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Felipe Freller - 119 - Abril de 2021
Política e sociedade em chave não determinista
Uma abordagem inovadora sobre os significados da política e sua relação com a sociedade
Foto da capa do livro Estado e democracia
Estado e democracia
Autor: André Singer, Cícero Araújo e Leonardo Belinelli
Editora: Zahar - 300 páginas
Foto do(a) autor(a) Felipe Freller

Apesar de seu subtítulo, Estado e democracia: uma introdução ao estudo da política, de André Singer, Cícero Araújo e Leonardo Belinelli, é muito mais do que uma introdução ao assunto. Sem deixar de introduzir temas e conceitos fundamentais aos estudantes da política, a quem o livro é dedicado, a obra apresenta uma abordagem inovadora sobre o desenvolvimento entrecruzado do Estado e da democracia ao longo da Histórica ocidental. Resulta dessa abordagem uma perspectiva instigante sobre os significados da política e sua relação com a sociedade.

A premissa é que “o conflito de classes é (...) pedra de toque para a compreensão dos eventos e das formas da política, sem, todavia, subsumi-la” (p. 12). Para pensar as diversas maneiras pelas quais a política foi condicionada pelos conflitos sociais ao longo da História, sem se reduzir, porém, a um mero reflexo da luta de classes, os autores mobilizam referências variadas, pegando emprestada de Gabriel Cohn a fórmula do “ecletismo bem temperado”. Consegue-se, assim, evitar ao mesmo tempo o insulamento da política em relação à sociedade, típico da ciência política neoinstitucionalista, e a negação da especificidade e da autonomia do político, característica de um marxismo ortodoxo e economicista. Estão em jogo, em cada capítulo da obra, os diferentes graus e modos pelos quais a política nasce dos conflitos sociais e se autonomiza em relação a eles.

O Capítulo 1 trata da “invenção da política na Antiguidade clássica”, buscando extrair da experiência greco-romana uma primeira definição de política, baseada na leitura de Hannah Arendt sobre essa experiência histórica. Essa primeira definição é a da política como “prática coletiva da liberdade” – uma prática que se estrutura em “um espaço público no qual seres humanos livres e iguais se comprometem com um processo deliberativo” (p. 54). Sugere-se que a política democrática é capaz de transcender as diferenças de riqueza e status no interior da polis, uma vez que, no espaço público da deliberação, todos os cidadãos são considerados como iguais, apesar daquelas diferenças. Entretanto, essa política democrática antiga não extirpava a hierarquia e a dominação da vida social: antes, elas se exacerbavam nos espaços externos à esfera política, particularmente no âmbito doméstico, onde escravos e mulheres eram dominados.

O Capítulo 2 aborda o surgimento do Estado moderno a partir do solo medieval. O Estado moderno fornecerá a base da segunda definição de política trabalhada pelo livro: a política como disputa pela direção do Estado, concebido por Weber a partir da reivindicação do monopólio da violência legítima. Os autores confrontam as teses de Marx, Engels e Perry Anderson sobre a relação do Estado absolutista com a nobreza e a burguesia, para concluir que o Estado conseguiu se sobrepor às classes sociais, ao mesmo tempo em que se apoiava nelas. “Isso nos ajuda a compreender por que a política moderna é dotada de uma autonomia relativa em relação à economia, sem poder se desligar completamente dela” (p. 95). O Capítulo 3 aprofunda essa ideia ao tratar do desenvolvimento paralelo e interligado do Estado moderno e do capitalismo, ao mesmo tempo em que aponta contradições nessa parceria.

No Capítulo 4, as revoluções inglesa, americana e francesa são narradas à luz do conflito de classes em cada um desses países, mas o resultado enfatizado pelos autores é político: tratava-se de uma retomada da concepção de política como prática coletiva da liberdade, mas em um projeto civilizatório que tinha por horizonte “incluir todos os que estivessem sujeitos às leis do Estado” (p. 175), sem as exclusões presentes na Antiguidade. Ou seja, a aposta na capacidade de a política transcender as divisões da sociedade é dobrada.

Ao interpretar a trajetória da democracia moderna, os autores indicam ora a esperança de a política cumprir essa promessa, ora sua incapacidade de superar os entraves colocados pelo capitalismo. O Capítulo 5 sustenta que a incorporação dos trabalhadores à democracia culminou no Estado de bem-estar social, conferindo “suporte material aos enunciados da época das revoluções democráticas” (p. 197).

Contudo, o Capítulo 6 sugere que não é tão simples superar a lógica do capitalismo pela democracia. Argumenta-se, com Arendt, que o imperialismo, derivado do capitalismo, desorganizou o Estado-nação e a solidariedade de classe, engendrando o totalitarismo. No contexto atual, a “uberização” neoliberal instauraria um cenário análogo ao descrito por Arendt, suscitando novas ameaças autoritárias. Os autores fazem um balanço da literatura contemporânea sobre crise das democracias, concluindo que “eleições ainda podem funcionar para operar mudanças substantivas, revitalizando a democracia” (p. 243).

Em suma, mais do que simplesmente introduzir os conceitos fundamentais da política, Estado e democracia oferece diferentes modelos, contextualizados historicamente, para pensar a relação entre política e sociedade, em uma chave não determinista.

Felipe Freller é professor substituto de Ciência Política na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisador associado ao Centre d’Études Sociologiques et Politiques Raymond Aron da École des Hautes Études en Sciences Sociales (CESPRA-EHESS).


Felipe Freller
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