Sementes da massificação
DAIN BORGES
Como explicar a história da República sem recorrer a Rui Barbosa ou Luís Carlos Prestes? Os autores desta riquíssima coleção sondam a vida privada. Respondem que, no Brasil, a revolução mundial científico-tecnológica assumiu a feição de um projeto estatal de "ocidentalização" modernizadora. Os eventos públicos que marcaram época na vida privada brasileira entre 1870 e 1950 não foram as revoluções políticas -a República em 1889, Vargas em 1930 ou 1937. Foram as revoluções de costumes -as reformas urbanas de Pereira Passos no Rio (1902-06) e, indiretamente, a Primeira Grande Guerra (1914-19).
A transformação brasileira criou várias dimensões de vida privada. Para os pobres, gerou novas situações de sobrevivência; para os ricos, primeiro permitiu a individualização da vida pessoal, depois impôs sua massificação.
Os três primeiros capítulos delineiam a relação entre as intervenções do Estado, visando formar um povo, e os movimentos privados dos pobres. Maria Cristina Cortez Wissenbach mostra como escravos libertos se integraram ao povo livre e, tanto no campo como nas cidades, experimentaram uma privacidade orientada para a mobilidade e a sobrevivência. Zuleika Alvim traça o percurso dos imigrantes para dois modos de privacidade: ou as colônias do Sul, onde conseguiram terra e puderam construir casas isoladas, igrejas e finalmente comunidades; ou os cafezais de São Paulo, onde se misturaram numa sociabilidade nova nas casinhas da fazenda.
Paulo César Garcez Marins compara as dialéticas regionais entre o público e o privado na crise de habitação das cidades. A reforma do Rio estabeleceu um paradigma segregante de derrubar cortiços e abrir avenidas e bairros elegantes. Paradoxalmente, também estimulou a construção informal nos morros (até utilizando os detritos das obras da avenida Central). Com mais ou menos o mesmo projeto, outras cidades viveram processos diferentes -mocambos no Recife, bairros-jardins em São Paulo. A explosão urbana culminou em projetos nacionais, como os blocos dos IAPs, nos anos 30, e Brasília, em 1960.
Todo o livro, centrado na celebração do privado contra os assédios do público, retrata o povo com um certo escorço de perspectiva. Tende a realçar "sociabilidade" e "solidariedade" na vida privada dos pobres e matizar evidências de paixões feias: rejeição mútua ou inveja. Temos, nas brigas de rua analisadas por Sidney Chalhoub em "Trabalho, Lar, e Botequim" (1986) e nos contos de Lima Barreto, evidências da interpenetração de camaradagem e ódio no Rio de Janeiro popular. Para os pensadores da época, a questão das tensões e da solidariedade entre o povo não era banal. No massacre de Canudos, logo em seguida às guerrilhas fratricidas no Rio Grande do Sul, Euclides da Cunha sentia a previsão de uma guerra suicida da raça brasileira. O Brasil foi uma das poucas nações que escaparam de um genocídio ou de uma guerra civil durante o século 20. Vale indagar se alguma característica da vida privada brasileira evitou o destino de uma Alemanha, Turquia, Espanha, ou México.
Os três capítulos seguintes celebram e criticam as "representações" da vida privada: no humor, nos postais, fotos, objetos íntimos e nas revistas femininas. Cada página deste livro está repleto de ilustrações que fornecem uma sensação de verossimilhança, de documentação material da realidade. Mas estes capítulos mostram que devemos guardar uma desconfiança conveniente frente às representações da vida privada e analisá-las na contramão.
Na imprensa brasileira, segundo Elias Thomé Saliba, só podemos confiar na paródia e na sátira, onde o confronto do mecânico com o espontâneo ilumina sinceras verdades da vida privada. Nelson Schapochnik mostra como novas tecnologias permitiram a acumulação de imagens "pessoais" -cartões-postais como lembrança de passeios, retratos de família, lenços monogramados. Mas todas estavam carregadas de convenções e estereótipos; só com astúcia podemos usá-las para discernir a individualidade e as emoções do lar.
