Logotipo do Jornal de Resenhas
José Murilo de Carvalho - 94 - Março de 2003
A guerra da Guerra
Historiador se opõe à visão revisionista da Guerra do Paraguai
Foto da capa do livro Maldita guerra:Nova história da Guerra do Paraguai
Maldita guerra:Nova história da Guerra do Paraguai
Autor: Francisco Doratioto
Editora: Companhia das Letras - 617 páginas
Foto do(a) autor(a) José Murilo de Carvalho

A historiografia da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai passa por momento de bem-vinda renovação, pelo menos no Brasil. Nos últimos anos, vários livros e artigos têm sido publicados, muitos como resultado de teses de doutoramento (1). Outras teses e dissertações cozinham nos formos dos programas de pós-graduação. Em matéria de fontes, ressalte-se, pela riqueza do conteúdo, a coleção de imagens da guerra -fotos, litos, gravuras, óleos, aquarelas- coletadas por Miguel Angel Cuarterolo, publicada em Buenos Aires em 2000, sob o título "Soldados de la Memoria". O uso intenso da iconografia, uma das novidades da recente historiografia, já tinha sido feito também por Mauro César Silveira e André Toral.
No bojo dessa onda de renovação, e como parte dela, foi publicado o livro de Francisco Doratioto. O autor é doutor em história das relações internacionais pela Universidade de Brasília e ensina no Instituto Rio Branco e nas Faculdades Integradas Upis. O texto vem acompanhado de abundantes referências e notas bibliográficas, mapas e ampla iconografia da guerra, além de uma útil cronologia.

Narrativa cronológica
Doratioto destoa da historiografia recente, em geral temático-analítica, ao escrever seu livro no formato tradicional de uma história geral da guerra, oferecendo uma narrativa cronológica, ao estilo de textos clássicos, como o de Tasso Fragoso. Mas o livro distingue-se dos textos anteriores à década de 1960 em pelo menos dois aspectos importantes. Metodologicamente, é muito mais sólido, trabalho de historiador profissional, resultado de vasta pesquisa de fontes primárias, documentado abundantemente em 70 páginas de notas e referências. Substantivamente, foge do viés patriótico da historiografia antiga, brasileira, paraguaia ou argentina, boa parte dela escrita por militares. Exemplo paradigmático dessa historiografia é a "História do Exército Brasileiro", em dois volumes, publicada pelo Estado-Maior do Exército em 1972, em plena ditadura e com finalidade explicitamente propagandística. Tal tipo de literatura não admitia crítica aos chefes militares brasileiros. A primeira edição do livro de Victor Izeckson, feita pela Biblioteca do Exército, sofreu cortes em partes que criticavam Caxias.
Doratioto não oculta os malfeitos, as crueldades, as incompetências, as picuinhas, os preconceitos dos comandantes aliados, sobretudo dos brasileiros, desde que comprovados por evidência documental devidamente identificada. Um dos episódios chocantes da guerra foi a ordem do Conde d'Eu para degolar a sangue-frio o coronel paraguaio Caballero, indignidade rivalizada pela de López, que fez açoitar e arrastar durante dias, até a morte, o irmão, Venâncio López.
A narrativa tradicional não impede que o livro seja polêmico. Ele o é declaradamente. A guerra particular do autor é contra o que se chamou de visão revisionista da Guerra. O revisionismo assumiu no Paraguai a forma de uma reconstrução da figura de López: de ditador autocrático e sanguinário pintado pelos contemporâneos, transformou-se em herói nacional e campeão da luta antiimperialista.
A ditadura paraguaia apropriou-se dessa reconstrução. Na Argentina e no Brasil, o revisionismo centrou-se na interpretação da guerra como derivação do imperialismo inglês, do qual o Brasil era mero instrumento, e na vitimização do Paraguai, acompanhada da satanização dos aliados, o Brasil aparecendo como Belzebu-mor. Os dois principais representantes desse revisionismo, como é sabido, foram León Pomer, na Argentina, com o livro "A Guerra do Paraguai: A Grande Tragédia Rio-Platense", e Júlio José Chiavenato, no Brasil. Durante muito tempo, o livro do último, "Genocídio Americano", de 1979, apesar de ausência de pesquisa documental sólida, tornou-se a principal referência sobre a guerra, inclusive nos cursos de graduação de história. O fenômeno talvez se explique por ter sido o livro uma espécie de antídoto à oficiosa "História do Exército".
No Paraguai, a exaltação de López serviu à ditadura, no Brasil, a satanização da guerra e do comando brasileiro serviu de arma de combate à ditadura. Em nenhum dos casos a história foi servida. A revisão do revisionismo, acompanhada de respeito às fontes, é traço comum da historiografia recente, tanto no Brasil como no Paraguai. Ao escrever uma história geral da guerra dentro desse espírito, Doratioto fornece um excelente texto introdutório que poderá substituir com imensa vantagem, sobretudo nos cursos de graduação, a literatura revisionista.

