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José Costa Júnior - 121 - Abril de 2022
A luz natural da razão e suas sombras
Foto da capa do livro Irrationality:A History of the Dark Side of Reason
Irrationality:A History of the Dark Side of Reason
Autor: Justin E H Smith
Editora: Princeton University Press - 344 páginas
Foto do(a) autor(a) José Costa Júnior

Quando questionados sobre a nossa principal característica como humanidade, uma resposta comum envolve a racionalidade. Esse traço nos distanciaria das outras formas de vida e explicaria os avanços promovidos pelos humanos, garantindo também expectativas de progresso. No entanto, essa classificação tradicional na qual consideramos a nós mesmos como “animais racionais”, ou como “criaturas especiais” agraciadas com “discernimento” e “sensatez”, pode encontrar dificuldades de se manter quando observamos o cotidiano e a história. Temos dificuldades em avaliar circunstâncias simples, compreender riscos básicos ou pensar em termos de um prazo mais longo. Do ponto de vista histórico, líderes políticos e militares, pautados em decisões questionáveis, impactaram a vida de milhares de pessoas, que muitas vezes apoiaram suas decisões, com ações pautadas não apenas por visões limitadas dos cenários e perspectivas, mas também contraditórias e pouco refletidas por parte dos agentes que as implementaram. Essa tensão permanente entre as expectativas pelas quais nos definimos e o que podemos observar na história e no “mundo da vida” é o motor do ensaio Irrationality: The dark side of reason, publicado em 2019 pelo filósofo americano-canadense Justin E. H. Smith.

Segundo o argumento geral apresentado por Smith nesse longo e reflexivo ensaio, a irracionalidade abarca a maior parte da vida humana, e provavelmente governou a maior parte da história. O autor não oferece uma definição única do termo “irracionalidade”, que capte todas as suas instâncias, mas entende que a melhor maneira de estudar o conceito é a consideração de suas várias instâncias representativas. Assim, o ensaio atravessa diversas situações da experiência humana que envolvem dificuldades e conflitos em relação à “luz natural da razão”, conforme Descartes apresenta essa capacidade em suas Regras para a direção do espírito (publicadas em 1628, alguns anos depois do retorno do filósofo dos sangrentos e irracionais campos de batalha da Guerra dos Trinta anos). Nesse contexto, Smith analisa como até mesmo as próprias tentativas de explorar a racionalidade ao máximo na estruturação e organização da vida humana culminam em explosões de irracionalidade.

Um provocativo exemplo dessa possibilidade é apresentado no prólogo do livro, com uma análise dos relatos sobre morte do filósofo e matemático Hipaso de Metaponto.

Membro da escola pitagórica, que reverenciava a ordenação e a racionalidade dos números refletida na realidade, Hipaso fez a infeliz descoberta dos números irracionais, evidenciando que até mesmo no seio da racionalidade existe a irracionalidade – e por essa descoberta seria assassinado pelos defensores da razão, evitando assim a revelação.

Trata-se de mais um capítulo da “história da racionalidade e de sua irmã gêmea, a irracionalidade: a exaltação da razão, conectada ao desejo de erradicar sua oposta: a inevitável resiliência da irracionalidade na vida humana”. Na concepção de Smith, qualquer triunfo da razão é temporário e reversível e qualquer esforço utópico para estabelecer uma ordem permanente, para desterrar o extremismo, por assegurar uma vida tranquila e confortável para todos os membros de uma sociedade construída sobre princípios racionais está condenado ao fracasso desde o começo. O desejo de impor uma pretensa racionalidade, de tornar as pessoas ou as sociedades mais racionais, se transforma, em regra, em espetaculares explosões de irracionalidade.

Os capítulos do ensaio são temáticos, porém abordam ricas discussões filosóficas que remetem a debates históricos, sem deixar de tocar em temas fundamentais de nosso tempo. Conforme apontando por Smith, o tom crítico à racionalidade não é inédito, porém o livro oferece análises ricas e reflexões importantes, num momento em que esperávamos chegar a conquistas e avanços em diversos aspectos, como a tecnologia e a cidadania, mas que revela frustrações e crises nas fundações mais básicas da estruturação da vida social contemporânea. O livro foi publicado antes da pandemia de Covid-19, porém o autor escreveu um novo prefácio à obra, contextualizando as diversas manifestações de desprezo à razão que observamos nesses tempos difíceis de pandemia – que servem de água para o moinho para a hipótese de Smith. No primeiro capítulo, Smith desenvolve considerações sobre a lógica, sua natureza, limites e contradições. As grandes expectativas que a filosofia grega nutriu pelo logos e por um possível rompimento com o mito mostraram-se ilusórias e as tentativas de construção de leituras da realidade de um ponto de vista estritamente lógico seriam, quando não ingênuas, extremamente limitadas. No segundo capítulo, Smith aborda o que chama de “no-brainers”, uma expressão idiomática do inglês que nos lembra do fato de que não ter cérebro (ou consciência, nesse caso), não impacta o processamento de informações.

Surgem discussões filosóficas aprofundadas sobre a racionalidade ou irracionalidade dos animais e da própria natureza, além de uma análise sobre o “enigma da razão”, essa capacidade naturalmente evoluída, que não garante que possamos encontrar a verdade última da realidade, mas que possibilita a nossa sobrevivência num ambiente muitas vezes estranho e hostil.

