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Luis Fábio Guerra Spira - 119 - Abril de 2021
As patologias da esquerda
Totalitarismo, adesismo reformista e populismo
Foto da capa do livro Caminhos da esquerda
Caminhos da esquerda
Autor: Ruy Fausto
Editora: Companhia das Letras - 208 páginas
Foto do(a) autor(a) Luis Fábio Guerra Spira

Ruy Fausto presta um importante serviço ao debate político lúcido com seu livro Caminhos da esquerda. A partir da constatação de que há em curso, no Brasil e no mundo, uma “formidável ofensiva” da direita, o autor interpela as esquerdas patológicas quanto à responsabilidade que tiveram e têm nessa ofensiva. Seriam três as patologias que acometeram em maior ou menor grau muitos dos movimentos de esquerda nos últimos cem anos: totalitarismo, adesismo reformista e populismo. A primeira patologia teria caracterizado uma esquerda mais radical, identificada com o stalinismo e quejandos; a segunda marcou a trajetória, por exemplo, do “cardosismo”, da esquerda que se converte em seu oposto, anulando-se em benefício do status quo; a última identifica, embora de maneira sui-generis, o PT tardio. O que o autor pretende com essa tipologia é dissociar o projeto original da esquerda daqueles que, desde a Primeira guerra mundial, representaram-na em total alienação de suas pautas mais autênticas: “igualdade, liberdade, solidariedade, respeito mútuo entre cidadãos e governantes, justiça social”; trata-se, portanto, de defender uma esquerda que seja, por um lado, independente e infensa a todo totalitarismo, a todo adesismo, a todo tipo de laxismo na administração pública; e, por outro, comprometida intransigentemente com a democracia, com uma governança avessa à corrupção, com o anticapitalismo – sendo porém menos contrária ao Estado ou à propriedade privada e, mesmo, à propriedade privada dos meios de produção, do que à neutralização do grande capital: “ele não pode entrar em qualquer lugar e o seu peso tem de ser limitado”  – e com uma pauta ecológica com vistas a equacionar os problemas do efeito estufa e dos riscos inerentes ao emprego da energia nuclear. Por não fornecer munição aos adversários, uma esquerda assim independente, democrática, não corrupta, não adesista e comprometida com pautas ambientais, seria bastante mais eficaz que as patológicas em combater as piores mazelas do capitalismo neoliberal, ou seja, a desigualdade, o desemprego, a pobreza e a destruição do meio-ambiente. Com efeito, na arguta análise que faz tanto dos discursos ideológicos da direita quanto daqueles da esquerda, Ruy Fausto torna evidente o nexo entre as patologias da esquerda e a dita ofensiva da direita.

Feito o diagnóstico, impõe-se excogitar o projeto de uma esquerda independente. Mediante um discurso racional e comprometido com a verdade, essa esquerda ganharia, primeiro, os setores esclarecidos, os desorientados e os hesitantes da classe média, contingente em geral simpático às ideias da esquerda, mas avesso às das esquerdas patológicas nacionais; em seguida, alcançaria as camadas mais baixas da população, as bases dos movimentos sociais – urbanos e rurais – e dos sindicatos. Esse projeto envolveria reformas econômicas e políticas.  

1-      Reformas econômicas: anticapitalista, porém contrária ao comunismo e à abolição do Estado e da propriedade privada, a esquerda independente buscaria neutralizar o grande capital por meio da restauração do Estado de bem-estar social à maneira keynesiana e da fundação de uma sociedade democrática, organizada economicamente em regimes cooperativos a conviver com o Estado e com alguns capitais não-hegemônicos. Mais especificamente, a pauta econômica envolveria uma reforma tributária que onerasse por meio do imposto de renda os mais favorecidos em alívio aos menos favorecidos, anulando o atual mecanismo ilegítimo de transferência da riqueza nacional pública para os mais ricos; que tributasse lucros e dividendos de acionistas enquanto pessoas físicas; que combatesse a sonegação fiscal; que aplicasse menor imposto sobre o consumo ordinário e maior sobre o de artigos de luxo; que sobretaxasse, finalmente, heranças e transmissões de bens. A verba de monta proveniente dessas medidas seria direcionada para educação e saúde públicas. Para além da reforma tributária, uma reforma do Estado faria dele acionista majoritário nas grandes empresas, exigidas transparência, estruturação democrática e competência técnica; quanto às pequenas, organizar-se-iam cooperativamente, com participação de funcionários e consumidores na direção dos negócios. Reformas agrária e urbana seriam consumadas, porém sem violências contra particulares.

2-      Reformas políticas: uma democracia representativa, matizada por algum grau de participação direta, consubstanciaria, internamente, a independência do processo político contra o exercício do poder econômico desmesurado e, externamente, uma diplomacia independente e altiva, intransigente com regimes totalitários ou populistas e respaldada na defesa dos interesses nacionais por forças armadas imbuídas de espírito democrático e progressista. Ainda do ponto de vista político, assumir-se-ia uma agenda ecológica favorável às energias renováveis e contrária ao uso de energia nuclear ou fóssil.

Conservar o Estado, alguma forma de mercado e, mesmo, a propriedade privada equivale a inverter a fórmula marxista segundo a qual o comunismo seria visto como necessidade histórica; para Fausto, a história não caminha na nossa direção: pelo contrário, da revolução poderão advir novas formas de regressão, e a isso é preciso estar atento. Nesse sentido, o comunismo é que seria utópico, ao passo que o projeto esboçado em Caminhos da esquerda - sem prejuízo das justificadas críticas a fazer ao capitalismo e às consequências do grande capital: desigualdade, desemprego e ameaça ambiental - seria realista, possível e contingente. Além de apontar para a importância de uma nova filosofia da história para bem fundamentar seu projeto, Ruy Fausto não deixa de sugerir caminhos tanto para uma nova economia política quanto para uma nova antropologia. Naquele caso, trata-se de substituir a teoria marxista da mais-valia, mas, não, por exemplo, a ideia de que a riqueza do capitalista não se legitima pelo seu trabalho, porquanto ela se autonomize de todo trabalho, vez que nasce do próprio capital em desobediência ao modelo de “circulação simples”; neste, de postular uma antropologia que não seja nem otimista, nem pessimista, que, sem deixar de pautar tendências altruístas, não evite reconhecer os reclamos do “individuismo” e, mesmo, do egoísmo individualista.

O que se depreende da leitura é que o livro de Ruy Fausto prima pelo compromisso com a tolerância, com a verdade e com o ideário de uma esquerda lúcida, democrática e ética, não apenas porque ciente dos seus limites e de suas perversões patológicas possíveis, mas, sobretudo, porque ancorada em um projeto nacional de autonomia política perante os interesses do grande capital e de uma direita destrutiva e imoral.

LUIS FABIO GUERRA SPIRA é doutorando do departamento de filosofia da USP

 


Luis Fábio Guerra Spira
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