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Felipe Freller - 123 - Fevereiro de 2023
Uma perspectiva realista
Maquiavel como baliza para investigar golpes de Estado à luz da conquista e da conservação do poder por personagens inovadores
Foto da capa do livro Golpe de estado: história de uma ideia
Golpe de estado: história de uma ideia
Autor: Newton Bignotto
Editora: Bazar do tempo - 383 páginas
Foto do(a) autor(a) Felipe Freller

A ideia de golpe de Estado está na ordem do dia do debate político brasileiro desde 2016, quando a polêmica sobre a adequação de aplicar o conceito ao impeachment de Dilma Rousseff se instaurou. A centralidade do conceito se aprofundou a partir da ascensão do bolsonarismo em 2018, por duas razões principais: a primeira é que a ideologia propagada por Jair Bolsonaro defende chamar o golpe de 1964 de Revolução; a segunda é que o próprio presidente faz ameaças reiteradas de ruptura institucional desde a campanha que o elegeu – ameaças que se intensificaram às vésperas da eleição de 2022. Esse cenário reacendeu debates na sociedade sobre a pertinência de se falar em golpe de Estado em 1964 e em 2022. Infelizmente, essa discussão tão crucial é prejudicada pela falta de clareza com que o conceito tem sido tratado nesses debates, como se a urgência de tomar posicionamento perante tantas crises dispensasse uma investigação sobre as diferentes camadas de significado da ideia de golpe de Estado e sua história.

É esta lacuna que o livro Golpe de Estado: História de uma ideia, publicado por Newton Bignotto, importante filósofo brasileiro, no fim de 2021, vem preencher. Aliando erudição, rigor de análise, profundidade e linguagem acessível, o livro traz a contribuição central de, em vez de oferecer uma definição unívoca de golpe de Estado, a qual simplificaria o debate, demonstrar que foram diversas camadas de significado que se acoplaram à ideia ao longo dos séculos, resultando disso um conceito complexo, com múltiplas, e por vezes contraditórias, dimensões. Bignotto nos faz ver que tratar o golpe de Estado como um simples espantalho, como uma designação pejorativa para atos dos quais discordamos, impede-nos de compreender um fenômeno fundamental da política em toda a sua complexidade. Rejeitando o ponto de vista moral, o autor considera que os golpes de Estado “são parte do universo da política e podem ser analisados como parte de um processo que não apenas é natural, mas que ocorre com frequência, que é aquele da inovação” (p. 40). Assim, “não podem ser postos de lado pelos pensadores da política pelo fato de serem moralmente condenáveis” (p. 41). O golpe de Estado coloca seus atores diante dos elementos constitutivos da ação política: a contingência, o risco, as circunstâncias difíceis e imprevisíveis.

No Capítulo 1, Bignotto analisa o tratamento de Nicolau Maquiavel ao tema das conjurações, adotando o autor florentino como uma baliza para o estudo da ideia de golpe de Estado nos séculos seguintes. Assim, os golpes de Estado serão compreendidos à luz da tópica maquiaveliana da conquista e da conservação do poder por personagens inovadores, como os “príncipes novos”. Na maneira como Bignotto analisa as três fases da conjuração para Maquiavel (a preparação, a execução e a consolidação do poder conquistado), destaca-se a dimensão da fortuna, da indeterminação da ação política, o que tornaria impossível um saber positivo sobre as conjurações.

No Capítulo 2, o autor aborda a entrada do golpe de Estado no vocabulário político na França do século XVII, em um contexto marcado pela emergência do Estado moderno e das teorias da soberania e da razão de Estado. Tendo por foco Gabriel Naudé, o autor que mais precisou e popularizou o conceito, Bignotto nota que seu significado era inicialmente positivo, referindo-se às ações extraordinárias necessárias para conservar o Estado. Apesar dessa ênfase na conservação, Naudé teria percebido que o conceito podia se aplicar também aos atos de conquista do poder, avizinhando-se da ideia clássica de conspiração. A camada de significado desse primeiro momento de elaboração da ideia de golpe de Estado seria o emprego extraordinário da violência na esfera política. Ainda no século XVII, a mesma tópica dos atos extraordinários de conquista e conservação do poder teria aparecido no Segundo tratado sobre o governo de John Locke, embora sem a referência ao conceito de golpe de Estado: Locke teria chamado de prerrogativa as ações extraordinárias para preservar o bem comum, e de usurpação a conquista violenta do poder.

O Capítulo 3 trata do século XVIII, em que o emprego teórico do conceito de golpe de Estado entra em declínio. A partir de 1789, o principal conceito a dar sentido à experiência política teria passado a ser o de revolução, embora a conspiração continuasse na ordem do dia e obcecasse os principais atores da Revolução Francesa. A própria oposição dos revolucionários entre a Revolução, concebida positivamente como o início de uma nova era, e as conspirações, maquinadas por particulares que queriam tomar o poder, parece estar na origem da dicotomia contemporânea entre revolução e golpe de Estado. Bignotto faz uma análise pormenorizada dos eventos que levam ao 18 Brumário, demonstrando que os atos de conquista e conservação do poder que hoje chamamos de golpes de Estado eram compreendidos e justificados pela linguagem da Revolução. O 18 Brumário é caracterizado como “o paradigma moderno dos golpes de Estado” (p. 166), por sua união entre aparência de legalidade, defesa da Revolução, emprego controlado da violência perante os obstáculos e lançamento das bases de um novo sistema de poder.

