Logotipo do Jornal de Resenhas
Serge Gruzinski - 87 - Julho de 2002
Entre os mares
Foto do(a) autor(a) Serge Gruzinski

Entre os mares

Diálogos Oceânicos Minas Gerais e as Novas Abordagens para uma História do Império Ultramarino Português
Júnia Ferreira Furtado (org.)
Ed. UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4642)
521 págs., R$ 47,00

SERGE GRUZINSKI

A história no século 21 deverá alargar seus horizontes até os espaços planetários, se pretender responder ainda às exigências de seu tempo, aos desafios da mundialização e às transformações dos meios de pensar e comunicar. A renovação nos vem da América Latina mais que da Europa ou dos EUA. Várias obras surgidas no Peru e no Brasil nestes últimos tempos indicam de maneira magistral a marcha a seguir: ao lado dos trabalhos de Margarita Suárez, de Luiz Felipe de Alencastro, de João Fragoso e Maria Fernanda Bicalho, estes "Diálogos Oceânicos", orquestrados por Júnia Ferreira Furtado, se engajam resolutamente na mesma via.
A tarefa não é fácil. Para restabelecer e explorar as conexões que uniram as histórias dos países e dos continentes, é preciso voltar as costas para as histórias nacionais herdadas do século 19, apartar-se das seduções de uma microhistória cujas rotinas estreitaram nossos horizontes de reflexão, e privilegiar a investigação coletiva sobre o trabalho solitário.
A noção de "conexões" é crucial aqui. Ela aparece várias vezes na introdução dos "Diálogos". "Conexões" estabelecidas pela circulação das mercadorias, dos escravos, mas também das idéias. Como lembra Júnia Furtado, "em fins do século 18, livros, planos, histórias de sedição percorriam os mares e faziam tremer os pilares do império". Estamos bem próximos aqui da idéia de "connected histories" que o grande especialista indiano do império português, Sanjay Subramanyam, lançou num artigo destinado a fazer época (1).
Não é simples coincidência se historiadores separados por oceanos se juntam nessa busca das "conexões transversais", cuja localização e estudo produzem "um intercâmbio inovador e instigante". Não é acaso tampouco se é o passado imperial português que, da Índia ao Brasil, suscita interrogações análogas. Que dominação ocidental conseguiu, melhor que a de Lisboa, fazer viverem juntas a Europa, a América, a África e a Ásia? Daí que ofereça um magnífico laboratório a todos aqueles que procuram compreender as origens ibéricas da mundialização.
Certamente, nem sempre é fácil pôr em prática esse vasto programa. Nossos espíritos por vezes têm dificuldade em pensar em termos interoceânicos, dito de outro modo, planetários. Como se surpreender que nem todas as contribuições cheguem a cumprir o contrato que lhes foi fixado, mesmo se a maioria encerra dados interessantes? Uma parte delas banca o jogo. Se o texto de A.J.R. Russell-Wood remonta a 1975 ("Precondições Precipitantes do Movimento de Independência da América Portuguesa"), ele tem o mérito de estabelecer a ligação entre a velha tradição de estudo do império e as novas pistas aqui propostas.
A primeira se interessa pelas mulheres do império e nos arrasta de Portugal para a África, de Angola para o Brasil, de Goa para a região de Minas Gerais. Um modo de confrontar condições de vida com o cotidiano, mas também de explorar ligações que unem atividades modestas, frequentemente abandonadas pelos historiadores, como esse pequeno comércio que as quitandeiras animam de cada lado do Atlântico, após haver transportado a prática da África para o fundo do Brasil.

