O livro Brutalisme, do filósofo e
historiador camaronês Achille Mbembe, veio a público na França no dia 6 de
fevereiro de 2020. Ainda sem tradução, a obra deve sair em português pela n-1 edições
em breve. Trata-se de um ensaio ousado, que pretende oferecer uma leitura ampla
e ácida de nosso mundo atual. Essa nova publicação de Achille Mbembe situa-se
no prolongamento das reflexões realizadas anteriormente em Crítica da razão
negra (2013)[1]
e Políticas da inimizade (2016)[2], conformando um ciclo.[3]
No centro da leitura de Mbembe reside a
tese de que vivemos um “devir-africano” ou “devir-negro do mundo”, um processo
de ordem planetária de transformação da humanidade em matéria e energia, assim como
de uma exploração e combustão da Terra. Mbembe defende que a África funcionou
como uma espécie de laboratório do que hoje se passa em praticamente todo o
mundo. O tratamento antes reservado aos “negros” foi estendido, aplicando-se a
todos aqueles que são tomados como “homens-resíduo” ou “homens-lixo” (hommes-déchets).
O título do livro remete a um movimento
arquitetônico de meados do século XX, caracterizado pelo uso aparente do
concreto armado. ‘Brutalismo’ tem sua origem no francês béton brut, que
significa “concreto bruto”. Mbembe, contudo, apropria-se desse termo como uma
categoria eminentemente política, procurando destacar a centralidade da matéria,
do corpo e da energia. Temos, no fundo, uma lógica de extração, destruição, transformação,
produção e combustão, tanto em relação à Terra quanto aos seres humanos.
Mbembe pretende, com o termo ‘brutalismo’,
fazer referência ao momento inédito que vivemos, marcado pela renovação do
neofascismo, pelo esvaziamento da democracia e pelo triunfo do neoliberalismo.[4] No seio do brutalismo,
três racionalidades estão intrinsecamente imbrincadas: a razão
econômica/instrumental (a lógica neoliberal), a razão eletrônica/digital (a
forma computacional) e a razão neurológica/biológica (o processo de
carbonização do vivo). Nossa época, segundo Mbembe, é propensa ao fechamento e
à separação, uma vez que não se acredita mais no futuro. Mas, apesar disso,
podemos perceber em Brutalisme uma postura mais otimista, que aposta na
possibilidade de uma reversão desse processo.[5] Há uma ênfase no “devir”,
que Mbembe retoma das antigas metafísicas africanas.
O livro é dividido em oito capítulos. O
primeiro, intitulado “A dominação universal” (p.31-56), volta-se para o
processo de fabricação de um mundo no qual humano e não-humano formam uma
matéria indistinta, objeto de apropriação, modelação e destruição. Pulsões
violentas são liberadas, sem censura, fazendo com que a desumanização se torne
prática comum e um programa de “faxina” ganhe forma explicitamente. Longe do
diálogo e do esforço de criação de um futuro em comum, prevalece a fantasia de
eliminação do outro. Mbembe critica também as políticas identitárias, vistas
como o novo ópio das massas, que alimentam ainda mais o desejo de diferença e
nos afastam de uma concepção integral do mundo.
No segundo capítulo, “Fraturação” (p.
57-76), Mbembe coloca em questão a nova ordem espacial de dimensão planetária,
com seus fechamentos e fronteiras. A tecnologia computacional permite que hoje
tudo se torne objeto de exploração, por meio de um trabalho de abstração, de
captura e de tratamento automatizado de dados. Novas fronteiras são fixadas por
meio de dispositivos de rastreamento, vigilância e controle, impondo separações
físicas e virtuais. O objetivo, na visão do pensador camaronês, é excluir os
corpos abjetos e as populações consideradas ameaçadoras ou supérfluas, no seio
de um amplo projeto securitário.
No terceiro capítulo, “Animismo e
visceralidade” (p. 77-102), Mbembe explora ainda mais o novo tipo de
inteligibilidade instaurado pelo digital, entendido como um projeto de
conhecimento integral obtido por meio da extração e da análise de dados. Ao
invés de abolir todo mistério, Mbembe ressalta como esse tipo de conhecimento
envolve um retorno espetacular ao animismo e uma liberação das pulsões de todo
tipo de censura, permitindo a disseminação do microfascismo. Somos, assim,
reconduzidos a uma nova economia do encantamento do mundo, conformando as novas
hordas virtuais e o crescente “narcisismo de massa”.
O quarto capítulo, “Virilismo” (p.
103-130), volta-se para a análise do falo e do patriarcado, que conformam um
poder orgástico animado por um desejo de gozo absoluto. Mbembe ressalta o
caráter libidinal de todo poder e analisa a figura da “liberação ao contrário”
presente nos jogos sádicos, ou seja, aquela que acontece às custas do mais
fraco, por meio de sua objetificação. Nesse ponto, é retomada a experiência
colonial e a mistura operada em seu seio de sedução e perversão, explorando
temas como a inveja do harém, a pulsão de ejaculação, o desejo narcísico e o
pânico genital.
No quinto capítulo, “Corpos-fronteira”
(131-150), Mbembe volta o seu olhar para os grandes contingentes populacionais
que passam a ser considerados inúteis, em excesso (en trop), demandando
um controle de seus movimentos e, também, práticas de eliminação. Esses
‘corpos-fronteira” são, essencialmente, corpos racializados que constituem uma
humanidade vista como dispensável e de pouco valor.
O sexto capítulo, “Circulações” (p.
