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Angela Alonso - 116 - Dezembro de 2014
Faces de um rei
Foto da capa do livro Imperador Cidadão
Imperador Cidadão
Autor: Roderick J. Barman
Tradução: Sonia Midori Yamamoto
Editora: Unesp - 624 páginas
Foto do(a) autor(a) Angela Alonso

Joaquim Nabuco dizia que o centro de uma história do Segundo Reinado seria naturalmente o imperador. Ele mesmo tomou, em Um Estadista do Império, outro caminho, prisioneiro da armadilha que assombra biógrafos, a de, ao construir empatia com o biografado, resvalar para sua heroicização. No caso do imperador, há problema adicional: como tratar com densidade a pessoa Pedro de Alcântara e sua posição de centro da vida política brasileira por meio século?

O historiador Roderick Barman encarou o desafio. Publicado em 1999 e obrigatório para estudiosos do Império, seu Imperador Cidadão ganhou tradução com mais de década de atraso. O fato o empana um pouco, pois chega após duas outras biografias de D. Pedro II, ambas alentadas, de sucesso de público e assinadas por estudiosos de referência do período: as Barbas do Imperador, de Lilia Schwarcz, e D. Pedro II, ser ou não ser, de José Murilo de Carvalho.

Como essas, a biografia de Barman se ampara em pesquisa farta. Tem as qualidades da historiografia norte-americana, o domínio total da bibliografia e a investigação exaustiva de fontes – arquivos privados de políticos do Império, relatórios de diplomatas, correspondência, diários, jornais e panfletos do período. A imersão nesses documentos (somando-se The Forging of a nation, 1798—1943 e Princesa Isabel do Brasil, gênero e poder no Século XIX) é coisa de 35 anos, o que torna Barman especialista gabaritado em história imperial.

A acumulação faculta tomar o imperador por vários ângulos: o cultural, o político, a persona pública, a pessoa privada. A combinação psicologia e política é forte no livro, que começa pelo reinado do primeiro imperador e sua abdicação e nos apresenta D. Pedro II menininho órfão de mãe, deixado para trás pelo pai e passado de mão em mão no jogo político de seus preceptores. Sobrepõem-se dois transes, os seus, subjetivos, e os do país, durante a Regência.

Os estudos se afiguram estratégia de sobrevivência pessoal - que D. Pedro inflaria em lenda de homem de letras e ciências. Nos traumas familiares se enraíza outro traço: o autocontrole. Solavancos afetivos teriam conformado a personalidade contida, temerosa de confiar e de tomar partido, na intimidade como na política. Salpicam o livro suas qualidades: paciência, perseverança, tolerância. Mas não escapam os defeitos. À medida que o rei envelhece, Barman pontua a cristalização de traços de personalidade que desvirtuam a ação política: obstinação desanda em teimosia - a obsessão por caçar Solano Lopes, quando a guerra com o Paraguai já estava vencida - e a cautela gera o imobilismo - na questão central da escravidão.

Vida pública

Se ao falar de personalidade, o livro cresce, ao tratar da vida pública, lacunas surgem. O foco no indivíduo obsta pintar o quadro inteiro das relações políticas que o engolfavam. Sem reconstruir instituições e processos de que o Imperador era apenas parte – ainda que central -, a política aparece aprisionada nas ligações pessoais do soberano, sem que outros personagens e conflitos sejam iluminados.

No modelo ascensão e queda, o livro supõe um D. Pedro com capacidade de agenda e ímpeto modernizante (o Ventre Livre, a reforma eleitoral), na juventude e mais acomodatício ao fim do reinado, já obstado por idade, saúde e partidos. Barman, contudo, não explica como o imperador pode inicialmente imperar sobre os líderes políticos que fizeram sua maioridade e dos quais, portanto, tendia a ser antes objeto que sujeito. Pode-se aventar o contrário. Alçado adolescente à maioridade, D. Pedro dependia dos que o puseram no trono. Apenas na segunda metade do reinado, experiente e com a geração de fundadores morta, ganharia ascendência sobre políticos mais jovens, dependentes de seus favores. Aí, sim, poderia ter agenda própria.

Mas, então, por que não tentou reformas estruturais? Talvez porque, Barman nota, amante do detalhe, tenha perdido a grande angular, absorvido em questiúnculas. Ou os anos lhe ensinaram que seu reinado dependia de forças e instituições conservadoras – a escravidão prima entre pares –, irreformáveis sem abalo da monarquia. Daí manter as reformas no passo da tartaruga - e, Barman registra, nem preparar a filha para sucessora – e oscilar entre tentar conduzi-las e abster-se de intervir nelas: estava na Europa durante a traumática tramitação da lei do Ventre Livre, em 1871, que dividiu o país e quase pôs o Império abaixo. Idem para a Abolição, em 1888.

O livro é cheio de qualidades, permite ao leitor, em meio ao mar de documentos, avistar impasses, contradições, imperfeições, hesitações e erros de cálculo do personagem. Contudo, ao definir um eixo, que atravessa e organiza sua vastidão (615 páginas!), acaba por partilhar pressupostos da historiografia tradicional criticada no epílogo. O título Cidadão Imperador embute bordão monarquista. A simpatia está na dedicatória à família imperial como no prefácio, que atribui a D. Pedro a criação de “cultura política” regida por “ideal de cidadania”. Os capítulos seguintes, porém, não o demonstram. Exibem, quanto à família, casamento, religião, política – reinado, afinal, conduzido pelo Partido Conservador e por Liberais moderadíssimos -, se não um reacionário, tampouco um modernizador.

Por isso soa estranho o oximoro “rei cidadão”: como pode ser cidadão o rei, se uma monarquia supõe súditos e se a sua negava cidadania ao manter a escravidão? E como poderia ser rei um cidadão que professasse valores modernos - como a igualdade de direitos?

O livro ajunta os dois traços em lugar de explorar a contradição. Nisso repete o dualismo que assola boa parte da literatura e que aparta Pedro de Alcântara, o indivíduo civilizado e civilizador, do governante, por meio século, de um reino assolado por patronagem eleitoral, analfabetismo, concentração de terras e rendas e escravidão. Verdadeira síndrome de Esaú e Jacó, que segrega em dois entes, qual os gêmeos Paulo e Pedro, de Machado de Assis, o modernizador e o tradicionalista. Não terá um nenhuma responsabilidade pelo outro? 

Angela Alonso é professora do departamento de sociologia da USP e diretora científica do CEBRAP.
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