Logotipo do Jornal de Resenhas
Ricardo Fabrini - 45 - Dezembro de 1998
As utopias e o canibal
Foto do(a) autor(a) Ricardo Fabrini

As utopias e o canibal

RICARDO FABBRINI

As publicações "Núcleo Histórico" e "Representações Nacionais", que correspondem a segmentos da Bienal atual, não são catálogos -pois não se limitam a listar, de modo protocolar, as obras expostas-, mas livros bem editados que reúnem vários textos de curadores. Em "Representações", temos 54 artistas e 43 curadores, da Alemanha à Venezuela, da pintura à instalação. Não são, contudo, anais de Bienal, atas de obras, mas ensaios de crítica de arte, moderna e contemporânea. No volume "Núcleo Histórico", temos interpretados os toques torcidos de Van Gogh, os mistérios de Magritte, as figuras descarnadas de Giacometti, a carne envilecida de Bacon e os punhos cerrados de Siqueiros; e, entre os brasileiros, a festa construtiva de Volpi, o solo solar de Tarsila, as capas aladas de Oiticica e os trepantes traquinas de Lygia Clark.
O "Núcleo Histórico" fixou o eixo conceitual da exposição, das obras, salas e segmentos: a antropofagia e o canibalismo. Este eixo -pois o "ponto de partida foi o Brasil", como esclarece o presidente da Bienal na apresentação- visa a interpretação da arte moderna e contemporânea, vanguardista e pós-vanguardista, brasileira e internacional. A Bienal inventariou e distribuiu aos artistas e curadores do segmento "Representações Nacionais" uma listagem com o título provisório de "95 entre 1.000 formas de antropofagia e canibalismo".
Se a precisão dos conceitos curatoriais pode torná-los prescritivos, limitando as atividades de curadores e artistas, sua abertura excessiva pode descaracterizá-los. Essa ampliação do sentido dos termos, mesmo sabendo que estes operam como figuras, ou seja, com sentidos variáveis, elásticos, próprios aos tropos, desconectou-os até mesmo da modernidade artística. E mesmo sua diferenciação -"antropofagia como tradição cultural brasileira" e "canibalismo como prática simbólica, real ou metafórica da devoração do outro"- não os torna operativos na interpretação de todo passado ou presente artísticos exibidos na mostra. Até a cor, o branco sobre branco de Malevitch, foi tingido pela curadoria que o apresentou como devorador de todas as cores.
No "Manifeste Cannibale", de Francis Picabia (1920), e no "Manifesto Antropófago", de Oswald de Andrade (1928), há uma mesma retórica do choque, manifestada na agressão verbal e em imagens violentas, próprias ao espírito de ruptura das vanguardas heróicas. A imagem do canibal que circulava nos modernismos europeu e brasileiro é inseparável do imaginário vanguardista -da busca de uma nova linguagem artística e da crença que a arte pode transformar o mundo.
A antropofagia, como fusão do originário com o novo, permite interpretar outros momentos da cultura brasileira, como o neo-antropofagismo da tropicália e do tropicalismo dos anos 60 e 70, mas derrapa na interpretação da arte pós-vanguardista dos anos 80 e 90. Fora da marcha das utopias, o canibal descarna-se: sem horizonte utópico, enfraquece-se como imagem conceitual. Como a revolução política e a revolução estética não integram o imaginário do artista atual, alimentar-se da antropofagia indica restauração, como saudade de uma projeção de futuro. Afastada a utopia moderna (como o matriarcado oswaldiano), a arte atual, destituída da força que se quis subversiva das vanguardas, opõe-se, contudo, ao presente, na denúncia do chauvinismo, do machismo, dos efeitos da informática, da crise da narrativa etc.