Redes internacionais
O universo dos grandes comerciantes faz ressaltar circulações que não somente articulam entre si as diferentes regiões do império, mas também estas com o resto da Europa. No século 18, através da história do marrano Duarte da Silva, surgem redes internacionais, das quais umas conduzem a Amsterdã, Londres ou Antuérpia, outras a Livorno, Roma ou Veneza. Os circuitos do tabaco, do açúcar, dos escravos, das pedras preciosas habituam os mercadores a se deslocar entre os mundos, a explorar todas as espécies de informação.
No fim do século 18, outros circuitos entre o Rio de Janeiro, a África e a Ásia faziam do porto carioca não apenas um exportador de mercadorias brasileiras para a Europa, mas também um "reexportador de diversos bens europeus, asiáticos e africanos -em especial as fazendas da Europa e de Goa" para Santos, Rio Grande do Sul ou Angola. De Duarte da Silva, marrano do século 17, ao riquíssimo Francisco Xavier Pires, que morre em 1826, o leitor descobrirá um universo de poderosos negociantes que, bem antes de nossas elites globalizadas, aprenderam a circular entre os continentes e a fazer trabalhar juntas diferentes partes do mundo. Sem dúvida, aqui está uma das contribuições maiores dos ibéricos para a modernidade.
Mas "Diálogos Oceânicos" também se interessa longamente pelas dimensões políticas do império português e pelas conexões que o atravessam. O estudo das revoltas que sacodem essa parte do mundo e a evocação das agitações que se acumulam no fim do século 18 inspiram uma série de reflexões sobre a crise da dominação portuguesa. Esta é tomada em suas manifestações tanto locais como internacionais, pois aparece indissociável dos acontecimentos que abalam a América -independência das colônias inglesas e das colônias espanholas- e a Europa -a Revolução Francesa e suas repercussões.
Seguir-se-á com interesse a evolução das práticas políticas no seio do império durante todo o século 17 e o 18, começando pelas reações das oligarquias locais à política de centralização imperial conduzida por um Portugal restaurado, que acaba de sair de seu conflito contra a Espanha. No Rio de Janeiro, no Ceilão, em Macau, Pernambuco ou Luanda, por uma razão ou por outra, os colonos expulsam os representantes da Coroa. Esses movimentos se esclarecem desde que recolocados na perspectiva de uma história política comum, que opõe a rigidez de uma nova ordem imperial às resistências locais. Eles são também o sintoma de uma nova paisagem política que anuncia os acontecimentos brasileiros do século 18; "concentrado na América, o discurso em torno da rebelião começaria a delinear, no novo mundo, um novo tipo de súdito".
O lugar que ocupa nesta obra a história de Minas Gerais não está ligada apenas a uma tradição bem ancorada no seio da historiografia brasileira que vê nessa região, com ou sem razão, uma encarnação privilegiada do Brasil colonial. Ela permite alternar os pontos de vista sem os quais uma história de horizontes planetários permaneceria nas generalizações e aproximações da "world history". Não há compreensão do global sem um estudo atento do local. Em decorrência, após as projeções lançadas sobre a história de Luanda (1667) ou de Goa (1787), vários colaboradores da obra se consagram a recolocar em perspectiva a conjuração mineira. Nem todos os capítulos chegam a aceitar o desafio. As contribuições centradas sobre Portugal estão entre as menos bem-sucedidas, provavelmente porque têm mais dificuldade em passar do local ao global e a operar os descentramentos que hoje se impõem.
"Diálogos Oceânicos" propõe-se a ser "um convite e um estímulo à pesquisa interregional dentro das fronteiras do Império Ultramarino Português". Façamos votos de que esta obra seja também anunciadora de outros empreendimentos, mais ambiciosos ainda, e que uma próxima etapa possa abarcar o conjunto dos impérios ibéricos que durante um longo período (1580-1640) lançaram juntos as bases da mundialização que hoje triunfa.

Nota:
1. Sanjay Subrahmanyam, "Connected Histories - Notes Towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia". in V. Lieberman ed., "Beyond Binary Histories -Re-imagining Eurasia to c. 1830", The University of Michigan Press, 1997, págs. 289-315.


Serge Gruzinski é professor da École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris) e autor, entre outros livros, de "O Pensamento Mestiço" (Cia. das Letras).
Tradução de Franklin de Mattos.

Serge Gruzinski é professor na École des Hautes Études en Sciences Sociales(Paris).
Top