Devemos saudar com entusiasmo a tradução e publicação da obra já clássica de Richard Popkin. A grandiosidade dos trabalhos de Popkin consiste na rica e completa exposição de um cenário filosófico de fundamental importância para a compreensão da evolução do ceticismo, da filosofia no Renascimento e da filosofia moderna. Além disso, a prosa fluente, a fina erudição e a exposição clara e organizada são características inegáveis, que a tornam acessível e mesmo obrigatória para qualquer leitor interessado no assunto ou no período. Popkin defendeu teses e elaborou conceitos que ainda são inteiramente válidos, tendo classificado algumas vertentes filosóficas e identificado alguns dos principais problemas de forma bastante iluminadora.
Ao mostrar a importância e a disseminação do ceticismo nos séculos 16 e 17, Popkin estabeleceu a tese de que o ceticismo é um dos pilares sobre o qual se construiu a filosofia moderna. Normalmente, a filosofia moderna foi pensada como uma ruptura com a tradição aristotélica e como um novo saber científico e metafísico sobre o mundo, apoiado em sólidos alicerces, seja uma base experimental, seja uma metafísica indubitável. Popkin mostra-nos que falta, nessa visão, um elo indispensável e revela um período impregnado de dúvidas, questionamentos e incertezas. Herdeira de uma profunda crise cética, para a qual nenhuma resposta se mostrou satisfatória, a filosofia moderna continuará tendo como um de seus desafios responder ao ceticismo. O principal mérito de Popkin é o de ter documentado exaustivamente essa tese.
Uma das posições básicas de Popkin é a de que o ceticismo, no período de 1500-1675, tem um papel especial e diferente do que vai ter após a filosofia cartesiana. Por "ceticismo" devemos entender "uma visão filosófica que levanta dúvidas acerca da adequação ou da confiabilidade da evidência oferecida para se justificar uma determinada proposição". É nesse sentido preciso que o ceticismo pode se aliar à fé e produzir uma longa e importante tradição fideísta. Por "fideísmo", Popkin entende aquela doutrina segundo a qual "nenhuma verdade indubitável pode ser encontrada ou estabelecida sem algum elemento de fé". Nem sempre se chamou suficientemente a atenção para o fato de que a filosofia moderna, ainda que herdeira dessa crise cética, terá uma outra concepção do ceticismo.
Uma questão crucial nas disputas da Reforma e Contra-Reforma, a do "critério de verdade" no conhecimento religioso, abriu as portas para o ceticismo, ao mesmo tempo em que as obras de Sexto Empírico, principal fonte de informações sobre o ceticismo grego, eram traduzidas e publicadas. Os argumentos céticos tradicionais foram utilizados por ambos os lados, seja para atacar ou defender a autoridade da Igreja, e era acusação comum a de que as doutrinas adversárias conduziam ao ceticismo. Essa disputa acerca do "critério de verdade" gerou uma crise intelectual e duas foram as respostas: ou se aceitou a suspensão cética do juízo com o apelo à fé sem fundamento racional ou se procurou uma solução construtiva.
Montaigne teria sido o primeiro a generalizar a crise teológica da Reforma para os campos do conhecimento e das ciências. Sob a influência de seu sutil e poderoso pensamento, céticos e fideístas se utilizaram da obra do "divino Sexto" e atualizaram seus argumentos. Assim, criou-se uma linhagem de pensamento, a dos "nouveaux pyrrhoniens", que não recebiam a ciência moderna com muito entusiasmo e viam nela mais um motivo para duvidar da ciência aristotélica tradicional do que um novo acesso ao conhecimento e à verdade.
De um modo geral, os novos pirrônicos e os libertinos eruditos, seus herdeiros, eram uma espécie de vanguarda intelectual, que combatiam todo dogmatismo e preparavam um novo cenário intelectual. Essa primeira resposta produziu o que foi chamado de "crise pyrrhonienne". A crise pirrônica consistia numa imensa dúvida ou num ceticismo total em que nenhuma área do conhecimento permanecia inquestionada e as faculdades humanas cognitivas, tanto os sentidos quanto a razão, eram denunciadas como instrumentos inadequados de conhecimento.
Uma das limitações do livro de Popkin é que ele pouco explora o que se poderia chamar de ceticismo moral, embora faça alusões a este quando fala de Montaigne, de La Mothe Le Vayer e dos libertinos eruditos. Também não é muito bem explicada a generalização do ceticismo operada por Montaigne. De um modo geral, as análises de Popkin são superficiais e introdutórias, embora sejam mais do que suficientes para sustentar a tese geral sobre o papel desempenhado pelo ceticismo na formação da filosofia moderna.
A outra resposta à crise intelectual da Reforma é de gênero construtivo e admite três espécies. Em primeiro lugar, estão aqueles que procuraram defender a ciência aristotélica dos ataques céticos, mas, não compreendendo a força desse ataque, produziram apenas respostas medíocres. Em segundo lugar, estão aqueles que, aceitando o ceticismo, procuraram conciliá-lo com a nova ciência. Esses filósofos, dentre os quais se destacam Mersenne e Gassendi, contribuíram para uma posição filosófica bastante original, em que se dissociam ciência empírica e metafísica.
Assim, a crítica cética atingiria somente os fundamentos da nova ciência e as pretensões metafísicas, enquanto a nova ciência seria apenas um conhecimento hipotético dos fenômenos. Outro dos méritos de Popkin é mostrar que o ceticismo "construtivo ou mitigado", longe de ser um inimigo da ciência moderna, seria um de seus ardorosos defensores.
Finalmente, o terceiro e último tipo de resposta à crise pirrônica é aquela que busca elaborar uma nova forma de dogmatismo que possa resistir aos ataques do assalto cético. O grande nome aqui é, obviamente, Descartes, mas Popkin expõe antes duas outras interessantes tentativas, a de Herbert de Cherbury e a de Jean de Silhon, que prefigura, em alguns aspectos, a resposta cartesiana. Descartes, ao propor o "cogito" como uma verdade indubitável, pretendia ter refutado pela primeira vez a tradição cética. Naturalmente, muitos julgaram sua resposta insatisfatória e que consistia mesmo em um superpirronismo. As discussões sobre ceticismo, depois do tratamento dado por Descartes, estariam alteradas para sempre.
Plínio Junqueira Smith é professor na Universidade Federal do Paraná e autor de "Ceticismo Filosófico" (Editora da Universidade Federal do Paraná).