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Marco Antonio Sousa Alves - 119 - Abril de 2021
A brutalidade atual e o devir outro
Uma leitura ampla e ácida de nosso mundo atual
Foto da capa do livro Brutalisme
Brutalisme
Autor: Achille Mbembe
Editora: La Découverte - 246 páginas
Foto do(a) autor(a) Marco Antonio Sousa Alves

O livro Brutalisme, do filósofo e historiador camaronês Achille Mbembe, veio a público na França no dia 6 de fevereiro de 2020. Ainda sem tradução, a obra deve sair em português pela n-1 edições em breve. Trata-se de um ensaio ousado, que pretende oferecer uma leitura ampla e ácida de nosso mundo atual. Essa nova publicação de Achille Mbembe situa-se no prolongamento das reflexões realizadas anteriormente em Crítica da razão negra (2013)[1] e Políticas da inimizade (2016)[2], conformando um ciclo.[3]

No centro da leitura de Mbembe reside a tese de que vivemos um “devir-africano” ou “devir-negro do mundo”, um processo de ordem planetária de transformação da humanidade em matéria e energia, assim como de uma exploração e combustão da Terra. Mbembe defende que a África funcionou como uma espécie de laboratório do que hoje se passa em praticamente todo o mundo. O tratamento antes reservado aos “negros” foi estendido, aplicando-se a todos aqueles que são tomados como “homens-resíduo” ou “homens-lixo” (hommes-déchets).

O título do livro remete a um movimento arquitetônico de meados do século XX, caracterizado pelo uso aparente do concreto armado. ‘Brutalismo’ tem sua origem no francês béton brut, que significa “concreto bruto”. Mbembe, contudo, apropria-se desse termo como uma categoria eminentemente política, procurando destacar a centralidade da matéria, do corpo e da energia. Temos, no fundo, uma lógica de extração, destruição, transformação, produção e combustão, tanto em relação à Terra quanto aos seres humanos.

Mbembe pretende, com o termo ‘brutalismo’, fazer referência ao momento inédito que vivemos, marcado pela renovação do neofascismo, pelo esvaziamento da democracia e pelo triunfo do neoliberalismo.[4] No seio do brutalismo, três racionalidades estão intrinsecamente imbrincadas: a razão econômica/instrumental (a lógica neoliberal), a razão eletrônica/digital (a forma computacional) e a razão neurológica/biológica (o processo de carbonização do vivo). Nossa época, segundo Mbembe, é propensa ao fechamento e à separação, uma vez que não se acredita mais no futuro. Mas, apesar disso, podemos perceber em Brutalisme uma postura mais otimista, que aposta na possibilidade de uma reversão desse processo.[5] Há uma ênfase no “devir”, que Mbembe retoma das antigas metafísicas africanas.

O livro é dividido em oito capítulos. O primeiro, intitulado “A dominação universal” (p.31-56), volta-se para o processo de fabricação de um mundo no qual humano e não-humano formam uma matéria indistinta, objeto de apropriação, modelação e destruição. Pulsões violentas são liberadas, sem censura, fazendo com que a desumanização se torne prática comum e um programa de “faxina” ganhe forma explicitamente. Longe do diálogo e do esforço de criação de um futuro em comum, prevalece a fantasia de eliminação do outro. Mbembe critica também as políticas identitárias, vistas como o novo ópio das massas, que alimentam ainda mais o desejo de diferença e nos afastam de uma concepção integral do mundo.

No segundo capítulo, “Fraturação” (p. 57-76), Mbembe coloca em questão a nova ordem espacial de dimensão planetária, com seus fechamentos e fronteiras. A tecnologia computacional permite que hoje tudo se torne objeto de exploração, por meio de um trabalho de abstração, de captura e de tratamento automatizado de dados. Novas fronteiras são fixadas por meio de dispositivos de rastreamento, vigilância e controle, impondo separações físicas e virtuais. O objetivo, na visão do pensador camaronês, é excluir os corpos abjetos e as populações consideradas ameaçadoras ou supérfluas, no seio de um amplo projeto securitário.

No terceiro capítulo, “Animismo e visceralidade” (p. 77-102), Mbembe explora ainda mais o novo tipo de inteligibilidade instaurado pelo digital, entendido como um projeto de conhecimento integral obtido por meio da extração e da análise de dados. Ao invés de abolir todo mistério, Mbembe ressalta como esse tipo de conhecimento envolve um retorno espetacular ao animismo e uma liberação das pulsões de todo tipo de censura, permitindo a disseminação do microfascismo. Somos, assim, reconduzidos a uma nova economia do encantamento do mundo, conformando as novas hordas virtuais e o crescente “narcisismo de massa”.

O quarto capítulo, “Virilismo” (p. 103-130), volta-se para a análise do falo e do patriarcado, que conformam um poder orgástico animado por um desejo de gozo absoluto. Mbembe ressalta o caráter libidinal de todo poder e analisa a figura da “liberação ao contrário” presente nos jogos sádicos, ou seja, aquela que acontece às custas do mais fraco, por meio de sua objetificação. Nesse ponto, é retomada a experiência colonial e a mistura operada em seu seio de sedução e perversão, explorando temas como a inveja do harém, a pulsão de ejaculação, o desejo narcísico e o pânico genital.

No quinto capítulo, “Corpos-fronteira” (131-150), Mbembe volta o seu olhar para os grandes contingentes populacionais que passam a ser considerados inúteis, em excesso (en trop), demandando um controle de seus movimentos e, também, práticas de eliminação. Esses ‘corpos-fronteira” são, essencialmente, corpos racializados que constituem uma humanidade vista como dispensável e de pouco valor.

