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Ricardo José de Almeida - 121 - Abril de 2022
Caminhos tortuosos
Um mergulho na realidade escondida por trás das “verdades” que repetimos
Foto da capa do livro Travessia: De banqueiro a companheiro
Travessia: De banqueiro a companheiro
Autor: Eduardo Moreira
Editora: Civilização Brasileira - 144 páginas
Foto do(a) autor(a) Ricardo José de Almeida

A jornada contida nessa travessia não se define ou se inicia num desenho bem calculado de roteiro, ou numa pesquisa com objetivos claros e delimitados, mas nos anseios de um espírito inquieto, ávido pelo conhecimento de si mesmo e de experiências reais de um universo recém-descoberto. Homenageado pela Rainha Elizabeth II, eleito um dos três melhores economistas do Brasil, melhor aluno do Curso de Economia nos últimos 15 anos pela Universidade da Califórnia, sócio-fundador da gestora de recursos Plural Capital e ex-sócio do Banco Pactual, o ser do meio financeiro empreende em peregrinação edificada por valores humanos de concepção simples sólida no propósito e virtuosa na intenção. Intensa pela própria natureza a travessia torna-se ao leitor material instigante, envolvente e provocativo, de conteúdo denso e extremamente elucidativo àqueles menos atentos à ordem social instituída no Brasil.

Leonardo Boff é assertivo em todo o seu prefácio, primordialmente ao enfatizar a generosidade do autor, que entre outros adjetivos se mostra um visionário, ao resgatar o significado de empreendedorismo, termo soterrado pelo modismo falacioso e superficial de um discurso fraudulento. Uma leitura mais crítica pode sinalizar uma escrita extremamente pragmática e objetiva, fato que facilmente se justifica, dada a urgência embarcada na mensagem que vibra nas narrações do autor.

Entre colocações pertinentes e condizentes com os preconceitos e estigmas enraizados na expressão mais pura da opinião pública brasileira, o autor inicia o livro reforçando o espírito questionador e inquieto ao descrever o processo de autodesenvolvimento, e de como quebrou os próprios preconceitos, na busca por um propósito maior, um caminhar que revelou para ele o sentido da própria vida.

Imerso na práxis dos assentamentos e acampamentos do MST, quilombos, aldeias indígenas ou comunidades do sertão nordestino, o autor lida e testemunha episódios intensos de tirania, opressão, intolerância, injustiça e covardia extrema. Ainda assim,consegue extrair de tais episódios respostas que denotam nobreza e retidão dos mais castigados por esta violenta realidade. Ao longo da travessia, como todo insurgente, o autor passa de espectador a alvo dessa violenta realidade. No sexto capítulo, “do limão uma limonada”, o autor humildemente compartilha mais uma incrível experiência, onde o domínio emocional e a coragem são insumos de uma alquimia genial capaz de transformar o veneno mortal dos covardes em miraculosa panaceia. Protegida pelo anonimato das redes sociais, a milícia digital investe numa tentativa frustrada de desconstruir a figura do ativista empenhado em denunciar o genocídio praticado contra indígenas em Dourados-MS. Objeto de ameaças covardes e manobras ardis para desacreditá-lo perante a opinião pública, o autor responde com firmeza aos ataques e ameaças dirigidas a si, reverte o quadro de acusações e, na mesma ação, possibilita e organiza uma corrente solidária que resulta na arrecadação de mais de meio milhão de reais para o povo indígena de Durados. Os poderosos meios de divulgação investidos inicialmente em incitar nos moradores de Dourados repulsa ao autor foram muito bem-sucedidos em distribuir informações distorcidas. Atingiram grande volume de pessoas, o que, em contraponto, ajudou na disseminação da verdade vivida pelos indígenas. Quando o autor trouxe luz à verdade, utilizando os mesmos canais de distribuição das calúnias para reforçar a denúncia do sofrimento imposto àquele povo, as crueldades e privações a que são submetidos ampliaram o engajamento na campanha de socorro ao povo indígena de Dourados, fazendo ultrapassar de forma assustadora a previsão inicial de arrecadação.

