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Fernando Takeshi Tanouye - 120 - Setembro de 2021
O drama da travessia escolar
Estudantes do ensino médio nos últimos meses de formação
Foto da capa do livro Atravessa a vida - filme de 1h23 - documentário
Atravessa a vida - filme de 1h23 - documentário
Autor: João Jardim
Editora: Documentário 0
Foto do(a) autor(a) Fernando Takeshi Tanouye

Atravessa a vida é o mais novo documentário (2020) do cineasta e jornalista João Jardim. A produção retoma a temática das angústias da vida escolar, já abordada no aclamado Pro dia Nascer Feliz (2005), do mesmo diretor, mas agora focada no cotidiano de alunos do último ano do ensino médio de uma escola pública sergipana, o Colégio Milton Dortas, localizado na cidade de Simão Dias. As filmagens captaram os três meses finais dos estudantes nessa instituição, ou seja, o período de travessia deles para a chamada “vida adulta”. O fio condutor da narrativa, e também o drama de fundo da obra, é a aproximação dos exames do ENEM e as experiências traumáticas que mais este rito de passagem desencadeia, em meio a uma série de outros dramas individuais e coletivos.

     O título do filme, como o próprio diretor relata em uma live/debate[1], foi inspirado na frase de um estudante que, após ouvir sobre a proposta do filme, diz que os meses finais na escola são justamente esse “momento em que a gente atravessa a vida”. De fato, é um período extremamente intenso do ponto de vista da formação psíquica dos sujeitos, os quais estão atravessando a fronteira para uma nova etapa da vida, à procura de um lugar no mundo do trabalho ou no ensino superior. Para boa parte daqueles estudantes, o ENEM é a grande ponte que os conecta com uma expectativa de futuro, e o documentário retrata bem o sentimento de esperança, mas também de sofrimento, aí envolvidos.

     Em uma das primeiras cenas do filme, um professor de filosofia aborda o conceito de tempo em Agostinho. Para o filósofo, explica o professor, o passado é memória, o presente é uma dádiva e o futuro é só esperança, ao que uma aluna então argumenta: “Se a esperança morre não existe mais futuro”. Esse é o mote que dá o tom do documentário, ou seja, o da tensão de forças que animam e desalentam esses estudantes de final de curso. Se, por um lado, a travessia deles é nutrida por grandes expectativas em relação ao futuro e pelos prazeres das descobertas da idade, por outro, há muitos percalços que podem minar essa esperança ou vontade de potência.

     Dentre as angústias que ali estão retratadas destacamos: os sentimentos de inferioridade e atraso com relação aos alunos de escolas privadas, os sentimentos de cobrança, pressão, nervosismo e ansiedade com a chegada do exame, a falta ou o atraso de professores, incertezas quanto ao futuro e à continuidade das amizades, os problemas familiares, casos de agressão doméstica e de automutilação, dentre outros. Uma das cenas mais marcantes do documentário é, sem dúvidas, uma roda de conversa onde uma professora dialoga com seus estudantes sobre o tema do suicídio. Os depoimentos dos alunos, que a equipe registra com bastante sensibilidade, são sempre carregados de muita emoção, revelando parte das alegrias e tristezas que compõem suas experiências pessoais.

     Importante destacar que a carga emocional das vivências ali retratadas não recai unicamente nos alunos, mas também nos professores, na diretora e nos outros funcionários da escola. Todos são de alguma forma afetados naquele turbilhão de sentimentos e acontecimentos. Destaque especial para a diretora do Milton Dortas, Daniela Silva, uma mulher que, para além da sua ocupação principal, assume diversas funções naquele espaço escolar: porteira, fiscal de obras, costureira de fantasias, inspetora, braço amigo, cuidadora, conselheira etc.

     O período da filmagem, por acaso, também coincidiu com o de uma reforma na infraestrutura do colégio. Em meio às cenas da comunidade escolar vemos o tempo todo trabalhadores de obra construindo e reformando o espaço do colégio. Esse “pano de fundo” não apenas retrata a escola pública como um espaço ainda em vias de constituição, de travessia para o futuro, com necessidades básicas ainda por serem supridas, mas também reforça a metáfora da escola como um lugar de constituição dos próprios indivíduos. Uma tomada foca os trabalhadores logo após a cena do “aulão” pré-ENEM, na qual um professor de sociologia discute a teoria de Marx e a exploração da mão-de-obra proletária, fazendo uma bela conexão entre os ensinamentos e a vida concreta.

     Por fim, ressaltamos a energia da trilha sonora composta por Dado Villa-Lobos (ex Legião Urbana), quem trouxe a atmosfera jovial das guitarras e dos baixos para as cenas. Além desses sons, a trilha também conta com uma faixa do Legião Urbana (Pais e Filhos), músicas nordestinas (Fagner) e da banda do desfile da cidade. O final do filme é agitado por Xique-Xique, de Tom Zé e José Miguel Wisnik, dando o tom de luta e resistência dos personagens para seguir em frente apesar de todas as dificuldades.

     Em suma, João Jardim e sua equipe conseguiram mais uma vez realizar uma produção belíssima, emocionante e essencial para pensarmos o universo escolar, com seus desafios, vicissitudes e esperanças de transformação.

 

FERNANDO TAKESHI TANOUYE é doutorando do Instituto de Física da USP

 




Fernando Takeshi Tanouye
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