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Augusto Massi - 72 - Março de 2001
Ai de ti, Trevisan
Foto da capa do livro Revista Joaquim
Revista Joaquim
Autor: Dalton Trevisan e outros
Editora: Imprensa Oficial do Paraná 0
Foto do(a) autor(a) Augusto Massi

Pô cara, está fazendo a praça de novo? Me disseram que você tomou as livrarias de assalto. Resolvi dar uma folheada na mercadoria. É muamba das boas. Finalmente alguém conseguiu te convencer a reeditar a revista "Joaquim". Aqueles 21 números publicados mensalmente entre abril de 1946 e dezembro de 1948. Rato de sebo, eu jamais havia batido o olho num numerozinho. A revista parecia uma ficção. Me perguntava: seria outro de teus mistérios? Agora sim, todos os volumes, em edição fac-similar, foram reunidos numa bela caixa. Trata-se de um breve capítulo da vida intelectual brasileira. Arquivo vivo.
Soube também que você lançou dois livrinhos de contos: "O Grande Deflorador" e "111 Ais". Eles não trazem material inédito. Na realidade, são duas antologias organizadas criteriosamente pelo autor. A editora infelizmente omitiu essa informação que, em função do seu método de trabalho, é sempre do maior interesse. Tem mais, há um livro inédito no prelo: "Pico na Veia". Tudo somado, é inevitável que você volte a ser o centro da conversa. Cinquenta e poucos anos separam a revista "Joaquim" do novo livro anunciado. Nesse arco de tempo, você conseguiu construir uma das obras mais coerentes e radicais da literatura brasileira. Ô cara, sem essa de agradecer as palavras doces e generosas. Afinal, são 30 títulos nas costas. Trinta disparos à queima roupa contra as convenções literárias. Você sabe: "Um bom conto é pico certeiro na veia".
Apelo então ao profeta raivoso de Curitiba, residente à rua Ubaldino, nº 666, só um dedinho de prosa? Queria começar falando da forte impressão que me causou a leitura de "Joaquim". Folheando as páginas da revista foi possível recompor o campo de batalha, avaliar as forças que estavam em jogo e de que lado você se alinhou. No plano estadual, ao que tudo indica, a estratégia era atacar sistematicamente todas as formas de provincianismo. De saída, no segundo número, você assinou aquele célebre artigo "Emiliano, Poeta Medíocre". O efeito foi arrasador, pulverizando a reputação oficial e a retórica parnasiana de Emiliano Perneta. Já em âmbito nacional, o objetivo era defender até o fim as posições conquistadas pelos modernistas.

O modernismo de "Joaquim"
É curioso observar como todas as discussões estavam ancoradas no conceito de geração, podendo sugerir equivocadamente, ao leitor de hoje, um requentado conflito entre velhos e moços por um lugar ao sol. Uma leitura atenta aponta para a atmosfera cultural opressiva do pós-guerra, cujo enfrentamento ideológico iria adquirir mais tarde uma configuração política acirrada entre forças reacionários e progressistas. "Joaquim" manifestou uma adesão nada doutrinária ao projeto modernista.
Em outras palavras, sua filiação não se caracterizou por influência ou assimilação direta, mas deu-se no âmbito de uma orientação crítica, de uma postura intelectual afinada com o ideário moderno. A tarefa não era pequena. E não foi à toa que o então jovem e notável crítico de rodapé, que hoje atende pelo nome de Antonio Candido, ao comparar "Joaquim" com duas outras publicações da época - "Edifício", de Belo Horizonte, e "Magog", do Rio de Janeiro-, afirmou: "A de Curitiba vem de onde tudo parece estar por fazer, devendo os rapazes despender a maior parte da sua energia em derrubar os fósseis e educar o gosto dos leitores. Por isso, talvez, seja a mais irreverente e heróica".
Pô, cara, dá gosto de ver como a revista reuniu um turma de primeira: Mário de Andrade (prosa e perfil), Manuel Bandeira (poema inédito), Carlos Drummond de Andrade (poemas e artigo), Murilo Mendes (entrevista), Oswald de Andrade (prosa inédita), Vinicius de Moraes (traduções e poemas) e Aníbal Machado (poema inédito). Como se não bastasse a presença da comissão de frente do modernismo, dois figurões atacados frontalmente eram inimigos históricos do movimento: Monteiro Lobato ("O Terceiro Indianismo", por Dalton) e Gustavo Corção ("O Reacionarismo de Gustavo Corção", por Waltensir Dutra). Do ângulo externo, chama a atenção a voga quase hegemônica do existencialismo francês, prenunciada pela presença ostensiva e tardia de André Gide (único autor a ser contemplado com um número especial), presentificada pela tradução de textos de Sartre e, finalmente, de Kafka (pela via da literatura do absurdo).
Desde o início, "Joaquim" estava decidida a ser uma "revista mensal de arte". Foram contemplados o teatro (Racine, Eugene O" Neill), a arquitetura (Oscar Niemeyer), a música (Koellreuter), a filosofia (Merleau-Ponty e -inacreditável- o jovem Jean-François Lyotard). O cinema que sempre foi uma de suas paixões (dizem que você é admirador do Fellini, Bergman e Woody Allen), só entrou nos últimos números. Mesmo assim, por meio da revista, fiquei sabendo da existência de um Clube de Cinema de Curitiba, criado em agosto de 1948, do qual Carlos Scliar era o presidente de honra, e você, um dos conselheiros.

