um estremecimento de desprazer que vem do ruído da frágil casca ao se quebrar em dezenas de fragmentos.

É bem verdade que o caramujo de água doce participa do ciclo de transmissão da esquistossomose, uma espécie de selvageria contra o destinatário final do Schistosoma mansoni nesse percurso, ou seja, nós, seres humanos dos trópicos. Mas ele não vem ao caso aqui, porque

esse intermediário é do gênero Biomphalaria, enquanto o caracol que inspirou o desenho da capa de et cetera é um Planorbarius corneus, devidamente registrado na classificação de Lineu em 1758. Pode-se alegar que são todos da família Planorbidae, o que certamente não basta para incriminar os inocentes do grupo.

Muito diferente é a situação da palavra inteligência no subtítulo. O termo é indicador claro de que os diferentes textos reunidos, sempre de conteúdo filosófico ainda quando sob disfarce, tratam de formas e caminhos de seu exercício, a par de serem por si mesmos distintos exercícios dessa capacidade e arte de compreender, decifrar, inventar e criar e recriar em si o outro e o mundo, digamos assim para simplificar. Sem spoiler, vale a pena sugerir ao leitor, a essa altura, caso esteja se consumindo de curiosidade sobre a especificidade da inteligência prometida no subtítulo, uma ida furtiva à página 185, antes de cumprir o percurso do livro, para leitura do ensaio final, “Eu sei lá”.

Por mais irreverente que soe esse título que fecha o círculo iniciado por et cetera – uma resposta tão baiana para escapar de uma pergunta incômoda, desencanada a alguns ouvidos e francamente desdenhosa a outros mais melindráveis –, a linha explicativa que se segue, “Nota sobre as forças selvagens da inteligência”, já entrega bastante o que o autor pretendia desde que nomeou o livro. Eis, leitor, enfim, luz intensa sobre o sentido da conexão vida selvagem e inteligência do subtítulo do livro.

“Intelectuais e farsantes amiúde se confundem. Sinal dos tempos, gritos se tornam equivalentes a ênfases, ataques passam a valer como expressão de individualidade, e a retórica mais rude toma ares de argumentação.” diz Salles para começar. Segue: “A confusão não é nova, sendo quase natural. Afinal, a inteligência parece poder alimentar tanto a reflexão quanto o canalha, até porque, contra toda aparência, inteligências há de diversa natureza. (p. 85)”.

Nesse pequeno e brilhante texto, depois de lembrar que “o lugar comum da tradição nos faz mesmo julgar tolo o otimista [Candide/Leibnitz?] e profundo o pessimista, como se a vocação natural da razão fosse o negativo, a destruição”, o autor explicita o seu partido com notável e sempre bem vinda clareza: “(...) penso que a inteligência pode ser acolhedora, expansiva.” O indivíduo verdadeiramente arguto, ele define, “não precisa ser quem prefere sempre a ironia à crítica”, nem “a cizânia à concórdia, a vitória ao consenso, a persuasão ao convencimento. (p.185).”

João Carlos Salles reitera nessas páginas sua profissão de fé na linguagem, no poder da argumentação e na construção de espaços públicos democráticos, portanto, no reconhecimento necessário da alteridade. “Se temos dificuldade com a alteridade, temos dificuldade com a cultura.” (p.191).

E ao seguir esse caminho, ele termina por arrancar do desdém, da equivalência ao quase afrontoso dar de ombros, e virar de cabeça para baixo, o repetidíssimo “eu sei lá”, do falar baiano, criando outros sentidos e outra entonação para o advérbio de lugar que conclui a expressão. “Na verdade, eu sei lá, sim! E só me sei, quando há critérios, quando um gesto pode ser linguagem, nascendo sempre de forma pública. (p. 192). Enunciada como proposição, a expressão passa a lembrar “a dificuldade de constituição do fato da igualdade, que nunca é fato algum, mas nossa permanente promessa. Ou seja, lembra o mistério da construção da cidadania (...) 'Eu sei lá’ recompõe um tecido feito de ruínas. (p. 192)”.

Difícil resistir ä transcrição desse trecho tão elucidativo na mesma página: “A arma da inteligência cítrica é alguma forma de argumento contra o homem, mais ou menos sofisticado.

Toda sociologia, caso não marcada pela filosofia, pode ser uma nota de rodapé a argumentos contra o homem” Digressões tão longas à parte, o livro de João Carlos Salles traz, de cara, uma apresentação do próprio autor, bastante didática, sobre esse volume face ao conjunto de sua obra, seguida por sete textos, incluindo um poema, num conjunto intitulado “Sobre Universidade”. Temas tão caros a Salles em sua militância política universitária, como a urgência da necessidade de recomposição da aura ou da sacralidade singular da universidade, e discussão sobre argumentação versus falácia em seu espaço público, estão presentes com força nessa segunda parte. Já “O ardil da espera” reúne seis prefácios para livros de colegas da universidade, ligados a vários campos do conhecimento.

“Alguma crítica” guarda, sob título tão sóbrio, outras boas ousadias do autor nesse volume: o poema “Guia do sem sentido” e, em certa medida, o texto mais provocativo da obra, porque é, em forma elegante, um chamado ou uma sacudida no leitor para que compreenda o poema, “Breve exegese de ‘Guia do sem sentido’”.

Sobre o “horribile dictu” poema, na visão desconfiada do próprio autor, que ainda o classifica de “estranho e desavergonhado”, João Calos Salles nos conta na apresentação do livro que saiu “de um jato, por meio de escrita automática”, ao chegar em casa exausto, depois de algumas horas autografando A cláusula zero do conhecimento. Foi por causa mesmo do automatismo da escrita que veio o texto a seguir. “Necessitei fazer um estudo para tentar desvendar quem, ao fim e ao cabo, é o seu autor ”, diz (p. 15).

Vê-se, por essas indicações, que não será ato de muita inteligência do leitor contentar-se em saltar da capa para o último ensaio do livro e aí encerrar, satisfeito, a leitura, como um ou outro apressado pode depreender que é a recomendação de um trecho desta resenha. Vai-se perder,

assim, um percurso muito rico e provocativo. Mas, de verdade, penso que lendo antes o último ensaio, o leitor interessado nos temas que o livro propõe voltará logo ao começo para a viagem inteira.

MARILUCE MOURA é jornalista e criadora da revista de divulgação científica Pesquisa Fapesp

Mariluce Moura
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