As razões da Guerra
O ponto central que costura a narrativa de Doratioto é o das razões da Guerra. Em acordo com o ponto de vista que se torna hoje predominante, o autor volta à visão abundantemente corroborada pelos documentos da época: rivalidades nacionais, disputas de poder entre os Estados da bacia do Prata foram as causas do conflito. Na terminologia de hoje, a razão principal da Guerra teria sido a luta pela consolidação dos Estados-nacionais na conturbada região do antigo Vice-Reinado do Prata.
Um Paraguai saído do isolamento a que o condenara Francia e o primeiro López, que procurava se afirmar no cenário regional; uma Argentina com ambições amplas, mas ainda em luta pela unificação nacional, dividida entre Buenos Aires e a Federação; um Uruguai sem condições de se afirmar por suas próprias forças, fazendo um jogo perigoso entre Brasil e Argentina; e um Brasil preocupado em conter o avanço argentino, e refém das pressões dos criadores de gado riograndenses residentes no Uruguai.
No jogo de xadrez que se criou, estranhas alianças se formaram. Aliado natural do Paraguai contra a Argentina, o Brasil se viu ao lado da última contra o primeiro. A rivalidade entre Brasil e Argentina era tão grande que permeou todo o período de luta e continuou após a guerra. Os comandantes da armada brasileira se recusavam a atacar Humaitá, com receio de que Mitre buscasse com isso destruir a esquadra imperial. Para muitos brasileiros e, certamente, para muitos argentinos, a aliança estava toda errada: Brasil e Argentina eram os dois principais inimigos.
A explicação do conflito como consequência das lutas pela consolidação dos Estados nacionais me parece mais adequada para os países platinos. O Brasil em 1865 já era um Estado-nacional consolidado. A guerra teve, a médio prazo, consequências para a estabilidade do regime monárquico, mas não creio que se possa dizer que resultou de qualquer crise. A política intervencionista no Prata inaugurou-se exatamente quando os conservadores consolidaram sua hegemonia no final da década de 40 e se sentiram confiantes para agir no cenário explosivo das repúblicas platinas.
Nesse momento, definiu-se a política brasileira de conter a Argentina via garantia da independência do Uruguai e do Paraguai. A possível discordância de liberais e progressistas em relação a tal política não pode ser interpretada como crise do Estado. No que se refere à questão da escravidão, sem dúvida afetada pela guerra, ela se apresentava no início como forte argumento contra o conflito. Constitui mesmo um enigma o fato de o Imperador ter pedido ao Conselho de Estado em 1867, antes mesmo de se discutir o uso de libertos como combatentes, que apreciasse os projetos de São Vicente relativos à libertação do ventre. O pedido deixou perplexos os conselheiros que achavam sumamente inoportuno, impolítico, na sugestiva expressão da época, discutir assunto tão sério enquanto durasse a guerra.
Sendo uma história geral, Doratioto não aprofunda vários aspectos da Guerra que continuam a exigir maior atenção dos historiadores. Em um desses aspectos, poderia ter avançado mais do que fez. Trata-se da questão do uso de escravos brasileiros como combatentes. Impera nesse assunto grande confusão devida em boa parte a uma questão semântica. Praticamente todos os que se têm dedicado ao tema não fazem distinção entre negro, escravo e liberto, sobretudo entre os dois últimos termos. O exemplo mais gritante da confusão é o do livro de Jorge Prata de Sousa, cujo subtítulo é "Os Escravos Brasileiros na Guerra do Paraguai".
Ora, a primeira frase da introdução diz que a finalidade do livro é estudar a participação dos "negros forros" na guerra. O livro inteiro fala dos libertos enviados à guerra e não de escravos. Doratioto contribui para aumentar a confusão ao falar da participação dos "escravos libertos" na guerra. Ora, liberto não é escravo, foi escravo. O procedimento equivale a dividir os homens entre solteiros e solteiros casados, computando-se os casados como solteiros.