Os gravadores
Mas, dentre as manifestações artísticas, coube à gravura um papel central. A começar pelo corpo editorial que contou com Poty, Guido Viaro, Gianfranco Bonfanti, Yllen Kerr e Renina Katz. Em diferentes momentos, todos contribuíram com capas, ilustrações, entrevistas, artigos e até traduções. O ponto alto dessa parceria foi o número 19, inteiramente dedicado à gravura. E nesse ponto a participação do seu velho amigo, o já morto Poty, foi decisiva. Além de ser o elo de ligação entre os gravadores conseguiu viabilizar tecnicamente a revista. Agora só resta lembrar: "Guido Viaro, uma rua barulhenta de Curitiba. Mestre Poty, uma praça Tiradentes às cinco da tarde, florida de mocinha, maníaco sexual, pombo branco em revoada. E eu, mal de mim, esse perdido beco sem saída atrás da Catedral".
Meu velho, estou tomando seu tempo? Peço um pouco mais de paciência... falta comentar duas coisinhas. Primeiro, o contista não se deixou engolir pelo burocrata; mesmo centralizando as tarefas da redação, a cada número pingava um continho inédito. Segundo, se "Joaquim" foi uma das maneiras que você encontrou para projetar seu nome além dos muros altos da província, também representou a criação de um espaço literário que beneficiou outros escritores, entre eles não posso deixar de lembrar o poeta e amigo José Paulo Paes. Em alguma medida, penso que as novas gerações -Paulo Leminski, Alice Ruiz, Cristovão Tezza, Josely Vianna Baptista, etc.- também colheram os frutos maduros da sua militância contra o provincianismo. Quando entraram em cena, o terreno já estava carpido, os cadáveres enterrados. "Joaquim" é uma espécie de irmão maior do "Nicolau". Quantas vezes os críticos não alardeiam o teu silêncio, o teu isolamento, a tua falta de participação da vida literária! "Joaquim" é uma boa resposta.
O que acabei de contar acima é a pré-história do jovem escritor Dalton Trevisan. Você afirma que sua verdadeira estréia literária só ocorreu com a publicação de "Novelas Nada Exemplares" (1959), dez anos após a aventura de "Joaquim". Com esse livro você deu início a uma trajetória das mais radicais, criando pouco a pouco um sistema pessoal.
A visão de conjunto da sua obra revela um progressivo amadurecimento, um coeso enriquecimento de temas e técnicas que, aliados à profunda consciência formal, resultaram em autênticas obras-primas: "Cemitério de Elefantes" (1964), "O Vampiro de Curitiba" (1965) e "A Guerra Conjugal" (1969). Este último foi levado ao cinema por Joaquim Pedro de Andrade.
Não sei não, pode até ser que eu esteja enganado, mas "Abismo de Rosas" (1976) inaugura uma nova etapa em sua obra. Os contos assumem um aspecto serial, permitindo múltiplas leituras e diferentes combinações. O aperfeiçoamento dessa técnica de montagem e remontagem culmina no romance "A Polaquinha" (1985). Paralelamente, você submeteu as histórias a uma poderosa redução e imprimiu um caráter marcadamente fragmentário. Os enredos passaram então a formar uma ampla e complexa rede de micronarrativas. Dito de outro modo, as histórias se ramificaram, intensificando a condição dialógica de cada texto no interior do livro. Isoladas, as frases adquiriram a autonomia lírica e cortante de um poema.
Nesse processo de redução estrutural a vida social se transforma em texto. Os personagens, cada vez mais confinados, trancafiados no pequeno espaço de uma frase, são paulatinamente submetidos a novas reduções, mal pulam de uma página à outra, não conseguem escapar do enredo tirânico. Boa parte da sua originalidade está justamente em descobrir infinitas possibilidades de corte. Você nunca se repete. Insiste em driblar maliciosamente as cicatrizes. Há em seus livros algo da violenta antologia de fatos que disputam um espaço na primeira página do jornal, as brutais migrações assinaladas no mapa urbano e seus bolsões de pobreza, o afunilamento dos labirintos que estreitam mortalmente as suas paredes. Essa lógica opressiva reitera a condição social de seus personagens que se fundem no beco sem saída da miséria moral e do anonimato. Para usar suas palavras: "No teu labirinto a única saída é o ventre do Minotauro".