No Capítulo 4, Bignotto examina a reemergência do conceito de golpe de Estado no vocabulário político do século XIX, especialmente na França, trazendo novas camadas de significado. A maior novidade teria consistido na definição do golpe como uma violação da Constituição, consolidando-se seu sentido negativo. Uma das principais elaborações, no campo liberal, seria a de Benjamin Constant, para quem os golpes de Estado não eram simples violações da lei, mas representavam a destruição de todo o edifício constitucional. O século XIX teria consolidado a dicotomia entre revolução e golpe de Estado, embora os conceitos por vezes se confundissem, de modo que “a Revolução ganhou a incômoda companhia dos golpes de Estado” (p. 205). Assim, Bignotto inclui em sua análise personagens como Auguste Blanqui, preocupados em elaborar uma cultura da insurreição, mesmo que, em sua visão, isso se diferenciasse dos golpes de Estado. O golpe de Luís Napoleão Bonaparte teria cristalizado a associação entre golpe de Estado e ascensão de um regime autoritário.

O Capítulo 5 defende a tese de que o século XX adicionou uma última camada de significado ao conceito de golpe de Estado: a camada da técnica. O autor central desse capítulo é o italiano Curzio Malaparte, que, fascinado com a tomada do Estado por insurreições, golpes e revoluções como a Revolução de Outubro ou a Marcha sobre Roma, teorizou esses movimentos de tomada do poder como um problema de ordem técnica. O golpe de Estado seria “uma nova forma de ação na arena pública totalmente baseada no uso racional e controlado das forças materiais” (p. 297). Embora essa perspectiva reatasse de algum modo com a análise realista de Maquiavel sobre as conjurações, Bignotto retrata a visão técnica do século XX como uma versão empobrecida, pois a dimensão da contingência e da indeterminação é abandonada, e Malaparte teria alimentado a ilusão de uma ciência exata e precisa a respeito dos golpes de Estado, contrariando Maquiavel. Essa ilusão estaria presente no tratamento dos golpes de Estado pelas ciências sociais da segunda metade do século XX, com as quais Bignotto encerra, em tom crítico, seu percurso sobre as diferentes camadas de significado acopladas ao conceito ao longo dos séculos.

A abordagem realista de Bignotto apresenta a contribuição inestimável de trazer à luz aspectos fundamentais dos golpes de Estado que costumam permanecer invisíveis nas abordagens puramente morais ou normativas. De especial interesse é o empreendimento de analisar os golpes em paralelo com seus “vizinhos”, as conspirações, usurpações, insurreições e revoluções. Enxergando no golpe de Estado o problema mais geral da conquista e conservação do poder por atores políticos que pretendem inovar, o autor demonstra de maneira irrefutável que é inútil erigir, com propósitos puramente morais, um muro conceitual entre o golpe de Estado e outros momentos da vida política em que o problema da inovação e da ruptura com a normalidade se coloca.

Entretanto, essa mesma abordagem realista acaba levantando dúvidas que a leitura do livro não é suficiente para resolver. A principal se refere à distinção entre revolução e golpe de Estado. Embora Bignotto alerte logo no início sobre o perigo de confundir os dois conceitos, o livro tende a insistir mais sobre o que aproxima do que sobre o que distingue os dois fenômenos. A razão é que, de um ponto de vista realista, as revoluções – que Bignotto associa, retomando Hannah Arendt, ao problema da fundação – “também são vistas como atos de conquista do poder” (p. 45). Ao tratar da Revolução Francesa, o autor analisa de maneira perspicaz como a luta crua e violenta pelo poder, por procedimentos que hoje chamamos de golpes de Estado, era recoberta pelo mito da Revolução como início absoluto. O leitor chega a ser tentado a concluir que a distinção entre revolução e golpe não pode ser um instrumento conceitual do analista realista preocupado com a dinâmica da conquista e conservação do poder, constituindo antes um arsenal retórico na disputa entre os próprios atores políticos – uma disputa em que os conquistadores reivindicam a revolução, e os perdedores acusam um golpe de Estado. Embora Bignotto inicie o livro posicionando-se com a afirmação de que houve golpe de Estado no Brasil em 1964 e 2016, a leitura da obra coloca em dúvida a possibilidade de um saber positivo que permita responder objetivamente, e acima das disputas política, se um dado evento foi um golpe, uma revolução ou outra maneira de conquistar e conservar o poder por fora das vias ordinárias. É possível responder a essa pergunta abrindo mão do ponto de vista moral? Permanece a questão acerca dos limites da abordagem realista, embora ela seja fundamental para iluminar aspectos do golpe de Estado apagados pela perspectiva normativa.

 

FELIPE FRELLER é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com bolsa da FAPESP, e pesquisador associado ao Centre d’Études Sociologiques et Politiques Raymond Aron da École des Hautes Études en Sciences Sociales (CESPRA-EHESS).

 


Felipe Freller
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