Marina Maluf e Maria Lúcia Mott partem para o mundo feminino, mediante uma crítica das possibilidades cogitadas na "Revista Feminina" entre 1914 e 1936. Lá os conservadores reclamavam de qualquer "flexibilização na divisão sexual das funções no interior da família"; todavia, a revista pregava uma doutrina eugênica, moralista e submissa às mulheres. Maluf e Mott contrastam o alcance destas representações com as dissidências feministas e com a realidade de que "a maioria das mulheres vivia relações conjugais consensuais, sem uma presença masculina efetiva no lar".
Necessariamente incompleta, a "história da vida privada" encontra dificuldades em delimitar seu objeto; neste livro, principalmente tipos de privacidade cotidiana que estão além da família burguesa. Sua definição do privado parece chegar até as experiências singulares, convidando o leitor a se entregar ao que Machado de Assis chamou "aquele invencível desejo de conhecer a vida alheia". O livro abunda em belos indícios sugestivos sobre corpos, casas e sociabilidade: o contraste entre as mãos enluvadas das damas e as mãos rachadas das lavadeiras; a destruição de chafarizes públicos em São Paulo, em 1893, para forçar a população a aceitar serviço de água encanada, "privadamente".
Mas, porque os autores recusam impor uma definição dogmática do que é vida privada, ficamos em dúvida. Faltam-nos critérios para determinar se temas não contemplados neste livro também seriam privacidade. Seriam "vida privada" as alternativas organizadas, como as comunidades de "anarquistas, graças a Deus", maltas de capoeiras, rodas de homossexuais, congregações dos primeiros batistas? Seriam privadas práticas tais como o clientelismo, que liga amizade e compadrio ao voto?
Sem contestar estas perguntas, quem melhor justifica a coerência das escolhas feitas neste volume é Nicolau Sevcenko, no capítulo "A Capital Irradiante". Ele argumenta que a tecnologia (eletricidade, automóvel, rádio, cinema, televisão) transforma as metrópoles. No Brasil, o Rio "passa a ditar não só as novas modas e comportamentos, mas acima de tudo os sistemas de valores, o modo de vida, a sensibilidade, o estado de espírito e as disposições pulsionais". Para os ricos, "ampliação da dimensão individual"; para os pobres, experiências de expulsão.
Começando com o primeiro bonde elétrico (1892), Sevcenko mostra logo como as reformas de 1902-06 permitiram a circulação com velocidade. Passa dos automóveis ao andar "à americana", ao turismo, à pele bronzeada, à ginástica, aos banheiros, ao corpo, à saúde, às estações de cura, aos aviadores, ao esporte como "eletricidade passando pelos corpos", à praia (1906-20). Sua apresentação simula as livres-associações invertebradas dos surrealistas ou psicanalíticas. Como Gilberto Freyre (o ancestral totêmico-tabu de pesquisas brasileiras sobre vida privada), Sevcenko projeta seus desejos e ansiedades pessoais na tela da história.
Mas discretamente Sevcenko monta uma estrutura de elos analíticos racionais. Quer demonstrar que a modernidade produz isolamento, para então provar que "o rádio -voz sem corpo que sussurra suave- religa o que a tecnologia havia separado". Não só rádio, mas também dança frenética, música, futebol e carnaval produzem êxtase, cedendo à capacidade técnica superior do cinema nos anos 30. Contra essa sedução hipnótica, que o populismo usou para "novas políticas de controle, segregação e cerceamento das cidades planejadas", só os pobres opõem sua "infixidez", seu "jogo e reajustamentos constantes".
Já por volta de 1950, com a televisão "invadindo e comandando a vida das pessoas dentro do próprio lar", os ricos acabam tão dominados na sua privacidade como os pobres. Esta visão pessimista, exposta com grande vivacidade, explica as escolhas feitas neste volume, que procura na vida privada da República as sementes da massificação urbana contemporânea. Podemos discordar de sua concepção achatada da religião e da política. Mas Sevcenko e os colaboradores desta coleção põem a descoberto a formação histórica de uma das maneiras de ser brasileiras.
A OBRA
História da Vida Privada no Brasil - República: Da Belle Époque à Era do Rádio (Vol. 3)
Nicolau Sevcenko (org.) Companhia das Letras (Tel. 011/866-0801) 744 págs., R$ 48,00
Dain Borges é professor de história na Universidade da Califórnia em San Diego e autor de "The Family in Bahia, Brazil, 1870-1945" (Stanford University Press).