Mistura dos gêneros
Esse realismo rebaixado pode dar a ilusão de que há anos você vem escrevendo o mesmo conto, repisando velhos clichês, repetindo tipos e temas. Pensando bem, diria que os críticos, esses sim, estão se repetindo. Apesar da fama crescente, do imenso prestígio, existem pouquíssimos estudos dedicados ao conjunto da sua obra. Dentre eles cabe destacar o precursor "Do Vampiro ao Cafajeste" (1982), de Berta Waldman, leitora e intérprete de todas as horas. Recentemente, é preciso destacar as atiladas microleituras da "Biblioteca Trevisan" (1996), de Miguel Sanches Neto. Anteriormente, o mesmo autor já havia se debruçado sobre o único romance de Dalton em "O Artifício Obsceno - Visitando a Polaquinha" (1994). É graças a ele, autor da tese de doutorado "A Reinvenção da Província" (sobre a relação de "Joaquim" com outras revistas regionais) e hoje à frente da Imprensa Oficial do Paraná, que devemos essa edição fac-similar. Fora esses trabalhos, temos alguns ensaios importantes escritos por Fausto Cunha, José Paulo Paes e Wilson Martins.
Cara, a sua literatura tem mudando bastante. As novidades são gritantes. Desde as ministórias de "Ah, É?" (1994), o minimalismo irônico do título já diz tudo, você entrou no seu terceiro surto criativo. Cá entre nós, cara, na sua idade, o normal é o escritor sofrer uma cristalização do estilo. O seu caso é justamente o oposto. Por exemplo, em "Dinorá, Novos Mistérios" (1994), você baralha as fronteiras textuais, envereda pela mistura dos gêneros e acaba criando uma espécie de conto-ensaio: "Capitu sem Enigma", uma resposta à leitura de Roberto Schwarz; "Esaú e Jacó", uma crítica restritiva ao último Machado; em "Um Conto de Borges", você faz bom uso do que Carlo Ginzburg, denominou paradigma indiciário. O detetive Trevisan retorna ao local do crime e descobre um deslize do mestre argentino.
Quer mais? Nos últimos trabalhos, você promove uma reatualização dos costumes e da nova ordem familiar: mulheres divorciadas, homossexuais, filhos de pais separados, a tipinha etc. No lugar dos bêbados do "Cemitério de Elefantes", irrompem os drogados de "Pico na Veia".
Pô, cara, quantas coisas ainda precisam ser estudadas. Guardadas as diferenças, existem tantos pontos em comum entre as suas histórias e as crônicas de "A Vida como Ela É...", do Nelson Rodrigues. Em ambos, a Ilíada doméstica, a guerra conjugal, o adultério, a velhice, as taras dos personagens, a crônica policial, a oralidade urbana, a profunda admiração por Dostoiévski, o cotidiano apequenado da classe média etc. As semelhanças também podem lançar uma luz esclarecedora sobre as diferenças. Nelson Rodrigues está para a psicologia (Freud) assim como você para a sociologia (Marx).
Precisa mais? E a sua influência sobre a dicção poética de Chico Alvim? Ele aprendeu a fazer poema por telefone com você: linha cruzada, fio de conversa, engano. Alguém arrisca um palpite, de quem é?: "Se eu fui feliz no casamento?/ Só nos três primeiros dias./ Depois aquele inferno que dura até hoje". O leitor me desculpe, não resisto, outra charadinha: "Ia te dizer uma coisa/ Me esqueci/ arrumando o armário/ achei aquele seu pijama/ Você volta aqui?".
Digo isso porque leio você cada vez mais como poeta: a violência dos cortes, as elipses, a notação do silêncio, a frase solta no ar -são recursos que um poeta moderno traz no bolso. Você é um batedor de frases admirável. Espião à espreita. Pô, cara, com você até o canto da corruíra fica sob suspeita. Faz das tripas Trevisan. Saudações paulistanas. Sem mais, tô fora.

Augusto Massi é poeta e professor de literatura brasileira na USP.
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