Parte da complexa mecânica do mercado financeiro é simplificada pelo autor no oitavo capítulo. Fazendo uso de exemplo didático e esclarecedor, traduz para a companheira do acampamento . Fica então exposta a trágica relação entre força produtiva e capital especulativo. A partir desse exercício surge o desenho de uma operação financeira improvável que reuniu profissionais experientes do mercado financeiro e representantes do MST. O objetivo dessa operação foi captar recursos com custo inferior ao praticado no mercado, para financiar a ampliação dos meios de produção num assentamento do MST no Rio Grande do Sul. Uma operação financeira com grande transparência, de propósitos primordialmente sociais, relegando assim aos rendimentos um lugar de consequência e não de objetivo primário. De partida é esperada pelos concorrentes que operam pelos meios tradicionais e órgãos reguladores alguma resistência no processo de regulamentação e viabilização dessa operação.

Cuidadosamente desenhada para estrear num mercado tradicionalmente predatório, a operação cujo objetivo é custear o MST colide diretamente com os interesses corporativos, porém a resistência anteriormente imaginada fomentou a criatividade e energia necessárias para levar ao sucesso um projeto inédito, ambicioso, inovador e inevitável. Pelos mecanismos tradicionais, o investidor raramente conhece as iniciativas que seus recursos estão financiando, pois nesse caso o rendimento, prazo e risco da operação são colocados como fórmula única para a escolha do melhor investimento. Dar clareza ao propósito do investimento em relação ao objeto financiado, entre outros benefícios, garante ao investidor o direito à responsabilidade sobre aquilo que está financiando. Empresas frigoríficas recebendo recursos de investidor vegano, ou pacifista investido na fabricação de produtos bélicos, são exemplos caricatos, porém prováveis no modelo praticado pelo mercado financeiro tradicional. Transparência do negócio que se opera é indissociável da ética e reflete diretamente na sustentabilidade do mesmo. Integrar fatores sociais, ambientais e de governança é uma tendência que se constata por recortes da imprensa especializada, quando mostra o crescimento exponencial da busca por produtos ESG¹. O que enquadra o Finapop no padrão dos produtos financeiros sustentáveis.

Os caminhos tortuosos pelos quais o autor percorre em sua travessia escancaram a injustiça das mãos covardes que conduzem nosso país, terra singular em beleza e riquezas naturais. Revelam também a coragem e generosidade de seu povo mais humilde, sem deixar de provocar reflexões dolorosas e humilhantes nos leitores, espectadores perplexos de uma realidade perversa. Um soco no estômago, como frisa o autor. A dor que faz curvar, para o viajante foi propulsora do propósito de buscar por um mundo mais justo.


RICARDO JOSÉ DE ALMEIDA é pós-graduando do departamento de filosofia da USP


[1] ESG é uma sigla em inglês que significa environmental, social and governance, e corresponde às práticas ambientais, sociais e de governança de uma organização. O termo foi cunhado em 2004 em uma publicação do Pacto Global em parceria com o Banco Mundial, chamada Who Cares Wins. Surgiu de uma provocação do secretário-geral da ONU Kofi Annan a 50 CEOs de grandes instituições financeiras, sobre como integrar fatores sociais, ambientais e de governança no mercado de capitais. Na mesma época, a UNEP-FI lançou o relatório Freshfield, que mostrava a importância da integração de fatores ESG para avaliação financeira. Já em 2006, do PRI (Princípios do Investimento Responsável), que hoje possui mais de 3 mil signatários, com ativos sob gestão que ultrapassam USD 100 trilhões – em 2019, o PRI cresceu em torno de 20%. (https://www.pactoglobal.org.br/pg/esg, consultado em 06/03/2022)


Ricardo José de Almeida
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