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Margareth Rago - 117 - Junho de 2018
O primeiro homem e a primeira mulher
Foto da capa do livro Ascensão e queda de Adão e Eva
Ascensão e queda de Adão e Eva
Autor: Stephen Greenblatt
Tradução: Donaldson M. Garschagen
Editora: Companhia das Letras - 392 páginas
Foto do(a) autor(a) Margareth Rago

Se Deus todo-poderoso, que havia criado o primeiro homem e a primeira mulher, sabia de antemão que haveria terríveis problemas decorrentes dessa relação, por que não escolhera logo outra figura masculina para ser o companheiro de Adão? Por que criara a mulher? Com essas questões em mente, Tomás de Aquino, no século XIII, argumentava que “para viverem juntos e fazer companhia um ao outro, dois amigos juntos são melhores do que um homem e uma mulher”, muito embora entendesse que também estava em jogo o tema da procriação. Dez séculos depois, sua conclusão retomava as ideias de Agostinho, para quem outro homem seria muito mais útil como ajudante no trabalho agrícola do que uma mulher.

 Num outro polo, e bem depois, enfrentando a misoginia do cristianismo, que se torna a religião hegemônica no Ocidente, Arcangela Tarabotti, escritora e freira veneziana, contra-argumentava que esses padres, que demonizavam Eva e defendiam a perfeição masculina estavam profundamente enganados. Segundo ela, Eva era superior a Adão: afinal, este fora feito do barro, enquanto ela fora feita de uma substância mais nobre, o corpo de um homem; ademais, “Adão nasceu fora do Éden; Eva, no próprio Paraíso.”

 Historiador, crítico literário e professor da Universidade de Harvard, Stephen Greenblatt é conhecido por inúmeros e preciosos livros, alguns já traduzidos e publicados no Brasil, como A Virada: o nascimento do mundo moderno (2011), Como Shakespeare virou Shakspeare? (2004) e Possessões Maravilhosas: o deslumbramento do Novo Mundo (1996), além de Renaissance Self-fashioning: From More to Shakespeare (1980). Agora, brinda-nos com um inusitado e erudito trabalho sobre a história do mito de Adão e Eva, que marcou profundamente a constituição da psique ocidental e continua inquietando ainda hoje. Estudioso de literatura e consagrado nome do “novo historicismo”, fascinado pelas histórias que inventamos para dar sentido à nossa existência, como ele mesmo afirma no prólogo deste livro, Greenblatt discute como uma narrativa sobre o primeiro casal e o pecado original se transformou em realidade inquestionável, sendo assim entendida em nosso imaginário cultural, desde os primeiros séculos do cristianismo, quando foi elaborado pelos pais da igreja cristã.

 Assumindo que a linguagem constitui os objetos de que fala, mais do que os reflete, como afirmava a teoria do reflexo predominante até os anos sessenta, as histórias que envolvem o primeiro homem e a primeira mulher encontram seu lugar nesse envolvente trabalho de história cultural, escrito com muita elegância, agilidade e humor contagiante. Afinal, somos efeitos dessas narrativas trazidas pelo cristianismo, decisivas em nossa formação moral e religiosa, que desclassificaram as mulheres desde sua primeira entrada em cena, em que pese o contraste simbólico estabelecido com Maria, que dá à luz o Salvador, e que “libidinizaram o sexo”, como explica o autor, na esteira de Foucault, especialmente em seu livro póstumo recém-lançado História da Sexualidade IV. Les Aveux de la Chair. Aprendemos, então, que embora Agostinho acreditasse que havia conjunção sexual no Paraíso, não se tratava de pecado, já que esta se mantinha nos marcos do sexo temperante, pois não escapara, ainda, ao controle da razão.

 Historicizando a origem, a ascensão e a queda do mito de Adão e Eva, ao longo da história do Ocidente e examinando as inúmeras narrativas que discutem o pecado original e a queda, que expulsa toda a humanidade para fora do Paraíso para sempre, ao menos neste mundo, Greenblatt subverte todo um regime cristalizado de verdades, profundamente misógino. Vale lembrar que esse regime de verdades definiu interpretações sobre o sexo, a vida, a morte, o prazer e a culpa em nossa civilização, que foram amplamente aceitas e apropriadas, inclusive pelo discurso científico da medicina vitoriana, como apontou Foucault, em sua História da Sexualidade I – a vontade de saber, em 1976. Numa perspectiva genealógica, Greenblatt nos mostra o momento da invenção do pecado original, formulado por Tertuliano e elaborado por Agostinho, no século III, e visita obras literárias e pictóricas, que moldaram nossa imaginação, até sua queda, com Charles Darwin, para quem “o paraíso não havia sido perdido”, já que nunca existira.

 São muitas as histórias que esse livro nos conta e são muitas as surpresas que provoca, ao questionar nossas próprias interpretações e experiências, especialmente numa época em que o discurso religioso atinge milhões, pregando obediência e renúncia de si, e em que o poder pastoral se intensifica e ultrapassa os muros da igreja, onde nasceu, resultando no crescimento da violência e da intolerância, dentro e fora do Estado, como temos assistido. Muito prazerosa, a leitura desse livro é fundamental também para se realize um diagnóstico mais apurado do nosso presente.

 

 Margareth Rago é professora do Departamento de História da UNICAMP

 

Margareth Rago
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