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Luis Claudio Figueiredo - 17 - Agosto de 1996
Winnicott no Brasil
Foto do(a) autor(a) Luis Claudio Figueiredo

Winnicott no Brasil

 

LUÍS CLÁUDIO FIGUEIREDO

Esta coletânea contém as palestras apresentadas no "Simpósio D. W. Winnicott na Universidade de São Paulo", promovido pelo Instituto de Psicologia da USP em 1995. Tal simpósio fez parte de um movimento amplo e cada vez mais consistente de difusão no Brasil das idéias do "grupo independente" da psicanálise inglesa. Ao mesmo movimento pertencem outras iniciativas do gênero, e os lançamentos e relançamentos de títulos de outros representantes da mesma "corrente" de pensamento clínico como Balint, Masud Kahn, Marion Milner, Bollas etc. Numa trajetória próxima e em parte convergente, assiste-se à descoberta e difusão entre nós do pensamento de Ferenczi.
Há muitas coisas em comum entre estes autores; por exemplo, a valorização da "realidade" ambiental nos processos de formação e mutação das subjetividades, com ênfase nos diferentes e decisivos modos pelos quais as alteridades se constituem e se inscrevem nas histórias de vida de cada indivíduo. O que talvez mais os aproxime uns dos outros, porém, seja a coragem de tratar "casos difíceis" e sobre eles teorizar, com uma incrível disposição inovadora, seja no campo do pensamento teórico, seja no campo do pensamento e das práticas e técnicas da clínica. Foram e são grandes psicanalistas que não recuaram diante dos desafios e se dedicaram a operar naquele inóspito e controvertido território que é o das "fronteiras" e "limites" da psicanálise.
A presente coletânea dá uma excelente amostra do que está sendo produzido no Brasil nesta trilha de liberdade que Winnicott ajudou a desbravar.
Alguns capítulos apresentam o autor nas suas idéias principais e, o que é mais importante do que pode parecer, no seu contexto de vida pública e pessoal (Figueira, Outeiral e Forlenza Neto), e são úteis para quem deseja uma aproximação sucinta e estimulante à problemática winnicottiana.
Outros capítulos, talvez os mais instigantes, buscam articular aspectos fundamentais do pensamento de Winnicott com questões filosóficas da mais absoluta contemporaneidade. Neste caso estão os textos de Loparic, Frayse-Pereira e R. Luz, em que Winnicott é posto a dialogar com Heidegger, Merleau-Ponty e Foucault.
Em um importante conjunto de capítulos, alguns "temas escolhidos" da tradição independente são explorados com propriedade e criatividade. Algumas das demais contribuições versam sobre questões da prática, sejam as da clínica psicanalítica, sejam as de outras práticas a que o pensamento de Winnicott pode trazer novas perspectivas; neste conjunto, chamo a atenção para as possíveis incidências de Winnicott na prática do acompanhante terapêutico e na da psicoterapia domiciliar.
Apenas um trabalho, contudo, aventurou-se, ainda que timidamente, a uma tentativa de articulação entre o que se pode aprender com Winnicott sobre a "psicanálise modificada", ou seja, do que emerge quando a psicanálise é posta a trabalhar nas "fronteiras", e o que poderia haver de específico nas subjetividades com que um psicanalista brasileiro se defronta quando sai de seus nichos urbanos de classe média e alta. Refiro-me ao trabalho de Sagawa elaborado a partir do atendimento a pacientes em instituições públicas de saúde mental em que as próprias delimitações da clínica (do seu "dentro" e do seu "fora") não estão plenamente instituídas. Embora estas questões não estejam completamente equacionadas no texto de Sagawa, elas me suscitaram algumas considerações.
De início, quero recordar que, como nos esclarecem os capítulos de Figueira e Outeiral, a psicanálise desenvolvida por Winnicott -ainda que possa e deva transcender seus limites geográficos, históricos e culturais de origem- é um produto inglês e, mais ainda, de uma certa época na história sociocultural e subjetiva da Inglaterra. Diz-nos Sérvulo Figueira: "No caso de Winnicott, ser um 'englishman' significa que ele encarna em sua vida os valores básicos da cultura inglesa na área da organização da subjetividade: o cultivo da diferenciação individual e do lado positivo da idiossincrasia, o cultivo da independência de pensamento e julgamento, o respeito pela opinião, pela liberdade e pela autonomia do outro, a valorização da experiência e da observação, em suma, o cultivo da individuação". Acrescente-se que, em suas "Reflexões sobre a Sociedade" (em "Tudo Começa em Casa"), Winnicott deixa claro seus compromissos ideológicos com a fina flor da cultura política inglesa, isto é, com um liberalismo democrático refinado e enriquecido pelo pensamento psicanalítico. Outeiral, por sua vez, insere a formação pessoal e profissional de Winnicott no trânsito da "era vitoriana" (em que se "privilegiou a repressão dos aspectos instintivos, criativos e espontâneos da cultura") para a "era eduardiana" ("rica de expressões artísticas, era do respeito à idiossincrasia pessoal e de uma abertura geral nos costumes"). Estas considerações nos levam a pensar, por exemplo, o quanto conceitos como os de "falso" e "verdadeiro self" são tributários destas tradições e deste momento; conviria avaliarmos, em contrapartida, o quanto poderia ser perigoso um uso destes conceitos -na verdade tão úteis para uma clínica comprometida com a saúde como potencial para a criação- se, fora de contexto, forem transformados em categorias acusatórias. Diga-se de passagem que talvez haja um risco de que isso esteja acontecendo no texto em que Belmont se baseia em artigo de Mello Filho ("Vivendo em um país de falsos selves") para caracterizar a nossa descrença na Lei e nossa protodelinquência.
Na verdade, cabe-nos perguntar: quanto estas categorias pressupõem para sua plena operatividade numa cultura em que as esferas da vida pública e da privacidade estão há alguns séculos sendo diferenciadas e separadas, com tudo que isto pode acarretar tanto em estabilidade "identitária" como em esterilização subjetiva? Neste sentido, seria interessante, ainda, considerar como outros conceitos-chave do pensamento winnicottiano como os de "espaço potencial" e "objeto transicional", assinalando o valor e a função do que pode e deve existir neste lugar intermediário entre "exterior" e "interior" -lugar de "jogo" e "criação"- foram respostas teóricas à rígida separação entre público e privado e às novas fronteiras que estavam, às vezes traumaticamente, sendo estabelecidas entre eles. Na verdade, todos quanto conhecem a obra de Winnicott sabem como sua prática e suas teorias respondiam às grandes questões da Inglaterra, em particular as produzidas pela Segunda Guerra Mundial, e aos profundos remanejamentos socioculturais e subjetivos daí decorrentes.
Que bom se este fantástico campo de liberdade para pensar e fazer psicanálise legado por Winnicott pudesse vir a ser, no Brasil, mais que uma nova moda na nossa longa história como imitadores e em nossas infindáveis disputas, tão caras a certos meios psicanalíticos, para saber quem é o "verdadeiro falso" e quem é o "falso verdadeiro". Que se abra, enfim uma oportunidade efetiva para, "winnicottianamente", criativamente, corajosamente enfrentar o Brasil. Esta coletânea caminha nesta direção. 

Luis Claudio Figueiredo professor de psicologia clínica da PUC-USP
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