O sexto capítulo, “Circulações” (p. 151-172), enfrenta a questão das deportações, do encarceramento e dos controles que se multiplicam contemporaneamente, no seio de um novo regime securitário mundial. A retórica do racismo, segundo Mbembe, tende a expandir-se para além da epiderme, envolvendo outras formas de diferença em termos culturais ou religiosos. Assistimos ao avanço de um discurso neomalthusiano, alimentado pela fantasmagoria racista.

No sétimo capítulo, “A comunidade dos cativos” (p. 173-200), Mbembe tenta não se deixar levar por um pessimismo paralisante, defendendo uma postura otimista crítica e militante, orientada para o novo, para possibilidades ainda não experimentadas. Ele se nega a aceitar que a diferença e as fronteiras serão a última palavra da humanidade e que o movimento em direção à liberdade chegou ao seu fim. Por mais que nossa origem seja importante, Mbembe defende que o essencial está no trajeto.

Por fim, o oitavo capítulo, “Humanidade potencial e política do vivo” (p. 201-232), é direcionado para a humanidade que pode emergir. Nesse sentido, Mbembe aposta que a África teria algo extremamente valioso a ensinar, algo mágico, que foi esquecido na Europa: a poder que temos de ultrapassar toda origem para fazer aparecer algo radicalmente novo. O pensador camaronês examina, então, a questão da restituição à África de objetos pilhados e levados para a Europa. Não resta dúvida que nada poderá devolver o que foi destruído, segundo Mbembe. Mas, em sua visão, o mais importante no ato de restituir está no estabelecimento de uma nova relação. A restituição é sim um dever e uma obrigação. Mas, para Mbembe, a verdadeira reparação é aquela que participa da restauração da vida. Somos forçados a aprender a viver com essa perda. O que se exige da Europa não é arrependimento, mas sim que assuma seus atos, que honre a verdade e que estabeleça novas relações, tecendo novos laços e trabalhando para um mundo em comum. O olhar do pensador camaronês enfatiza insistentemente o futuro. O importante não é permanecer fiel a si mesmo ou reproduzir uma suposta unidade primitiva. O desafio é tornar-se outro, ultrapassar seus próprios limites e ser capaz de renascer mais uma vez, engendrando sempre novas figuras e outros modos de vida.

O livro de Achille Mbembe é, sem dúvida, uma grande contribuição para pensamos o que se passa no mundo hoje. Ele atende a uma urgência de nosso tempo. Seus argumentos possuem um alcance global e são extremamente relevantes para pensarmos o Brasil atual. O brutalismo, que é outro nome usado para se referir ao processo de “devir negro do mundo”, permite aprofundar, de maneira original, diversos aspectos de nossa experiência contemporânea. Tomado isoladamente, o livro Brutalisme não avança tanto em relação ao que encontramos nas últimas publicações do pensador camaronês. Entretanto, a leitura de todo o ciclo, incluindo Crítica da Razão Negra e Políticas da Inimizade, é uma experiência de grande valor, fundamental para quem deseja ir mais fundo. Para além do diagnóstico de nosso tempo, essa leitura possui ainda uma clara dimensão prática, contribuindo para que possamos assumir a tarefa de nossa época: estabelecer novas relações e ser capaz de renascer, de se tornar outro, caminhando em direção a um mundo em comum e a uma humanidade sem raças.

 

 

MARCO ANTONIO SOUSA ALVES é professor de teoria e filosofia do direito e do estado da Faculdade de Direito da UFMG

 



[1] MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2013. No Brasil, o livro foi publicado em 2018 pela n-1 edições, com tradução de Sebastião Nascimento.

[2] MBEMBE, Achille. Politique de l’inimitié. Paris: La Découverte, 2016. No Brasil, o livro foi publicado em 2021 pela n-1 edições, com tradução de Sebastião Nascimento. Uma versão em português veio a público antes, em 2017, pela editora Antígona de Portugal, com tradução de Marta Lança. A edição portuguesa incorporou o ensaio intitulado “Necropolítica”, que foi alvo de uma publicação separada no Brasil em 2018 pela n-1 edições.

[3] O próprio Mbembe destacou isso em uma entrevista realizada em 25 de janeiro de 2020, poucos dias antes do lançamento do livro, concedida a Sylvain Bourmeau do canal France Culture. Essa entrevista foi traduzida para o português e publicada no dia 17 de agosto de 2020 com o título “Brutalismo do Antropoceno”, disponível aqui: https://racismoambiental.net.br/2020/08/17/brutalismo-do-antropoceno-entrevista-com-achille-mbembe/.

[4] Esse ponto é enfatizado por Mbembe no diálogo que teve com Paul Gilroy no dia 25 de junho de 2020, em um podcast organizado pelo Sarah Remond Centre. Essa conversa recebeu uma tradução para o português, feita por Allan Kardec Pereira, sendo publicada com o título “Uma conversa entre Paul Gilroy e Achille Mbembe: brutalismo, covid-19 e o Afro-pessimismo”, disponível aqui: https://medium.com/@allankardecpereira/uma-conversa-entre-paul-gilroy-e-achille-mbembe-brutalismo-covid-19-e-o-afro-pessimismo-f7708b380d0.

[5] Essa mudança é destacada também por Séverine Kodjo-Grandvaux, na resenha que escreveu para o jornal Le Monde, publicada no dia 9 de fevereiro de 2020, sob o título “Achille Mbembe dénonce le brutalisme du libéralisme”, disponível aqui: https://www.lemonde.fr/afrique/article/2020/02/09/achille-mbembe-denonce-le-brutalisme-du-liberalisme_6028977_3212.html.


Marco Antonio Sousa Alves
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