O curador-geral propôs aos curadores, além do eixo antropofágico, o conceito de "densidade". Segundo o "Ensaio de Diálogo", que abre a publicação, a "densidade do olhar" se efetiva na contaminação entre as obras, sem sacrifício, contudo, do "peso específico de cada representação", como cuida o curador. Evitou-se, por isso, a sala nacional, ou a sala com o cubo branco, que fincam fronteiras não apenas geográficas, mas também artísticas. As obras não foram reduzidas a espécimes arquivados. Eliminou-se, com proveito, uma classificação puramente estilística, numa recusa das histórias da arte de viés positivista. Desta abertura conceitual, entretanto, resultaram tantos precedentes e paralelos que desorientam o observador. Este passa de uma obra a outra, de um artista a outro, de uma época a outra, do Brasil ao mundo, sem um único passo; basta-lhe uma escorregadela do olhar. Alguns dos "diálogos", no "Núcleo", são produtivos, como o "paralelo" entre Lygia Clark e Eva Hesse; outros improdutivos, porque literais, como o "diálogo" entre o Freud adocicado de Viktor Muniz e o dadá de Picabia, ou entre o "TaCaPe" de Cildo Meireles que, nada capeta, adorna, anedótico, a "Dança Tarairu" de Albert Eckout.
Em "Representações Nacionais", destaca-se a produção da América Latina e Caribe. Neste caso, não se seguiu a regra, segundo a qual cada curador, curado pelo corpo diplomático de seu país, e orientado pelos conceitos curatoriais da Bienal, escolhe seu artista. Virginia Pérez-Ratton, autora do ensaio mais vigoroso desta publicação, após rastrear a produção de 12 países, indicou seus representantes, concedendo-lhes em troca da indicação um amplo espaço comum na exposição. Nas obras escolhidas há uma discórdia unânime entre o imaginário primitivista e os grãos de luz das imagens tecnológicas. Neste caso, também, estamos distantes do "homem natural tecnizado" de Oswald, se recuperarmos sua retomada da antropofagia, na "Crise da Filosofia Messiânica", nos anos 50. A resistência crítica destes artistas, que não renunciam aos poderes de negação da arte, não mira a devoração ou a revolução, mas o convívio das diferenças étnicas e culturais no contexto internacional da atualidade.
A cultura antropofágica é uma idéia reguladora, mitopoética, deliberadamente utópica, um sinal de inconformismo e um prenúncio de revolta, que agenciou na modernidade a crítica da sociedade, da história e da cultura brasileiras. As culturas primitiva e popular, por sua vez, que ressurgem nas apropriações destes artistas, não são mitos transformadores, mas práticas culturais em seus países: a veste de algodão dos caçadores de Mali; a pintura corporal, o ritual de caça, de guerra ou de conquista na Costa Rica; a vida cotidiana em Santo Domingo, na República Dominicana, ou entre os índios chocoe no Panamá.
Sem ceder à idealização do passado nacional, vários destes artistas confrontam tais práticas com o mundo dito globalizado, veiculando-as em linguagem eletrônica. A técnica não simboliza aqui a libertação do trabalho material, à Oswald, mas a ameaça de indigência social e econômica. Não se trata no imaginário destes artistas, imaginado por Pérez-Ratton, de conquistar o "ocium cum dignitate", mas de participar dos negócios, simbolizados pelas novas tecnologias, preservando, entretanto, sem estereotipias, as tradições locais, para que se evite o ócio como exclusão. Estes artistas não investem na Idade do Ouro, retrojetada num passado imemorial, mas na preservação da consciência e do passado históricos, em tempo de capital volátil. Esta Bienal, mais multicultural que canibal ou antropofágica, em "Representações" permite conhecer efetuações simbólicas na arte do presente, e suas relações com o passado moderno; no "Núcleo Histórico", percorrer sem rota regida obras desta mesma modernidade, como a cor reveladora da luz de Reverón; e por fim, finda a mostra, rever estas obras em livros de merecida vida longa.



A OBRA
24ª Bienal de São Paulo - Catálogos da Mostra
Fundação Bienal de São Paulo (Tel. 011/574-5922) Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismo 560 págs., R$ 50,00 Representações Nacionais 299 págs., R$ 30,00



Ricardo Nascimento Fabbrini é professor do departamento de filosofia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e autor de "O Espaço de Lygia Clark" (Atlas).

Ricardo Fabrini é professor do departamento de filosofia da USP.
Top