Logotipo do Jornal de Resenhas
Davi Arrigucci Jr. - 44 - Novembro de 1998
Tudo é exílio
Foto do(a) autor(a) Davi Arrigucci Jr.

Tudo é exílio

DAVI ARRIGUCCI JR

sem ele não há José Ribamar Ferreira
não há Ferreira Gullar e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta estarão esquecidas para sempre
Ferreira Gullar, "Poema Sujo"

Augusto Pinochet pode ser processado, em nome da humanidade, pelos crimes que cometeu no Chile. A esta altura, não se sabe ainda se de fato o será. Mas nunca as nações haviam aberto assim a possibilidade de punição dos que cometeram impunemente, em recintos secretos da repressão, fechados em fronteiras nacionais, o inominável. Os julgamentos de Nuremberg, embora no caminho, não chegaram, pelos interesses divididos do mundo do pós-guerra, até isso. Agora os ditadores se arriscam a receber, em troca do arbítrio e da tortura, a punição com que nunca sonharam, por mais que temam o inferno que conhecem bem. A globalização que nos ameaça, a cada dia, com a gangorra das bolsas e os sinais de recessão econômica do mundo, de repente pode valer em sentido contrário à humilhação universal de que são objeto, uma vez mais, os pobres e desvalidos. 
O processo histórico que sustenta os efeitos dessa universalidade abstrata no cotidiano das pessoas vinha sendo preparado decerto há muito, acompanhando a internacionalização do capitalismo (e a transnacionalização da economia dos últimos anos), mas hoje sentimos na carne o que isso significa, com a mistura nova de ilusão e perplexidade, miséria e esperança. Ou será apenas o velho pesadelo da História, renovado e mais vasto? O labirinto multiplicado que Kafka percebeu antes e melhor que todos? A via global talvez não seja de mão única, nem para dois, como na guerra fria de norte-americanos e soviéticos, o mundo depois da Segunda Grande Guerra. O fato é que o alargamento da consciência histórica a que nos havia levado esse conflito atinge agora o limite. A exposição pública do que era clandestino, sigiloso, secreto, ganha o horizonte mundial, e os conflitos mais amplos dizem respeito também ao nosso umbigo (e ao umbigo do poema, como se verá). O momento planetário toca a todos de perto e de outro modo.
"Rabo de Foguete" (1), o livro de memórias de Ferreira Gullar, sobre seus anos de exílio na década de 70, durante a ditadura militar em nosso país, mais do que o relato de uma experiência individual é a história de um destino humano no contexto histórico global de nosso tempo. Daí o impacto contundente e a atualidade. Não seria assim, é claro, se não estivesse escrito com arte. Mas sua força literária e política depende, em larga medida, da história contemporânea e da intimidade do cidadão, exposta aos golpes do mundo de hoje. Por sua vez, a exemplaridade do destino do poeta, transformado em personagem de si mesmo, tem particularidade e valor simbólico para chegar a cada um e a todos. 
O livro não se limita ao documento pessoal e histórico que se pede a uma autobiografia; pode ser lido como um romance. Na verdade, é um romance cujos acontecimentos sabemos afinal não serem mera coincidência, cujos personagens reconhecemos sempre como não-fictícios, cuja enredo reproduz em boa parte a história contemporânea da América Latina. 
Gullar militou pelos direitos democráticos nos anos de resistência ao golpe de 64; depois entrou para o Partido Comunista e foi eleito, a contragosto, para a direção estadual, clandestina. Após 68, com o acirramento da repressão contra as esquerdas, foi processado junto com outros membros do comitê cultural; impossibilitado de responder ao processo como os demais, ao saber que estava na lista dos militantes do PCB delatados por um prisioneiro sob tortura, teve de mergulhar mais fundo na clandestinidade para não ser preso. Aí começa o romance, dividido em quatro partes, que acompanham os espaços principais onde teve de se refugiar. 
Na primeira, rápida e sufocante, em ritmo entrecortado, na medida do susto e do aperto, relata a existência clandestina e sem paradeiro por apartamentos de amigos no Rio, obrigado a fugir todo o tempo, até sair do país, dez meses após a queda na clandestinidade. Segue-se a vida erradia fora: a fuga pelo Uruguai e a Argentina, uma breve estada em Paris, e então a chegada a Moscou, onde decorre o essencial da segunda parte do livro.
