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Jorge Mattos Brito de Almeida - 87 - Julho de 2002
Compositor dialético
Foto do(a) autor(a) Jorge Mattos Brito de Almeida

Compositor dialético

Harmonia
Arnold Schoenberg
Tradução, introdução e notas de Marden Maluf
Ed. Unesp (Tel. 0/xx/11/3242-7171)
580 págs., R$ 65,00

JORGE DE ALMEIDA 

Há uma enorme diferença entre ser autodidata por escolha ou por obrigação. A escolha possibilita o conforto de um diletantismo inconsequente, enquanto a coerência forjada pela obrigação torna inevitável a luta contra a teimosia do academicismo dogmático. No caso de Arnold Schoenberg, um compositor para quem a arte não era uma questão de "eu posso", mas de "eu devo", o desconforto do autodidata esteve presente desde a recepção de suas primeiras obras. Basta lembrar que o sexteto "Verklärte Nacht", composto em 1899, teve sua execução recusada por uma importante sociedade de concertos, sob a justificativa de que a partitura trazia um acorde invertido de nona, "o que não existe".
Como os paladinos da teoria tradicional insistiam em condenar as novidades formais e harmônicas presentes em peças como os "Gurre-Lieder" e a "Sinfonia de Câmara", Schoenberg se incumbiu de uma tarefa aparentemente contraditória: escrever uma obra didática com o objetivo de ensinar a impossibilidade de aprender, por meio de uma abordagem meramente teórica, as regras fundamentais da harmonia.
Esse esforço deu origem ao livro "Harmonielehre" (ou simplesmente "Harmonia", como preferiu o tradutor brasileiro), publicado em 1911 e dedicado a Gustav Mahler, outro compositor perseguido pelos doutos professores do Conservatório de Viena.
O prefácio resume o sentido da intenção pedagógica da obra: "Este livro, eu o aprendi de meus alunos". Autodidata, o professor cobrava de alunos como Alban Berg, Anton Webern e Hans Eisler não a capacidade de aprender, mas a de ensinar. Um bom exemplo desse método paradoxal pode ser encontrado no livro que seus discípulos publicaram em 1912, como homenagem ao mestre. Entusiasmado por ter conseguido harmonizar de maneira extremamente complexa uma canção que havia acabado de compor, Karl Linke ouviu do professor uma incômoda pergunta: "O senhor não adicionou essa figura posteriormente, apenas para vestir o esqueleto harmônico, da mesma forma como se colam fachadas na parede dos edifícios?".
Diante da resposta afirmativa, Schoenberg demonstrou que a melodia exigia um acompanhamento mais simples, já que o emprego de meios artísticos modernos dificilmente poderia ser justificado. A lição daquela aula tornou-se o lema de toda uma geração: "a música não deve enfeitar, mas sim ser verdadeira".

Plataforma de uma geração
Nesse mesmo sentido, Adolf Loos denunciava o ornamento como "crime", Kandinsky abandonava a figuração em busca da "forma correta" e Karl Kraus polemizava em defesa de uma "linguagem purificada". Esses três autores, presenças constantes na obra e na vida de Schoenberg, também ressaltavam o teor moral e político do ideal da expressão artística rigorosa. Por isso a crítica contundente à "comodidade como concepção de mundo", que afastaria o aluno e o ouvinte da seriedade e concentração necessárias para, em um mundo falso, encontrar a verdade que algumas obras de arte ainda poderiam, a duras penas, expressar.
Mas como conciliar essa busca pela "verdade imanente da obra singular" com o aprendizado de práticas e procedimentos de harmonia, que envolvem necessariamente recomendações, proibições e regras gerais? Essa questão, que transparece em vários momentos do livro, aponta para a aporia cristalizada no conceito de "sentimento da forma", recuperado da estética romântica por Schoenberg.
Diante das dificuldades de cada compasso, a subjetividade do compositor se confunde com a objetividade da forma na "fantasia exata" necessária para a expressão musical da verdade: "Ao compor, decido-me somente através do sentimento, por meio do sentimento da forma. Este me diz o que devo escrever, e tudo o mais fica excluído. Cada acorde que estabeleço corresponde a uma obrigação, a uma coação de minha necessidade expressiva; mas também, talvez, à constrição de uma lógica inexorável, ainda que inconsciente, da construção harmônica". Não é por acaso que Theodor Adorno atribui a Schoenberg o epíteto de "compositor dialético".
Mas essa dialética também é parte fundamental da intenção pedagógica das lições de harmonia. Em vez de simplesmente enumerar modelos e esquemas, Schoenberg incentiva o aluno a compor desde o primeiro momento, ainda que partindo de frases simples. Nesse sentido, a teoria da harmonia é apresentada como uma prática, cujo objetivo principal não é a análise de obras consagradas, mas sim a composição de primeiros esboços bem-sucedidos.
O ideal do aprendizado do ofício supera a mera pretensão teórica: "Ao diabo com todas essas teorias, se servem apenas para colocar freios ao desenvolvimento da arte e se seu único dado positivo é ajudar mais depressa a compor mal". Assim, em contraposição às chamadas "leis artísticas", as grandes obras vivem das exceções, que jamais são imediatamente incorporadas à teoria tradicional. Prova disso é a enorme dificuldade de lidar com os chamados "sons estranhos à harmonia". A solução de Schoenberg para esse problema, e para tantos outros, reflete o ideal de "simplicidade profunda" que suas peças também se esforçam em alcançar: "Não existem sons estranhos à harmonia, pois harmonia significa simultaneidade sonora".