Campanha racista
A legislação exigia a alforria como condição prévia para o engajamento de escravos. Os dados fornecidos por Paulo Duarte falam de uns 4.000 libertos em um total de cerca de 135 mil combatentes, isto é, 3% da tropa. A participação de negros, pardos e mulatos, embora impossível de calcular, era naturalmente muito maior, fato que deu origem à campanha racista dos paraguaios contra os "macacos" brasileiros. Os poucos escravos que foram à guerra o fizeram por terem enganado os oficiais de recrutamento se apresentando como libertos ou livres. Foram talvez esses que alguns proprietários procuraram após a guerra para tentar reavê-los.
Isto significa que não houve combatentes escravos. A questão não é irrelevante. Não era irrelevante para o governo, que estava convencido do perigo e da inconveniência de se exigir de escravos que combatessem pela pátria que não tinham. Também não o era para os libertos. Saber-se livre, lutar talvez ao lado de proprietários, posto que sujeito aos perigos das batalhas, foram fatores que devem ter exercido poderosa influência no ânimo do combatente liberto no sentido de reduzir ou de aumentar sua disposição de luta contra a escravidão. O estudo do impacto da guerra sobre os libertos, capítulo importante das relações entre ela e a escravidão, está ainda por ser feito.
Também faltam ainda análises mais aprofundadas de muitas questões apenas tocadas por Doratioto. A historiografia existente cobre razoavelmente bem o lado militar e político da Guerra, sofrivelmente, a dimensão econômica. A história social da Guerra, no entanto, apenas começa a ser esboçada, cabendo aqui destacar a contribuição original de André Toral. Penso em temas como a vida dos soldados no fronte, o relacionamento com o inimigo, as relações entre praças e soldados, entre livres e libertos, a presença maciça de mulheres, esposas e prostitutas, nos acampamentos, as doenças que afligiam os combatentes -o cólera, as febres, a sarna, a frieira, a gangrena-, a fome que fustigava até as tropas aliadas, o impacto da guerra sobre os combatentes comuns, sobretudo os libertos, ao regressarem a suas famílias. Tudo isso constitui vasto campo de investigação que hoje pode ser feita profissionalmente, mediante a pesquisa de arquivos e a descoberta de novas fontes.
"Maldita Guerra" chama-se o livro de Doratioto, citando expressão usada pelo Barão de Cotegipe. A mesma expressão foi usada por Caxias, que detestou cada momento de seu comando, chocado às vezes pelos "atos vergonhosos" praticados pela tropa. Seguramente, a expressão, falada ou pensada, ocorreu a muitas outras pessoas nos quatro países envolvidos. Foram mais de cinco anos de conflito, marcados por batalhas sangrentas, combates corpo-a-corpo, barbaridades cometidas por todos as partes envolvidas, saques, degolas, fuzilamentos, epidemias, fome. Os aliados perderam cerca de 70 mil homens, 50 mil cabendo ao Brasil. As perdas do Paraguai são impossíveis de estabelecer, tal a divergência dos estudiosos sobre números, que variam entre 18,5% e 70% da população. De qualquer modo, a população masculina adulta foi dizimada.
Ao historiador de hoje cabe perguntar pelas razões que levaram os governos da época, aliados e paraguaios, a levar as populações de seus países a tragédia de tal magnitude, como bem o faz Doratioto, e analisar as consequências políticas, sociais, econômicas, demográficas do conflito. Como cidadão, ele pode talvez consolar-se com o fato de que, hoje, os mesmos quatro países trocaram a guerra pela cooperação dentro do Mercosul, exibindo cada qual suas cicatrizes.

Nota:
1. Vejam-se, por exemplo, os livros de Ricardo Salles, "Guerra do Paraguai: Escravidão e Cidadania na Formação do Exército" (1990); de Mauro César Silveira, "A Batalha de Papel: A Guerra do Paraguai Através da Caricatura"; de Jorge Prata de Sousa, "Escravidão ou Morte"; de Wilma Peres Costa, "A Espada de Dâmocles: O Exército, a Guerra do Paraguai e a Crise do Império" (os quatro de 1996); de Victor Izeckson, "O Cerne da Discórdia: A Guerra do Paraguai e o Núcleo Profissional do Exército Brasileiro" (1997); de André Toral, "Adeus, Chamigo Brasileiro: Uma História da Guerra do Paraguai" (1999); e a coletânea organizada por Maria Eduarda C. M. Marques, "A Guerra do Paraguai 130 Anos Depois" (1995).


José Murilo de Carvalho é professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

José Murilo de Carvalho é professor do departamento de história da UFRJ.
Top