Ruy Fausto presta um importante serviço ao debate político lúcido com
seu livro Caminhos da esquerda. A partir da constatação de que há em
curso, no Brasil e no mundo, uma “formidável ofensiva” da direita, o autor
interpela as esquerdas patológicas quanto à responsabilidade que tiveram e têm
nessa ofensiva. Seriam três as patologias que acometeram em maior ou menor grau
muitos dos movimentos de esquerda nos últimos cem anos: totalitarismo, adesismo
reformista e populismo. A primeira patologia teria caracterizado uma esquerda
mais radical, identificada com o stalinismo e quejandos; a segunda marcou a
trajetória, por exemplo, do “cardosismo”, da esquerda que se converte em seu
oposto, anulando-se em benefício do status quo; a última identifica,
embora de maneira sui-generis, o PT tardio. O que o autor pretende com
essa tipologia é dissociar o projeto original da esquerda daqueles que, desde a
Primeira guerra mundial, representaram-na em total alienação de suas pautas
mais autênticas: “igualdade, liberdade, solidariedade, respeito mútuo entre
cidadãos e governantes, justiça social”; trata-se, portanto, de defender uma
esquerda que seja, por um lado, independente e infensa a todo totalitarismo, a
todo adesismo, a todo tipo de laxismo na administração pública; e, por outro,
comprometida intransigentemente com a democracia, com uma governança avessa à
corrupção, com o anticapitalismo – sendo porém menos contrária ao Estado ou à
propriedade privada e, mesmo, à propriedade privada dos meios de produção, do
que à neutralização do grande capital: “ele não pode entrar em qualquer lugar e
o seu peso tem de ser limitado” – e com
uma pauta ecológica com vistas a equacionar os problemas do efeito estufa e dos
riscos inerentes ao emprego da energia nuclear. Por não fornecer munição aos
adversários, uma esquerda assim independente, democrática, não corrupta, não adesista
e comprometida com pautas ambientais, seria bastante mais eficaz que as patológicas
em combater as piores mazelas do capitalismo neoliberal, ou seja, a
desigualdade, o desemprego, a pobreza e a destruição do meio-ambiente. Com
efeito, na arguta análise que faz tanto dos discursos ideológicos da direita
quanto daqueles da esquerda, Ruy Fausto torna evidente o nexo entre as patologias
da esquerda e a dita ofensiva da direita.
Feito o diagnóstico, impõe-se excogitar o projeto de uma esquerda
independente. Mediante um discurso racional e comprometido com a verdade, essa
esquerda ganharia, primeiro, os setores esclarecidos, os desorientados e os
hesitantes da classe média, contingente em geral simpático às ideias da esquerda,
mas avesso às das esquerdas patológicas nacionais; em seguida, alcançaria as
camadas mais baixas da população, as bases dos movimentos sociais – urbanos e
rurais – e dos sindicatos. Esse projeto envolveria reformas econômicas e
políticas.
1- Reformas
econômicas: anticapitalista, porém contrária ao comunismo e à abolição do
Estado e da propriedade privada, a esquerda independente buscaria neutralizar o
grande capital por meio da restauração do Estado de bem-estar social à maneira
keynesiana e da fundação de uma sociedade democrática, organizada
economicamente em regimes cooperativos a conviver com o Estado e com alguns
capitais não-hegemônicos. Mais especificamente, a pauta econômica envolveria uma
reforma tributária que onerasse por meio do imposto de renda os mais
favorecidos em alívio aos menos favorecidos, anulando o atual mecanismo
ilegítimo de transferência da riqueza nacional pública para os mais ricos; que
tributasse lucros e dividendos de acionistas enquanto pessoas físicas; que
combatesse a sonegação fiscal; que aplicasse menor imposto sobre o consumo
ordinário e maior sobre o de artigos de luxo; que sobretaxasse, finalmente,
heranças e transmissões de bens. A verba de monta proveniente dessas medidas
seria direcionada para educação e saúde públicas. Para além da reforma
tributária, uma reforma do Estado faria dele acionista majoritário nas grandes
empresas, exigidas transparência, estruturação democrática e competência
técnica; quanto às pequenas, organizar-se-iam cooperativamente, com
participação de funcionários e consumidores na direção dos negócios. Reformas
agrária e urbana seriam consumadas, porém sem violências contra particulares.
2- Reformas
políticas: uma democracia representativa, matizada por algum grau de
participação direta, consubstanciaria, internamente, a independência do
processo político contra o exercício do poder econômico desmesurado e,
externamente, uma diplomacia independente e altiva, intransigente com regimes
totalitários ou populistas e respaldada na defesa dos interesses nacionais por
forças armadas imbuídas de espírito democrático e progressista. Ainda do ponto
de vista político, assumir-se-ia uma agenda ecológica favorável às energias
renováveis e contrária ao uso de energia nuclear ou fóssil.
Conservar o Estado, alguma forma de mercado e, mesmo, a propriedade
privada equivale a inverter a fórmula marxista segundo a qual o comunismo seria
visto como necessidade histórica; para Fausto, a história não caminha na nossa
direção: pelo contrário, da revolução poderão advir novas formas de regressão,
e a isso é preciso estar atento. Nesse sentido, o comunismo é que seria
utópico, ao passo que o projeto esboçado em Caminhos da esquerda - sem
prejuízo das justificadas críticas a fazer ao capitalismo e às consequências do
grande capital: desigualdade, desemprego e ameaça ambiental - seria realista,
possível e contingente. Além de apontar para a importância de uma nova
filosofia da história para bem fundamentar seu projeto, Ruy Fausto não deixa de
sugerir caminhos tanto para uma nova economia política quanto para uma nova
antropologia. Naquele caso, trata-se de substituir a teoria marxista da
mais-valia, mas, não, por exemplo, a ideia de que a riqueza do capitalista não
se legitima pelo seu trabalho, porquanto ela se autonomize de todo trabalho,
vez que nasce do próprio capital em desobediência ao modelo de “circulação
simples”; neste, de postular uma antropologia que não seja nem otimista, nem
pessimista, que, sem deixar de pautar tendências altruístas, não evite
reconhecer os reclamos do “individuismo” e, mesmo, do egoísmo individualista.
O que se depreende da leitura é que o livro de Ruy Fausto prima pelo
compromisso com a tolerância, com a verdade e com o ideário de uma esquerda lúcida,
democrática e ética, não apenas porque ciente dos seus limites e de suas
perversões patológicas possíveis, mas, sobretudo, porque ancorada em um projeto
nacional de autonomia política perante os interesses do grande capital e de uma
direita destrutiva e imoral.
LUIS FABIO GUERRA SPIRA é doutorando do
departamento de filosofia da USP