À espera de que as coisas se acalmassem no Brasil, fez essa viagem que, segundo confessa, jamais empreenderia por livre vontade. Em Moscou se dedica a estudar no Instituto Marxista-Leninista, a escola de formação de quadros internacionais do partido. A permanência se estenderá por muitos meses, poucos, no entanto, para o grande amor que ali de repente encontra e necessariamente deve deixar. Embora entremeado de algumas passagens frouxas -retratos dos camaradas, dos cursos e da rotina burocrática no instituto-, é um dos episódios mais fortes do livro, pelo drama íntimo que encerra: o confronto pungente entre o ímpeto da paixão e as circunstâncias todas que lhe são contrárias. O relato limpo e seco deixa exposta a ferida aberta, sem tocar nos limites impostos à liberdade. 
Começa então, via Roma, a longa e tortuosa volta por diversos países hispano-americanos, a que estão dedicadas as duas partes restantes da narrativa. O drama retorna ainda mais doloroso, mas agora pelo arrocho político e a progressiva desintegração da vida familiar, fraturada pela súbita saída de Gullar do Brasil, mas destroçada por completo ao longo da forçada separação, a que foram também obrigados sua mulher Thereza e os filhos Paulo, Marcos e Luciana.
Em maio de 73, o poeta chega a Santiago do Chile, às vésperas do golpe que derrubaria o governo socialista de Salvador Allende. O resumo da crise chilena, com a escassez progressiva dos alimentos, a paralisação dos transportes, as bombas, os atentados, as provocações contra o presidente legalmente eleito, a insegurança, forma a parte mais breve, mas a mais intensa de todas. Aí o foragido se torna também sobrevivente: só a custo consegue escapar do inferno em que se transforma o país após o assassinato de Allende. Os angustiantes quiproquós que lhe travam a saída, até o último instante da fuga para a Argentina, ainda acentuam mais, pelo involuntário suspense, a sensação de vertigem que nos transmite o relato desses dias de pavor. 
O retorno ao mesmo hotel de Buenos Aires onde se hospedara antes do episódio chileno, parece já, no princípio da última parte, um presságio. Mas Gullar fica pouco tempo na Argentina, pois em outubro de 73 está em Lima, para mais outra temporada infeliz. Ela dura, com maiores padecimentos, pessoais e familiares, até junho de 74. Volta então a Buenos Aires, justo no instante da morte de Perón. E lá permanece até os meses de conflito e medo que se seguiram ao golpe militar e à deposição de Isabelita em março de 76, quando a esquerda peronista enfrenta a repressão da junta militar de Jorge Videla. Para a vida familiar, a ocasião não pode ser pior, e, ao desgarramento que já era a marca do destino de todos, vem somar-se a loucura do momento histórico, de que a doença mental e as repetidas fugas do filho Paulo, que levam o pai ao desespero, parecem um símbolo trágico. Separado uma vez mais da família, o poeta, em meio ao inferno agora argentino, aguarda ansiosamente a hora de regressar a seu país. 
Em março de 1977, volta, por fim, para o Brasil (e para a tortura que há tempos o espera), acossado sempre pela voragem das ditaduras latino-americanas que o obrigaram a repetir, a cada passo, a angústia de fugir. 
É assim o romance dos anos de terror e tristeza que são esses anos de exílio, comovente em sua descarnada verdade humana, feito com a memória dilacerada de um tempo de homens partidos. Já distante do passado vivido sob a ditadura e algum tempo depois da catástrofe da União Soviética, o que resta de fato é o caroço da experiência sofrida, marcas no rosto do poeta e no poder de fogo de suas palavras, que agora resumem num livro o duro destino de um homem de nossa época.
Escrito com mão precisa em capítulos curtos e cortantes, que se vão eletrizando mutuamente em crescente tensão interna, dá a medida exata do sofrimento que cresce também com o insulamento do sujeito na solidão: o ser errante frente ao desgarramento dos seus e de si mesmo, colhido vertiginosamente pelo turbilhão da luta político-ideológica, atirado de cá para lá, de país em país, de cidade em cidade, a cada dia de sobrevivência, sempre na busca vã de um lugar para viver, pois nunca mais terá a verdadeira casa ou a cidade de sonho e lembrança que leva dentro. 


