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Leda Paulani - 62 - Junho de 2000
Vulnerabilidade ampliada
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Vulnerabilidade ampliada

LEDA PAULANI

00No momento em que um alto executivo da poderosa corporação espanhola Iberdrola afirma que não entende que razão pode ter este país para vender estatais bem estruturadas e lucrativas, vem a público um livro que traduz em números o afã antiestatista e antinacionalista que tomou de assalto o Brasil nos últimos seis anos.
Definindo globalização como um processo que altera a relação entre as nações de uma forma que vai muito além do mero aumento do fluxo de mercadorias e capitais, Reinaldo Gonçalves procura mostrar que a tão propalada inserção externa do Brasil acabou por resultar num processo de desnacionalização nunca antes experimentado em nossa história.
00Colocando seu foco crítico na menina dos olhos da política externa brasileira, a capacidade de o país atrair investimentos externos diretos (IED), Gonçalves demonstra que seu resultado é perverso. Neonacionalismos à parte, o problema não reside no fato em si de que o estoque de IED tenha dobrado entre 1994 e o final de 1998 (de US$ 45 para US$ 90 bilhões), mas nas consequências disso em termos do aumento de nossa vulnerabilidade externa.
00Ao argumento de que este é o preço a pagar por qualquer país desejoso de pegar o bonde da globalização, Gonçalves lembra que a vulnerabilização é uma via de mão única, em que países como o Brasil são os mais afetados, porque seus problemas domésticos têm impacto praticamente nulo sobre o sistema econômico mundial (nosso país responde por menos de 1% do comércio internacional e por apenas 2% da renda e investimento mundiais).
00Assim, o aumento da vulnerabilidade externa significa, a um só tempo, substancial perda de liberdade na condução da política econômica e custos extremamente elevados para "ajustar" a economia a cada sobressalto da turbulenta economia global. Comprometem-se, com isso, as possibilidades de crescimento, resultado trágico para um país dilacerado por abismais desigualdades sociais.
00A substancial elevação dos fluxos de IED, como bem lembra Gonçalves, tem sido multifuncional ao governo Fernando Henrique Cardoso. Além de redimir o balanço de pagamentos do desastre na balança de transações correntes, tem servido para pintar, internamente, um quadro de otimismo, pois seria sinal inequívoco da confiança dos investidores internacionais.
00Mas este cenário idílico só seria verdadeiro se fosse válida a hipótese de que a confiança na política econômica do país receptor é aí a principal variável. Não existe, porém -eis o que indica Gonçalves-, nenhum fundamento que sustente tal suposição. O aumento do IED mundial ao longo dos anos 90 deveu-se à crise de acumulação do início da década nas economias centrais e à intensificação da concorrência global. Assim, os determinantes do comportamento dos fluxos de IED são muito mais externos do que internos, o que lhe confere um caráter errático, incompatível com qualquer previsão de continuidade e regularidade.
00Evidentemente, as vantagens locais têm sua importância na definição dos destinos dos fluxos de IED. Mas, também neste caso, carecem de sustentação as hipóteses oficiais. Apoiado em ampla literatura teórica e em recentes estudos econométricos, Gonçalves mostra que, dentre as variáveis internas, é o tamanho do mercado a mais importante.
00Portanto, a estabilidade monetária trazida pelo Plano Real não foi elemento determinante na disposição dos investidores internacionais. No plano macroeconômico, aliás, todos as demais variáveis pioraram substancialmente (crescimento, investimento, déficit público, indicadores externos etc.), o que só vem comprovar que não é o acerto da política econômica que conta.
00Se, além do tamanho do mercado, alguma outra variável interna teve importância crucial nesses resultados, lembra Gonçalves, foi a irrestrita disposição do governo de se desfazer de empresas bem estruturadas, eficientes e pertencentes a setores considerados hoje o filão mais lucrativo do mercado, quais sejam, aqueles que operam com serviços industriais de utilidade pública. O esgotamento dos capitais estatais a serem privatizados e dos privados nacionais a serem adquiridos (estes últimos depreciados graças à sem-cerimônia do processo de abertura econômica) constitui elemento adicional a tornar pouco plausível a hipótese de continuidade e regularidade dos fluxos de IED para o Brasil.
00O grande problema, portanto, é que a desnacionalização provoca mudanças de caráter estrutural na balança de transações correntes (a remessa de lucros e dividendos pula de US$ 2,4 bilhões em 1994 para US$ 7,2 bilhões em 1998), não se podendo esperar que sejam compensadas pelos espasmódicos fluxos de IED da balança de capitais.
00Nossa vulnerabilidade externa, lembra Gonçalves, fica ainda mais acentuada porque boa parte do capital estrangeiro recém-chegado está alocado em setores não "tradeables", em empresas com elevada propensão a importar. Desnecessário dizer que tudo isso conforma um quadro perverso, não só do ponto de vista da enorme massa de excluídos que o país carrega, mas também do ponto de vista dos trabalhadores (restrições ao crescimento e desemprego) e do capital nacional (fragilização e extinção de grupos privados).
00Além dos investidores internacionais, certamente agradecidos por tamanho banquete, a quem tem servido então esse processo de desnacionalização em grande escala? Gonçalves indica pelo menos um grupo indiscutivelmente ganhador. A transferência do patrimônio público para o setor privado detonou um processo de substituição da antiga burguesia nacional por um reduzido número de "barões da privatização", frequentemente associados ao capital estrangeiro.
00Assim, se FHC, como observou Fernando Haddad numa expressão feliz, conseguiu inverter o lema de JK e torrou 50 anos em 5, ele conseguiu forjar também, como de modo pioneiro apontou José Luís Fiori, uma classe de "rentiers" e de gerentes brasileiros de empresas desnacionalizadas capazes de conectar seus interesses nas redes dos investidores externos e das burocracias multilaterais que policiam monetariamente a periferia capitalista. Incapazes de resistir ao poder sedutor do novo sistema político-ideológico, nossas elites bem estudadas e esclarecidas, sob o comando de um membro de escol, se rebelaram contra o país. O livro de Reinaldo Gonçalves conta, com riqueza de detalhes, um capítulo muito importante dessa história sombria.



Globalização e Desnacionalização
Reinaldo Gonçalves
Paz e Terra (Tel. 0/xx/11/223-6522)
240 págs., R$ 24,00



Leda Maria Paulani é professora na Faculdade de Economia e Administração da USP.

Leda Paulani professora de economia da FEA-USP
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