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Natalia Maruyama - 121 - Abril de 2022
Adversário ou seguidor
O que a biopolítica tem a ver com a educação do corpo e da alma
Foto da capa do livro Educação e filosofia no Emílio de Rousseau
Educação e filosofia no Emílio de Rousseau
Autor: Thomaz Kawauche
Editora: Unesp - 336 páginas
Foto do(a) autor(a) Natalia Maruyama

Você é meu adversário ou meu seguidor?

Relacionamento entre mestre e discípulo depende mais do exemplo ou do conflito, da imitação ou da disputa? Quantas vezes discordamos de nossos mestres ao invés de segui-los? Essas questões invadem a alma de quem lê atentamente este livro de Thomaz Kawauche.

Até o Apêndice do livro é delicioso. Quando nota que o nome Emílio vem de aemulus, significando rival ou imitador, refere-se em seguida à flexibilidade de um antigo homem da política, Emílio, descrito na obra de Plutarco, obra conhecida de Jean-Jacques Rousseau.

Adaptar-se aos extremos é uma conquista! Enfrentar com sucesso o frio e o calor tornava poderoso o cônsul antigo, Emílio, que tinha o espírito forte e vigoroso, mas sabia humilhar-se diante das adversidades, era poderoso e flexível, não se corrompia nem se orgulhava diante da prosperidade.

É sobre a obra Emílio, de Rousseau, uma espécie de antídoto aos males que a sociedade traz. Educação, livros, pensamentos, discursos. Não basta falar nem ler, é preciso agir.

Somente a luta transforma o mundo.

Lutar como uma mulher? Lutar como um homem? Não, para Thomaz Kawauche, J.-J. Rousseau traz a seguinte dica: “Lutemos como uma criança”.

A criança foi uma descoberta moderna, inventada por Rousseau. O autor explica como.

Publicado em 1762, o Emílio ou Da Educação, foi condenado à fogueira, tanto em Paris como em Genebra. Esta obra tem, sim, pois, aspecto revolucionário.

A proposta de Thomaz Kawauche é trazer elementos para introduzir o leitor perspicaz no pensamento pedagógico moderno. Com este livro, Educação e Filosofia no Emílio de Rousseau, acrescenta ao seu percurso uma história das mentalidades.

Estudioso muito sério da obra de J.-J. Rousseau, Kawauche estende, assim, os horizontes de sua pesquisa, para além da análise conceitual especializada, mostrando as relações entre a filosofia rigorosa e a construção do conhecimento a partir do diálogo.

Com este livro, confirmam-se também qualidades importantes do percurso do autor: discernimento na pesquisa, inquietação com os problemas atuais e sobriedade elegante. Kawauche trata de temas sérios com leveza, e de temas aparentemente triviais – como os jogos, por exemplo – com profundidade.

Dualismos do pensamento moderno ocidental (ser e parecer, natureza e artifício, corpo e alma) são geralmente tratados por este estudioso-filósofo sem fuga dos paradoxos ou medo da obscuridade. E é sempre com muita clareza que trata de todas as questões, mesmo as mais espinhosas, da filosofia de Rousseau.

Entre as ideias de Rousseau para a educação, chama atenção o método negativo, proposto pelo filósofo diante de uma crítica à razão. Com erudição, Kawauche cita vários autores, desde os antigos até a literatura atual, Newton, Locke, Montaigne, Hipócrates...

Em meio a conteúdo tão rico, vasto e complexo, sem o risco de se incorrer em deslealdade a um estudo tão importante como este de Thomaz Kawauche, é possível enfatizar o tratamento da relação entre corpo e moralidade, medicina e filosofia, lançando luz também sobre a leitura da modernidade que faz Michel Foucault. O autor se refere aos dispositivos de controle dos corpos a partir do decoro e do controle da sexualidade.

Trata-se de uma obra importante demais, porque dá conta de vários aspectos do pensamento de J.-J. Rousseau e, principalmente, aponta de maneira elegante tópicos da história da civilização ocidental que se tentou esconder até final do século XX.

Repressão sexual e controle dos corpos compõem as estratégias de poder nesse período da chamada biopolítica. Parece que data de hoje? Já estava lá nas artimanhas dos discursos e ações da ciência, da moral e da política na modernidade.

As matrizes científicas do pensamento pedagógico de Rousseau – a ciência da legislação dos jusnaturalistas, a história natural de Buffon e a teoria do conhecimento de Condillac – são apontadas, para realçar a gênese de suas ideias e invenções. O que perdura na análise de Kawauche, ganhando cada vez mais relevo ao longo do livro, é a relação entre medicina e pedagogia.

A ordem dos capítulos segue a obra estudada, Emílio ou Da Educação. Seu percurso, entretanto, independe desta ordem, que é cronológica. Supõe também uma análise contemporânea, a saber, a da História da Sexualidade, de Michel Foucault, que empresta riqueza e atualidade ao texto de Kawauche.

No contexto das concepções da biopolítica, ao examinar as concepções pedagógicas de Rousseau, este estudo aproxima conhecimento e poder, civilidade e humanidade, controle dos corpos e regras de etiqueta.

Mantém-se fiel às linhas e entrelinhas do texto de Rousseau.