151-172), enfrenta a questão das deportações, do encarceramento e dos controles
que se multiplicam contemporaneamente, no seio de um novo regime securitário
mundial. A retórica do racismo, segundo Mbembe, tende a expandir-se para além
da epiderme, envolvendo outras formas de diferença em termos culturais ou
religiosos. Assistimos ao avanço de um discurso neomalthusiano, alimentado pela
fantasmagoria racista.
No sétimo capítulo, “A comunidade dos
cativos” (p. 173-200), Mbembe tenta não se deixar levar por um pessimismo
paralisante, defendendo uma postura otimista crítica e militante, orientada
para o novo, para possibilidades ainda não experimentadas. Ele se nega a
aceitar que a diferença e as fronteiras serão a última palavra da humanidade e
que o movimento em direção à liberdade chegou ao seu fim. Por mais que nossa
origem seja importante, Mbembe defende que o essencial está no trajeto.
Por fim, o oitavo capítulo, “Humanidade
potencial e política do vivo” (p. 201-232), é direcionado para a humanidade que
pode emergir. Nesse sentido, Mbembe aposta que a África teria algo extremamente
valioso a ensinar, algo mágico, que foi esquecido na Europa: a poder que temos
de ultrapassar toda origem para fazer aparecer algo radicalmente novo. O
pensador camaronês examina, então, a questão da restituição à África de objetos
pilhados e levados para a Europa. Não resta dúvida que nada poderá devolver o
que foi destruído, segundo Mbembe. Mas, em sua visão, o mais importante no ato
de restituir está no estabelecimento de uma nova relação. A restituição é sim
um dever e uma obrigação. Mas, para Mbembe, a verdadeira reparação é aquela que
participa da restauração da vida. Somos forçados a aprender a viver com essa
perda. O que se exige da Europa não é arrependimento, mas sim que assuma seus
atos, que honre a verdade e que estabeleça novas relações, tecendo novos laços
e trabalhando para um mundo em comum. O olhar do pensador camaronês enfatiza
insistentemente o futuro. O importante não é permanecer fiel a si mesmo ou
reproduzir uma suposta unidade primitiva. O desafio é tornar-se outro,
ultrapassar seus próprios limites e ser capaz de renascer mais uma vez,
engendrando sempre novas figuras e outros modos de vida.
O livro de Achille Mbembe é, sem dúvida,
uma grande contribuição para pensamos o que se passa no mundo hoje. Ele atende
a uma urgência de nosso tempo. Seus argumentos possuem um alcance global e são
extremamente relevantes para pensarmos o Brasil atual. O brutalismo, que é
outro nome usado para se referir ao processo de “devir negro do mundo”, permite
aprofundar, de maneira original, diversos aspectos de nossa experiência
contemporânea. Tomado isoladamente, o livro Brutalisme não avança tanto
em relação ao que encontramos nas últimas publicações do pensador camaronês.
Entretanto, a leitura de todo o ciclo, incluindo Crítica da Razão Negra e
Políticas da Inimizade, é uma experiência de grande valor, fundamental
para quem deseja ir mais fundo. Para além do diagnóstico de nosso tempo, essa
leitura possui ainda uma clara dimensão prática, contribuindo para que possamos
assumir a tarefa de nossa época: estabelecer novas relações e ser capaz de
renascer, de se tornar outro, caminhando em direção a um mundo em comum e a uma
humanidade sem raças.
MARCO ANTONIO SOUSA ALVES é professor de teoria e filosofia do direito e do estado da
Faculdade de Direito da UFMG
[1]
MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte,
2013. No Brasil, o
livro foi publicado em 2018 pela n-1 edições, com tradução de Sebastião Nascimento.
[2]
MBEMBE, Achille. Politique de l’inimitié. Paris: La Découverte, 2016. No Brasil, o livro foi publicado em
2021 pela n-1 edições, com tradução de Sebastião Nascimento. Uma versão em
português veio a público antes, em 2017, pela editora Antígona de Portugal, com
tradução de Marta Lança. A edição portuguesa incorporou o ensaio intitulado
“Necropolítica”, que foi alvo de uma publicação separada no Brasil em 2018 pela
n-1 edições.
[3] O próprio Mbembe destacou isso em
uma entrevista realizada em 25 de janeiro de 2020, poucos dias antes do
lançamento do livro, concedida a Sylvain Bourmeau do canal France Culture. Essa
entrevista foi traduzida para o português e publicada no dia 17 de agosto de
2020 com o título “Brutalismo do Antropoceno”, disponível aqui:
https://racismoambiental.net.br/2020/08/17/brutalismo-do-antropoceno-entrevista-com-achille-mbembe/.
[4] Esse ponto é enfatizado por Mbembe
no diálogo que teve com Paul Gilroy no dia 25 de junho de 2020, em um podcast
organizado pelo Sarah Remond Centre. Essa conversa recebeu uma tradução para o
português, feita por Allan Kardec Pereira, sendo publicada com o título “Uma
conversa entre Paul Gilroy e Achille Mbembe: brutalismo, covid-19 e o
Afro-pessimismo”, disponível aqui: https://medium.com/@allankardecpereira/uma-conversa-entre-paul-gilroy-e-achille-mbembe-brutalismo-covid-19-e-o-afro-pessimismo-f7708b380d0.
[5] Essa mudança é destacada também
por Séverine Kodjo-Grandvaux, na resenha que escreveu para o jornal Le Monde,
publicada no dia 9 de fevereiro de 2020, sob o título “Achille Mbembe dénonce
le brutalisme du libéralisme”, disponível aqui: https://www.lemonde.fr/afrique/article/2020/02/09/achille-mbembe-denonce-le-brutalisme-du-liberalisme_6028977_3212.html.