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Irlemar Chiampi - 63 - Junho de 2000
Atahualpa e o breviário
Foto do(a) autor(a) Irlemar Chiampi

Atahualpa e o breviário

O Condor Voa - Literatura e Cultura Latino-Americana
Antonio Cornejo Polar
Mario Valdés (org.)
Tradução: Ilke Valle de Carvalho
Editora UFMG (Tel. 0/xx/31/499-4652)
332 págs., R$ 26,40

IRLEMAR CHIAMPI

O crítico literário peruano Antonio Cornejo Polar (1936-1997) esboçou a teoria das "literaturas heterogêneas" no fim dos anos 70, desenvolvendo-a sempre em estudos concentrados no indigenismo andino. Originalmente, essa categoria remetia aos discursos que se forjam na duplicidade ou pluralidade de signos socioculturais: o autor e o leitor (letrado, culto, que escreve/lê em espanhol) pertencem ao universo europeizado, enquanto o referente é o universo indígena, pré-hispânico, oral.
Com ótimo aparato haurido na filologia ameríndia e hispânica, essa formulação pretendia explicar os dilemas da linguagem da crônica sobre a conquista da América e estender-se apenas a setores precisos da literatura latino-americana, como o negrismo caribenho, o romance nordestino brasileiro, o realismo maravilhoso, a gauchesca. Entretanto, ao ser engolfada no debate dos anos 90 sobre as culturas subalternas -principalmente com a repercussão da teoria pós-colonial de Homi Bhabha, a partir da releitura de Franz Fanon-, sofreu sutis deslocamentos conceituais e adaptações, feitos inclusive pelo próprio autor, visando rediscutir a questão da identidade cultural da América Latina pela heterogeneidade social.
Como Martin Lienhard, com as "literaturas alternativas", e Miguel León Portilla, com a "visão dos vencidos", Cornejo Polar parte da descoberta da realidade multicultural latino-americana, marcada pelos confrontos do contato e trânsito de signos. Diversamente, porém, suas sugestões para a historiografia literária convergem para a discussão da legitimidade do cânone da literatura latino-americana, assentada na "ocidentalidade".
O ponto decisivo consiste em objetar o conceito de literatura nacional como concepção teleológica que articula momentos preparativos (as obras) de um evento (a constituição do ser nacional, o "espírito do povo"). Os ensaios sobre a literatura do século 19 evidenciam a rota desse substancialismo, desvelando como a proposição de sequências unilineares dos fatos literários no romantismo excluem outros sistemas (por exemplo, das literaturas populares em línguas nativas), privilegiando o sistema culto, em espanhol, com vistas a inventar uma tradição "criolla", de raiz hispânica. Consegue com isso discutir a validade epistemológica do critério de unidade, mostrando-a como "constructo" ideológico dos nacionalismos hispano-americanos, em perspectiva que rejeita a sequência "unilinear, supressora e perfectiva", que alinha épocas, períodos e gerações num tempo único e abstrato, ditado pelo progresso.
Mas pretenderia Cornejo Polar apenas uma história aplanada numa longa enfiada de textos, selecionados apenas pelo seu conteúdo etno-sócio-histórico? E como seria "latino-americana" uma história dessas? Entendo que esse ponto crucial obrigou Cornejo Polar a repensar a questão da heterogeneidade nos anos 90, deslocando-a do âmbito da produção do texto (relação autor/leitor/referente) para o da relação ampliada, de contextualização histórica e cultural: de que modo os textos indígenas se posicionam perante a temporalidade dos textos ocidentalizantes e vice-versa.
Essa posição, bem mais complexa, começa por descartar como insuficientes os dualismos (cosmopolitismo versus regionalismo, moderno versus arcaico), e termina por rejeitar qualquer hipótese de conciliação pelas mesclas e mestiçagens. A boa história literária da América Latina seria aquela que mostrasse os sujeitos etnicamente dissímiles, as racionalidades confrontadas, os imaginários incompatíveis. As nossas literaturas seriam discursos da ressemantização de formas e conteúdos alternativos, sim, mas para significar sua radical diferença com as formas ocidentais. Para o crítico peruano, os fenômenos de diglossia e bilinguismo, os efeitos de oralidade, as "azarosas zonas de alianças", contatos e contaminações permitem a copresença de vários tempos, sem fusão.
Apesar de Cornejo Polar demorar-se em obras de Jorge Icaza ou Manuel Scorza, as melhores ilustrações dessa tese nunca ocorrem com esses escritores indigenistas menores, mas com os que trazem o conflito para o plano da linguagem, como ocorre com o Inca Garcilaso de la Vega, que trouxe o neoplatonismo ao mundo quéchua. Ou com José María Arguedas, cuja narrativa opera com os mitos pré-hispânicos, a modernidade experimental e o barroco, em convivência conflitiva que ressalta a espessura histórica dessa heterogeneidade de vários tempos.
O projeto crítico de Cornejo Polar foi desenvolvido em tensão constante entre a questão étnica da conquista da América e o "ideologema" da mestiçagem, que alimentou o sonho da identidade cultural da América Latina no século 20. Depois dos anos 60, quando os intelectuais abandonam a busca da identidade -mas ainda usufruem os efeitos do "boom" do romance hispano-americano- , descobrem que a diversidade e não a unidade nos caracteriza, que a nossa polifonia é discordante e não conciliadora, que somos incoerentes e fragmentários. Para sair da modernidade, a teoria crítica tem preferido substituir o termo "mestiçagem" por "hibridação" (conforme García Canclini) ou "transculturação" (conforme Angel Rama, retomando Fernando Ortiz, de 1940); mas, em suas objeções à imprecisão e inadequação desses termos, Cornejo Polar quis recusar sempre as idéias de síntese e unidade do subalterno com o hegemônico. Preferiu assumir a "heterogeneidade não dialética" para sustentar a diferença que não se resolve na unidade de um grande relato sobre a identidade.
A imagem de Atahualpa, na tarde de 16 de fevereiro de 1532, recebendo o breviário cristão das mãos de frei Valverde, em Cajamarca, retorna insistentemente nesses ensaios para explicar o nosso dilema: o inca, sem poder ouvir o que estava escrito, atira o livro ao chão e justifica para as autoridades coloniais a sua execução. Essa cena primordial, da supremacia da letra sobre a voz, é a figuração paradigmática da violência original que marcou para sempre nossa origem. As literaturas heterogêneas contam e recontam infinitamente essa história.


Irlemar Chiampi é professora de literatura latino-americana na USP e autora de "Barroco e Modernidade -Ensaios sobre Literatura Latino-Americana" (Perspectiva).

Irlemar Chiampi é professora de literatura latino-americana da USP.
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