A OBRA
Rabo de Foguete Ferreira Gullar Revan (021/502-7495) 272 págs., R$ 25,00



Num romance fantástico de Adolfo Bioy Casares, "La Invención de Morel", previa-se, em 1940, que já não haveria mais na Terra refúgio possível para um fugitivo político. A história da repressão nos países latino-americanos nos anos seguintes confirmou a previsão sombria: o fantástico era real. Com efeito, os anos de exílio representam para Gullar a descoberta do destino comum latino-americano, a que nos tem obrigado a violência: o infortúnio unânime de existir, tentando resistir, sob as botas de recorrentes ditaduras. 
O modo como um destino histórico singular supera o documento e se converte em obra de arte, com irradiação simbólica capaz de ir além das condições da gênese e brilhar com luz própria, é aqui o que desafia a compreensão crítica. Vale a pena tentá-la. 
A crítica literária brasileira, como o país, tem muitas dívidas; uma das maiores é com o autor em questão. Ele não é Ribamar Pereira, não é José Ribamar nem sequer José Ribamar Ferreira. Todos podem ser bons brasileiros e até ter parte com o santo adorado no Maranhão, S. José do Ribamar, mas nenhum é Ferreira Gullar, um grande poeta do Brasil e um de seus cidadãos mais dignos. 
O primeiro nome confundiu o poeta, no início da carreira, com um confrade de sua terra natal, levando-o a usar o pseudônimo; o equívoco com o último, decidiu-lhe em parte o destino, relatado em "Rabo de Foguete": de volta ao Brasil, Gullar se dá conta de que o processo que tanto peso tivera em sua vida não era o seu, mas o de um líder camponês maranhense, que se ligou à luta armada. 
Nenhum final poderia ser mais irônico, para arrematar memórias dos padecimentos de um exilado num mundo de liberdade sempre adiada, que traz nas cicatrizes de repetidas catástrofes a destinação da ironia trágica, antecipada na visão de Kafka como marca profunda de nosso tempo. A penúltima frase do livro -"A vida não é o que deveria ter sido e sim o que foi"-, desculpa o equívoco kafkiano (o termo aparece ao menos duas vezes para qualificar situações absurdas no exílio), ao exprimir a aceitação realista do vivido. Mas, aparentemente, afasta a experiência do âmbito da poesia, que cria, pela imaginação, possibilidades de ser para além do que foi, ou da História. Nenhum equívoco seria maior que esse, no entanto, quando se pensa no livro que se acabou de ler e que tem tudo a ver com a poesia de Gullar.
Nele surge um narrador que é outra face do poeta, ambos empenhados na busca de aproximação artística da experiência histórica, real e imaginária: "Cada um de nós é a sua própria história real e imaginária" -assim termina o livro. A memória, faculdade mestra do narrador, já era antes essencial para o poeta. O "Poema Sujo", cuja gênese é narrada numa das passagens mais notáveis do relato, reconstitui por associações da memória, a mais funda identidade, tábua de salvação a que recorre o narrador ao recompor o vivido no momento em que o arrasta à destruição o redemoinho da história política. O ponto comum e enigmático é como dar forma artística à matéria vivida. Para isso, a compreensão crítica do poeta deveria ajudar. 
Sua fortuna crítica, tem sido, porém, quase a história de outro de seus infortúnios, uma vez que no conjunto e em detalhe, pouco abordou os problemas centrais e a situação de sua poesia ou pelo menos não o fez à altura dela. Com certeza, Gullar teve, desde o princípio da carreira, e talvez mais no princípio, o reconhecimento de alguns dos melhores críticos de poesia do país: Carpeaux, Pedro Dantas, Sérgio Buarque. Um de seus pares, Vinícius de Moraes, também soube ver sua real estatura. Além disso, de fora veio a contribuição, com pontos instigantes, do poeta argentino Santiago Kovadloff. Por outro lado, tem sido bem estudado por críticos universitários; basta considerar a antologia e o prefácio de Alfredo Bosi, os trabalhos de Alcides Villaça e, sobretudo, o de João Luiz Lafetá.
Lafetá escreveu, a meu ver, seu melhor ensaio, e o mais agudo e exato de todos sobre o poeta de corpo inteiro, pela delicada rede com que capta, em perfeito equilíbrio, os elementos psicológicos e sociais da obra. "Traduzir-se" (2), assim se chama, lembrando o poema admirável, cujo relevo no conjunto dessa poesia a interpretação do ensaísta só fez crescer.