Thomaz Kawauche empreende uma viagem pelas ideias desenvolvidas na obra examinada, mapeando temas e eixos conceituais importantes da época. Há um aspecto que chama atenção: a ênfase nos elementos de sua filosofia que dão sentido às noções de civilidade. Assim, paixões favoráveis à sociabilidade aparecem com maior relevo, tais como a piedade, o sofrimento e a amizade. Como sempre, o estudioso-filósofo não foge dos paradoxos, mantendo do início ao fim de seu texto as tensões conceituais, como a que encontramos entre razão e sentimento, por exemplo.

Trocando em miúdos, o que é que está em questão nesta biopolítica do discurso pedagógico da modernidade?

A educação da criança e do adolescente, tal como propõe J.-J. Rousseau no Emílio, contempla um projeto mais amplo de pensar a emancipação política. Nessa época, a própria noção de indivíduo estava em formação e, junto a ela, culminando na Revolução Francesa de 1789, uma nova concepção de poder.

Kawauche mostra perfeitamente como essa obra de Rousseau impactou para sempre a história das mentalidades, reforçando novas posturas teóricas, enfrentando preconceitos, lançando luz sobre a criança e o homem tal como é, com suas paixões, suas forças e fraquezas.

Ao mesmo tempo em que faz análise interna da obra, o autor a insere no contexto da história da ciência, mostrando a relação entre a pedagogia e a ciência (ou filosofia experimental). Assim, é mérito do autor mostrar que conhecer a alma humana, seus desejos e paixões, requer espírito científico, investigação filosófica e metódica, observação. A base conceitual para essa análise é extraída dos discursos de medicina da época, onde se observa a preocupação com a vida e sobrevivência das crianças.

Os dispositivos de poder atuantes no controle do corpo e da sexualidade da criança e do adolescente amparam-se no discurso médico. A preocupação com a saúde e a sobrevivência da criança justifica a interdição da masturbação, por exemplo.

Repressão sexual, regras de etiqueta, adequação entre cuidados com o corpo e virtude moral, são temas do início da modernidade, mas que perduram. Este livro contribui, assim, para a história das ideias e, de quebra, contribui também para uma melhor compreensão da gênese da biopolítica, concernente à problemática relação entre vida e poder.

Kawauche mostra que a problemática que dá eixo à análise, a do controle dos corpos, já se inicia fortemente na infância: como os dispositivos de controle da sexualidade permitem inserir indivíduos livres nas sociedades políticas?

Sem prejuízo da consciência individual e da liberdade, tratava-se de atuar sobre hábitos e costumes, modelar a mentalidade do indivíduo moderno.

Pensar a educação, nesse contexto, é pensar sobre o que se espera de um indivíduo bem educado, um honnete homme, com boas maneiras, apto para conviver agradavelmente com os outros em sociedade. Por que, então, essa obra de Rousseau foi condenada? Apesar de ter sido condenada, ela perdura. Qual é sua importância histórica? De que modo essa obra contribui para a pedagogia? 

A obra Emílio é um modificador de paradigma na educação.

Porque inventa o conceito de infância, projeta luz sobre o desenvolvimento do corpo, da sexualidade, dos sentimentos e ideias antes da fase adulta. Causa impacto esta invenção de Rousseau, e Thomaz Kawauche traz imagens de época de fetos dentro do útero, sendo representados como adultos, tal é o resultado de suas investigações em obstetrícia.

Há muitas outras ideias interessantes nesse livro.

1. Para evitar as perversões de uma razão sem princípios é preciso seguir a ordem natural de desenvolvimento e aguardar o surgimento das paixões sexuais. Aqui está o segundo nascimento do homem, que nasce uma vez para viver, nasce outra vez, na adolescência, para o sexo.

2. Emílio é educado para seguir a ordem da natureza e as regras de civilidade sem, entretanto, compartilhar de todos os valores da sociedade moderna, ao menos, não sem antes operar uma reflexão crítica. O ideal iluminista está presente também.

3. Para Rousseau a boa educação moral requer um corpo robusto, que auxilia na limitação dos poderes da imaginação e facilita o controle dos desejos.

4. A criança nasce com saúde, é a sociedade que lhe traz a doença. Por se valorizar excessivamente a razão, deixa-se de lado a educação do corpo. Rousseau relaciona os males do corpo aos males da alma. Faz uma espécie de educação medicinal. O educador deve conhecer a história natural das doenças físicas e morais do educando.

5. Relação entre a viagem de Emilio, as instituições políticas e o casamento.

Rousseau dirige a obra para as mães que pensam. O tema é a educação seguindo os preceitos da natureza. Mas o que significa isso? O que significa seguir a natureza em matéria de pensamento filosófico e de educação?

A mulher aparece pouco, é coadjuvante neste estudo. Mas seria interessante finalizarmos mencionando uma figura feminina importante no percurso do autor, a jovem Greta Thunberg. Assimilando-a à personagem Emílio de Rousseau, Kawauche evoca sua luta pela conservação do meio ambiente. Chama atenção o final de um texto seu em rede social:

Eu, como professor de filosofia, poderia estar pregando "marxismo cultural" ou criticando neonazistas de ocasião.

No entanto, estou aqui para dizer que Greta Thunberg é minha esperança para adiar o fim do mundo.

Espero com essas glosas ter contribuído, senão para melhorar nosso Brasil de hoje, ao menos para indicar uma ótima leitura que, seguramente, tem relevância na história da educação, da filosofia e das ciências.


Natalia Maruyama
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