De viva voz
DAISY WAJNBERG
O filme "Farenheit 451", de François Truffaut, encerra-se na terna imagem de um bosque onde caminham dispersos alguns homens. Eles são os depositários dos últimos livros que restaram de uma sociedade autoritária, capaz de queimar todo o conhecimento produzido até então. Cada um escolheu o "seu" livro e o memoriza cuidadosamente. Saber de cor -isto é, no coração- é recuperar aquilo que da letra se liga à corrente pulsante do corpo. Eles são os seus livros e os transmitem no calor da voz aos seus descendentes.
Paul Zumthor é, justamente, um desses homens que dedicou sua vida e obra ao retorno dos valores da voz viva. A publicação de "Introdução à Poesia Oral" permite-nos o acesso a um dos seus mais importantes trabalhos. Medievalista de prestígio, poeta e romancista, Zumthor nasceu em Genebra, em 1915, ensinou em várias universidades européias e americanas, estabelecendo-se finalmente no Canadá, onde lecionou literatura comparada na Universidade de Montreal até a sua morte aos 80 anos, em 1995.
Zumthor é um medievalista "sui generis". Seu interesse passa por uma ampla gama de assuntos, não só por aqueles tradicionalmente ligados ao tema da oralidade, como os estudos etnológicos de onde provêm grande parte da coleta dos textos orais. Ele examina com a mesma atenção uma obra medieval famosa como a "Chanson de Roland" e os fenômenos mais atuais da comunicação de massas, entre eles a indústria fonográfica, o rádio, o cinema e a televisão. Observa tanto as situações mais tradicionais de comunicação oral, quanto a recuperação da dimensão oral num saber como o psicanalítico. Volta-se para os cantos ligados à semeadura dos povos africanos, mas também para os megaespetáculos de rock. Assim, pode ser descrito como um medievalista não tradicional, portador de uma curiosidade que o atira em diversas direções, com um frescor sempre renovado.
Não se trata de uma nostalgia com relação ao que chamou de valores da voz viva, que teriam se perdido com o avanço inexorável da escrita. Ao contrário, sua obra -moderna- volta-se para as hibridizações, produtos mistos em que se entrelaçam escrita e oralidade, circuitos de ida e volta de um a outro destes campos, assinalando a presença do oral e das suas encenações nos textos criados pelas mídias.
Essa forma de trabalho -que podemos chamar de fragmentária por excelência- atinge seu ápice no último de seus livros "Babel ou l'Inachèvement" (Seuil, 1997), publicado postumamente. Nesse projeto, que ocupou sua vida inteira, mas permaneceu inacabado para sempre, temos a metáfora de toda a sua obra. Pois nas particularidades mesmas da poesia oral -movente, de um nomadismo radical, capaz de se recombinar provisoriamente em lugares e tempos diversos, de uma corporeidade marcada pelo instante fugaz e irrepetível da performance- é que lemos o seu fascínio pelas formas do inacabamento.
No primeiro capítulo de "Introdução à Poesia Oral", ele se opõe com energia a uma arqueologia textual limitadora, esgrimindo contra noções vagas como as de "folclore" ou "cultura popular", que acabam por afirmar apenas um preconceito da cultura letrada frente a uma literatura que obedece a outros parâmetros, certamente não primitivos ou rudimentares. Numa advertência perante a facilidade de categorias estanques e dicotomias redutoras, Zumthor assinala: "Entre o real vivido e o conceito, se estende um território incerto, semeado de recusas, de impotências, de nem/verdadeiro, nem/falso, uma mistura intelectual de objetos oferecida aos "bricoladores', que foge a qualquer tentativa de totalização. Inversamente, o conceito, para se constituir, exige a abolição das presenças devoradoras, estes monstros que o matarão. No meio dessas incertezas, cabe a vocês jogar e gozar: o jogo e o gozo valem a pena".
Gozo da voz -há uma encantação que excede as palavras na voz que diz. Energia sem figura, ritmo puro que surge "revestido de trapos de verbo, vertiginoso, vertical, jato de luz: tudo aí se revela e se forma. Tudo: simultaneamente o que fala, aquilo de que se fala e a quem se fala", como frisa o autor. Mas não apenas o som está implicado aqui. Também o jogo de corpo, a cena que se oferece ao olhar, na ginga do gesto, da mímica da piscada de olho ao brilho dos adereços que enfeitam o corpo. E finalmente a dança -"prazer puro, pulsão corporal sem outro pretexto que ela própria"-, todos esses são elementos cênicos que dramatizam o discurso e o adensam, ancorando a linguagem num corpo profundamente erótico.
Daí a ampliação da idéia de texto literário -que compreende desde a materialidade da sua emissão até o espaço cênico e corpóreo de sua realização-, e então Zumthor borra as fronteiras entre intérprete, texto e ouvinte, num conjunto que só toma sentido na circunstância de seu acontecimento. Por isso, aqui o conceito de performance é fundamental.
O intérprete é aquele indivíduo do qual se percebe a voz e o gesto, por meio do ouvido e da visão, durante a performance. Não necessariamente o autor do texto -de fato, na prática da poesia oral o papel do executante conta mais que o do compositor. Deslocando a noção de sujeito-autor, tão cara à cultura ocidental a partir do século 12, Zumthor ressalta que o autor resta, na maior parte das vezes, desconhecido, mas nunca o intérprete. Como portador de um legado transmitido numa cadeia de muitos elos intermediários, o intérprete incorpora o texto na performance. Assim, a performance jamais é anônima.
Do outro lado da meada, numa relação de total reciprocidade, está o ouvinte. Se o discurso oral desdenha a autoridade de uma assinatura, tanto mais apropriável ele se torna por quem o escuta. O ouvinte recorta do discurso o que lhe diz respeito, ele o recria a seu proveito. Portanto, o ouvinte não só recebe o texto, mas é o seu co-autor. Esta participação se manifesta ora em interferências codificadas -a audiência canta o refrão, por exemplo-, ora em mais espontâneas -alguém reclama de um verso não muito hábil. Mais ainda, a audiência delineia todo um horizonte de expectativas, que conforma e particulariza cada performance.
Nesta "Introdução", Zumthor repassa os autores que estudaram o fenômeno da oralidade, embora sem se deter nos desenvolvimentos mais minuciosos. Cita produções orais de inúmeros povos -o que às vezes torna a leitura um pouco árida. Em termos formais, a linguagem se mostra um tanto desigual, oscilando entre uma função operativa, classificatória e alguns achados mais poéticos, onde se observa o fascínio envolvido de Zumthor que, mesmo escrevendo ensaios, lia-os em voz alta e afirmava escrever com seu corpo.
A OBRA
Introdução à Poesia Oral
Paul Zumthor Tradução: Jerusa P. Ferreira e outros Hucitec-Educ (Tel.011/530-4532) 232 págs., R$ 30,00
Daisy Wajnberg é psicanalista e autora de "Jardim de Arabescos: Uma Leitura das Mil e Uma Noites" (Imago).