No terceiro capítulo Smith oferece uma erudita e reflexiva análise dos sonhos, ou, nas palavras do autor, do “curioso e inquietante fato de que aproximadamente um terço da vida humana transcorre em alucinações delirantes”. Smith visita uma série de abordagens sobre os sonhos e a vida onírica, explorando as tensões e paradoxos que essa ausência de controle oferece à racionalidade. No quarto capítulo são discutidas as possibilidades de construção de mundos oferecidas pela arte, que também envolvem tensões e dificuldades para a “reta razão”, e que são fundamentais para uma vida humana rica em experiências. Smith explora também a divisão das áreas do conhecimento e a separação entre arte e ciência, que limita perspectivas e impede a ampliação de horizontes nas tentativas de ler a realidade. A ciência é o tema do quinto capítulo, no qual o autor retoma o “problema da demarcação” que se impõe a qualquer tentativa de definir o que conta ou não como ciência. Smith aborda algumas das crises contemporâneas no que diz respeito à confiança pública na ciência e como essa tensão estimulou o surgimento de movimentos com concepções estapafúrdias sobre a realidade, mas que possuem peso político e contribuem para o crescimento das dificuldades de nosso tempo.

As esperanças iluministas são o tema do sexto capítulo, no qual o autor revisita fontes históricas e o contexto de suas expectativas e (poucas) realizações. As grandes mudanças promovidas pelas concepções iluministas povoam nossas concepções de sociedade, porém, as contradições das propostas dos filósofos “esclarecidos” ainda demandam revisões e reconsiderações. Uma dessas dificuldades diz respeito ao papel da informação para a construção de melhores sociedades, um “sonho” que poderia ser realizado pela Internet, o tema do sétimo capítulo. No entanto, essa “besta humana”, conforme a descrição de Smith, não apenas oferece informações, mas também dissemina a desinformação, promove ressentimentos, amplia a desrazão e impacta os laços sociais e o funcionamento de nossas já frágeis democracias. O oitavo capítulo trata das piadas e mentiras como desafios à racionalidade, promovendo reflexões importantes sobre a liberdade de expressão e o papel da confiança na construção de sociedades democráticas. Por fim, no último capítulo, Smith trata das dificuldades de se lidar com a morte, ou o “silogismo impossível”, recuperando a história do personagem Ivan Ilitch, escrita por León Tolstói no século XIX, para mostrar os limites da racionalidade nas nossas escolhas, expectativas e ações. Mesmo que repitamos que “todos os homens são mortais” nas aulas de lógica, lembrar da nossa própria mortalidade é um exercício que desafia a razão.

O ensaio de Justin E. H. Smith e a tese que o atravessa – de que a irracionalidade é tão potencialmente danosa como humanamente inextirpável, e que os esforços para a erradicar são por excelência irracionais – pode desagradar as exigências de uma abordagem mais estruturada e organizada em relação a questões filosóficas tão amplas. No entanto, é inegável que se trata de uma obra estimulante e reflexiva, que convida a repensar diversos aspectos e concepções. Serve também como um alerta de que a confiança extrema na razão e suas certezas pode esconder irracionalidades pouco identificadas. Conforme a concepção de Smith, “vivemos um momento de extrema irracionalidade, de fervor e ebulição, de medo e desestabilização.” No entanto, se não somos plenamente racionais, como as expectativas tradicionais apontaram, também não é o caso de sermos unicamente irracionais. Os diversos recursos sociais e técnico-científicos promovidos pela humanidade, construídos a partir de nossas características naturais evoluídas, garantem melhorias na nossa existência que são consideráveis, apesar das tensões envolvidas. O ponto relevante dessas investigações sobre a racionalidade é evidenciar as limitações e dificuldades da nossa capacidade racional, com o objetivo de contribuir para uma compreensão mais acurada daquilo que somos.

Michel de Montaigne, no distante século XVI, também desconfiou da razão e das exageradas expectativas na racionalidade humana e nas perigosas certezas por ela produzidas. No ensaio “Apologia de Raimond Sebond”, Montaigne ofereceu uma definição que nos é útil para considerar os limites e possibilidades da pretensa “luz natural” da nossa razão:

“Dou esse nome de razão a essa aparência de juízo que cada um forja em si mesmo e que a respeito de um mesmo assunto pode levar a cem apreciações diversas e contraditórias, instrumento feito de chumbo e cera, que se estica e dobra e se ajeita a todas as circunstâncias, a todos os compromissos, e que um pouco de habilidade basta para levar a amoldar-se a quaisquer moldes.” (Ensaios, Cap. XII, p. 265)

Assim como Montaigne, Justin E. H. Smith nos lembra em Irrationality: The dark side of reason que as “dobras” e “ajeitos” da razão podem levar para diversos caminhos nas nossas tentativas de compreensão do que somos, como vivemos e o que podemos fazer, inclusive para inesperadas explosões de irracionalidade. Dessa forma, o que nos resta é o cuidado e a reflexão constantes sobre nossa razão, esse paradoxal “instrumento feito de chumbo e cera”.

Referências

MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Coleção “Os Pensadores”. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

SMITH, Justin E. H. Irrationality: A history of dark side of reason. Princeton: Princeton University Press, 2019.


JOSÉ COSTA JÚNIOR é professor de Filosofia e Ciências Sociais do IFMG Campus Ponte Nova


José Costa Júnior
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