A historicidade da música
Em oposição à teoria tradicional, que pretendia ver no sistema tonal a expressão de "leis naturais", Schoenberg ressalta a historicidade dos fundamentos da harmonia. Partindo do todo de cada obra e da perspectiva história de uma evolução dos procedimentos compositivos, o mestre autodidata dissolve as oposições rígidas da teoria acadêmica, pondo em questão distinções consideradas eternas: "As expressões consonância e dissonância, usadas como antíteses, são falsas. Tudo depende, tão-somente, da crescente capacidade do ouvido analisador em familiarizar-se com os harmônicos mais distantes". Nesse sentido, Schoenberg recusa também a habitual separação entre "pensamento melódico" e "pensamento harmônico", cristalizada na obra de August Halm, "As Duas Culturas da Música".
A dialética aqui é evidente: "O mais certo é que os princípios melódicos não somente influenciaram vigorosamente, como muitas vezes até mesmo determinaram o desenvolvimento das harmonias; e o mesmo pode ser dito dos princípios harmônicos em relação ao desenvolvimento das possibilidades de condução das vozes".
A idéia de uma contínua expansão do material musical retorna como justificativa e incentivo para a busca de novas sonoridades, desde que coerentes e "verdadeiras" em relação ao todo: "O que hoje é distante, amanhã pode ser próximo; é apenas uma questão de capacidade de aproximar-se. A evolução da música tem seguido esse curso: incluindo, no domínio dos recursos artísticos, um número cada vez maior de possibilidades de complexos já existentes na constituição do som". Mesmo as interdições, na medida em que são historicamente determinadas, podem ser superadas pela própria evolução da história da música. O exemplo dado por Schoenberg é o das sucessões de oitavas e quintas paralelas, que, justamente por terem sido evitadas durante séculos, acabaram adquirindo um sentido de "novidade".
Os leitores do "Doutor Fausto", de Thomas Mann, devem reconhecer aqui alguns temas fundamentais do livro. Na verdade, Schoenberg ficou furioso com a utilização não citada de suas idéias, explicadas ao escritor por Adorno no exílio americano. A nota que acompanha a segunda edição do romance tenta desfazer o mal-estar, mas deixa claro que, mescla do compositor Adrian Leverkühn e do professor Kretzschmar, o personagem Schoenberg não era menos polêmico. Quem finalmente quiser entender a famosa aula sobre a última sonata de Beethoven, capítulo fundamental do livro de Thomas Mann, deve ler as lições sobre o acorde de sétima diminuta, um dos pontos centrais do brilhante tratamento dado por Schoenberg à questão da modulação.
Ainda uma vez a historicidade do acorde se faz presente, mas agora como tragédia: "Tornou-se banal! Não o era por natureza; era rígido e brilhante, mas hoje é usado somente nessa literatura musical infame, que sempre chega atrasada, macaqueando o que outrora foi sucesso na grande arte".
A terceira edição das lições de harmonia, publicada em 1921, já traz no novo prefácio e em algumas revisões as marcas do desenvolvimento da música de Schoenberg nesse período. Em plena "fase atonal" (termo que, diga-se de passagem, o compositor recusava como completo absurdo), Schoenberg ensinava ao aluno "que as condições para a dissolução do sistema tonal estão contidas já nas próprias condições sobre as quais este se fundamenta". Mas isso não significava, entretanto, o abandono imediato do tonalismo: "A evolução da música ainda não alcançou um estágio em que se possa falar da eliminação da tonalidade".
O problema crucial, na época, era a sobrevivência da própria noção de "obra orgânica". Como garantir a coesão formal sem o auxílio dos fundamentos tonais? Em peças como "Pierrot Lunaire" e "Erwartung", o texto propiciava a base da unidade que mais adiante, a partir de 1923, seria buscada na técnica de composição dodecafônica. Os últimos capítulos do livro apontam para as possibilidades futuras no âmbito da harmonia, com o elogio da melodia de timbres e exemplos retirados das obras de Webern, Schreker, Bartók e Berg.
As lições de harmonia de Schoenberg permanecem fundamentais tanto para o estudante de música quanto para o ouvinte que recusa a "comodidade" da audição passiva, mesmo que o ideal do "artesanato" tenha mais pressupostos estéticos do que o compositor gostaria de assumir. Como aprender a compor corretamente uma cadência, se não há mais sentido em compor cadências? Nesse sentido, o discurso contemporâneo que invoca a plena disposição dos meios tem muito a aprender com as lições do mestre: "A capacidade de expressar-se certamente não depende da espécie e da quantidade de meios artísticos colocados à disposição. Mas a incapacidade sim".


Jorge M.B. de Almeida é professor de teoria literária e literatura comparada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Jorge Mattos Brito de Almeida professor de teoria literária e literatura comparada da USP.
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