Em primeiro lugar, dá a conhecer o poeta no perfil mais visível de cronista de seu tempo, em fino traçado do desenvolvimento da sua trajetória poética em consonância com a vida política do país. Mas a argúcia do intérprete se mostra mesmo ao revelar, com a iluminação límpida e sobranceira da grande crítica, a coerência interna da obra inteira, no enlace da identidade com o tempo e a linguagem. É assim que clareia de uma vez por todas enganos do engajamento do poeta, o esquematismo simplista de alguns de seus ensaios e da poesia doutrinária de certos momentos (como o do CPC e dos romances de cordel), mas, acima de tudo, a alta qualidade de tantos poemas ao longo da carreira toda, articulada por dentro pelos elos profundos que unem a "A Luta Corporal", passando pela fase concreta e neoconcreta, por "Dentro da Noite Veloz", pelo "Poema Sujo", até poemas mais recentes de "Na Vertigem do Dia", como partes de um mesmo processo de exploração intensa da subjetividade. Subjetividade que amadurece na derrota, ganha forças, até caminhar ao encontro do outro, num movimento espontâneo e natural, em que o poeta acaba por traduzir-se, fazendo de fato da solidão multidão, como diz no poema que foi a estrela guia do crítico. 
É nesse movimento, perfeitamente rastreado por Lafetá no interior da obra poética, que se encontra agora a força de "Rabo de Foguete", produto acabado de um narrador experiente que aprendeu com a derrota mais uma vez e se expõe com a fraqueza de um homem comum em quem a face mais íntima se traduz naturalmente na face pública. 
O instrumento de mediação para esse feito é a linguagem coloquial, manejada com exatidão em diálogos diretos, a serviço de cenas rápidas a que se resumem os capítulos concisos. A narração se processa assim, com energia e agilidade, sem prejuízo, da densidade do que carreia consigo e acumula na configuração de uma interioridade que afinal se expõe inteiramente, ao expor-se pela narração em suas relações com o mundo. Ao contar o vivido, o narrador se mostra como parte do drama na cena dialogada e concreta; ele é de novo o drama revivido, como se este estivesse realmente sendo visto do ângulo de quem o padeceu, exposto até sua mais despojada fraqueza. Tal procedimento desloca a autobiografia rumo ao romance, pois, em lugar de um discurso dominante, confessional ou meditativo, a subjetividade autoral se objetiva no mundo vivamente representado. O autor se representa a si mesmo em contacto dialógico com a realidade de que trata, abrindo-se às vozes do outro, como um homem comum às voltas com os acontecimentos que lhe transtornam a vida. Esse dialogismo dialetiza os conflitos ideológicos que se percebem pelos pontos de vista antagônicos sobre a situação política, as formas de ação, a atuação do partido, a propósito do Brasil ou dos outros países por onde passa o exilado, de modo que não prevalece, como se poderia esperar, a perspectiva de quem escreve depois que as coisas já se deram e a história, sabida de todos, já é outra. 
O modo de tratamento da matéria vivida é então o de um realismo irônico, dramático e minimalista, cuja garra reside no despojamento com que ataca os pontos fundamentais da história e as pequenas coisas envolvidas no mundo restrito da falta de liberdade. 
O livro nasce, com efeito, da perspectiva irônica do homem que pode menos que os acontecimentos que o atropelam, pondo tudo de ponta-cabeça: "Minha vida começara a virar de cabeça para baixo" são suas palavras textuais, no princípio. Essa virada inicial, que desencadeia o relato, indicia a mudança de vida para o que vai ser então: a existência complicada e sofrida na clandestinidade, em que se procura anular a própria identidade física para que o íntimo da pessoa consiga sobreviver num dia-a-dia muito diminuído. 
O livro já começa nos arrastando para um torvelinho de expedientes diminutos que interferem na sobrevivência e no aprendizado das novidades que chegam de fora. O coloquialismo das cenas diretas confere concretude às pequenas coisas que passam a compor a vida cotidiana do clandestino, recluso em espaços delimitados, avançando só por explorações dificultosas, para além dos limites apertados em que estão comprimidos os seus dias. Os pequenos prazeres e as necessidades corriqueiras podem virar um risco grande: ir ao cinema ou ao teatro, encontrar um amigo, comer uma feijoada, urinar, rever os filhos. Mais tarde, mundo afora, a descoberta das coisas se processará aos poucos, por visão fragmentária de uma realidade sempre maior e desconcertante, onde se perde facilmente quem busca refúgio, como ocorre na chegada à União Soviética. Tudo isso, entretanto, é apenas prenúncio do pior. 
O drama da liberdade, posta em perigo, é assim reafirmado em cada detalhe, em cada gesto, em cada pequeno passo, em cada evento novo, ganhando o realce de uma extrema intensidade, e nos comove, ao acionar partes que estão em consonância com o drama total. Daí um ritmo crescente de implicações, acasos, ressonâncias e equívocos, quase sempre sérios e problemáticos, beirando o trágico, mas que podem também resultar em tragicômicos depois de passados. Serão sempre, porém, comoventes, no sentido de que nos movem com eles, com cada um deles, segundo a força que trazem em si como parte do problema todo, desde o primeiro instante instalado na expressão que registra a reviravolta da existência. 
Por essa forma de tratamento, logo se vê que o texto não é analítico, embora não faltem reflexões pontuais sobre o processo político que o autor viveu ou mesmo sobre o significado que a poesia adquiriu para a sua sobrevivência. Seria, entretanto, um erro pensar que ele se restringe ao mero relato dos eventos que lhe marcaram a existência nesse período conturbado de sua vida. Na verdade, o mais substancial é a interioridade atravessada pela experiência histórica, ou melhor, a exposição da mais íntima experiência individual na travessia de acontecimentos históricos decisivos daquele período, quando exatamente essa experiência se constituiu. 
À semelhança do que ocorreu durante o processo de afirmação do romance na tradição ocidental, quando o estatuto do que é ficcional ou histórico é bastante oscilante e por vezes intercambiável, o que se observa aqui é a história de um indivíduo particular em meio às contradições e aos episódios históricos de seu tempo, sem que seja preciso lançar mão de qualquer ficcionalização propriamente dita para se chegar à forma do romance. Ele pode nascer do recorte e da montagem do vivido, que não transcrevem (nem querem ou poderiam fazê-lo) a realidade bruta, mas dão forma artística, mediante a linguagem adequada, à matéria vivida. O resumo do essencial se torna um meio artístico para dar com o cerne duro da experiência histórica, feito no caso de dor, solidão e desespero, na própria intimidade do ser à parte que é o exilado. Na verdade, o exílio chama a atenção para a condição histórica do homem contemporâneo, sujeito ao desgarramento num inferno em que pode de repente virar o mundo todo. Aumentam os espaços e cresce a desolação do ser, dissolvendo-se frente ao infinito. Voltam à memória imagens de Giacometti: o homúnculo que se desfaz e vaga errante no vazio, sem retorno possível à casa. 
Em meio ao maior desespero, em 75, em Buenos Aires, o poeta se agarra à poesia para sobreviver. O ressaibo de tanto sofrimento havia chegado ao extremo, pedindo um poema final. Agarra-se então ao próprio umbigo, ao umbigo do poema como salvação. O "Poema Sujo" vai nascer, em meses de excitação criadora. 
É o melhor capítulo desse livro em que a fragilidade é força. Repassa então a vida toda de São Luiz do Maranhão, volta às imagens da infância, aos cheiros, às cores, às ruas, às casas de sua terra natal, à sua casa e à sua cidade, à cidade que existe dentro do homem, como construção do desejo, da memória e da imaginação, como fruto do trabalho humano em resposta ao desvario e ao caos em que se pode converter para ele e seus semelhantes a História. A memória de Ferreira Gullar, a mesma que ora reconstrói a experiência do foragido e do sobrevivente em "Rabo de Foguete", a memória do narrador, se agarra ao que pode para deixar notícia no planeta de sua experiência individual, o traçado singular da história de um homem e do que passou. Como disse outro poeta, no princípio da noite, frente à imensidão do universo, "tudo é exílio" (3). 

Notas: 1. O título evoca um verso de uma canção da época, "O Bêbado e a Equilibrista", de João Bosco e Aldir Blanc, famosa na voz de Elis Regina: Meu Brasil.../ que sonha/ com a volta do irmão do Henfil/ com tanta gente que partiu/ num rabo de foguete.
2. In: "O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira", São Paulo, Brasiliense, 1982
3. Verso final do "Princípio da Noite", de Dante Milano.

 


Davi Arrigucci Jr. é ensaísta e professor de literatura na USP, autor, entre outros, de "O Escorpião Encalacrado" (Companhia das Letras).

Davi Arrigucci Jr. É crítico, ensaísta e professor de literatura da USP.
Top